O quadrinista Dash Shaw tinha o hábito de criar programações de convenções fictícias de cultura pop quando era criança. Frequentador assíduo de eventos de quadrinhos e anime desde seus 12 anos, primeiro como fã e depois como autor, ele diz ter vivenciado uma ampla gama de experiências nesses festivais, das mais incríveis às mais horríveis, passando por tudo que existe entre esses dois extremos. Recém-lançado pela editora Conrad, com tradução de Dandara Palankof, o álbum Cosplayers – Fantasiando a Vida foi criado com a intenção de retratar todas essas sensações conflitantes.
“Eu posso oscilar loucamente em uma convenção, de pensar ‘eu amo todas essas coisas’ para ‘é tudo lixo’ para, na maioria das vezes, uma série de sentimentos contraditórios no meio desses extremos”, diz o artista em entrevista ao Vitralizado. “Eu queria que Cosplayers representasse isso e adotasse um tom positivo, mas realista”.
Shaw é conhecido no Brasil por seu trabalho em Umbigo Sem Fundo, lançado por aqui em 2009, como um dos primeiros títulos do selo Quadrinhos na Cia, da editora Companhia de Letras. Suas 720 páginas retratam sete parentes encarando o anúncio do fim do casamento de 40 anos do casal que deu origem à família. É uma mescla de diário coletivo com manual de instruções de um grupo disfuncional com toda vibe intimista e experimental de gibi indie norte-americano do início do século.
Cosplayers segue essa mesma vibe intimista e experimental de gibi indie norte-americano do começo do século, mas pouco lembra Umbigo em termos de forma e conteúdo. Na avaliação do autor, em meio aos seus vários trabalhos, seja como quadrinista ou animador, o grande paralelo entre suas duas únicas HQs lançadas no Brasil está no fato de serem seus dois títulos “mais focados em personagens”.
O segundo trabalho de Shaw publicado em português narra a jornada de uma cosplayer e sua fiel assistente, fotógrafa e editora de vídeo por convenções de cultura pop nos Estados Unidos. Originalmente publicada em edições avulsas, a série foi reunida em um único volume pela editora Fantagraphics em 2016. A edição da Conrad ainda conta com a HQ Meu Colégio Inteiro Afundado no Meio do Mar – obra que inspirou a animação homônima de 2016 dublada por Jason Schwartzman, Maya Rudolph, Susan Sarandon e Lena Dunham.
Cosplayers é focado no empenho das amigas Annie e Verti para emplacar seus nomes no mundo dos cosplayers. Elas sofrem com a falta de público em seu canal no YouTube, decepcionam-se com projetos malsucedidos envolvendo seus talentos e reclamam de seus colegas de profissão. A dinâmica entre as duas, suas opiniões e seus julgamentos me lembram algo da dupla Enid e Rebecca, do clássico Ghost World, de Daniel Clowes.
“Não era a minha intenção no começo, mas assim que a primeira edição saiu, o editor da Fantagraphics chamou minha atenção para isso”, me responde Shaw quando pergunto das semelhanças entre suas protagonistas e as personagens de Clowes. “Provavelmente porque sou do contra, pensei que seria interessante tentar me aproximar disso em vez de me afastar, então a segunda edição tem um personagem muito característico do Clowes, o estudioso de mangá. Seja como for, eu amo o Clowes. Ele é o melhor.”
Diálogos ocasionais à parte, Cosplayers tem vida própria e reflete as paixões de Shaw pelo universo de fãs que se fantasiam como seus personagens preferidos. Ele me disse:
“Eu amo a teatralidade e seu aspecto artesanal. Eu amo que seja uma fusão da fantasia com a realidade. Desenhar cosplayers é interessante porque os personagens se originam em desenhos, mas eles foram filtrados pela realidade, e agora estou filtrando-os de volta para a fantasia. Foram adicionados elementos que não estavam lá antes: o Gambit usa óculos agora, o Batman tem bigode, o traje é um pouco instável ou ‘folgado’, ou personagens mudaram de gênero ou raça. Renderizar essas diferenças ou idiossincrasias foi mais poderoso para mim do que desenhá-las para se parecerem com o personagem que as inspirou.”
Cosplayers também evidencia a influência cada vez maior das experiências de Shaw como animador – assim como seus filmes têm jeito de HQ animada. Ele atribui esse diálogo ao seu interesse antigo por “animações limitadas”, exemplificadas por ele com dois clássicos, a primeira temporada de Astro Boy e o curta O Natal do Charlie Brown.
“Gosto de ambos por suas próprias linguagens cinematográficas particulares surgidas dos quadrinhos”, me fala o autor sobre as duas animações citadas por ele. “Você pode ver, por exemplo, naquela primeira temporada de Astro Boy como [Osamu] Tezuka criou um modo cinematográfico específico a partir de suas habilidades como quadrinista. É diferente da animação ‘comprimir e esticar’, é uma coisa própria. Eu vi isso conectado ao cinema independente, o ethos de ‘menos é mais’”.
Hoje aos 38 anos, Shawn diz guardar boas memórias de sua visita ao Brasil, há quase 13 anos, para o lançamento de Umbigo Sem Fundo. Ele conta que a ida ao Rio de Janeiro para participar da Bienal do Livro de 2009 serviu de inspiração para uma sequência de seu próximo trabalho.
Ele lembra: “Fui à Bienal do Livro do Rio de Janeiro quando Umbigo saiu e adorei. Também visitei São Paulo. Eu tinha vinte e poucos anos e foi perfeito. Visitei o Fábio Moon e o Gabriel Bá. Acho que o Rafael Grampá também estava por lá. Tenho boas lembranças dessa viagem e de ver a arquitetura no Rio de Janeiro. Em um livro em que estou trabalhando atualmente, um personagem vai ao Rio de Janeiro, inspirado nessa viagem”.