O quadrinista Kainã Lacerda selecionou 32 obras originais – entre rascunhos, ilustrações e páginas de quadrinhos – para expor em sua mostra solo na 9ª Arte Galeria (R. Augusta 1371, loja 113), em São Paulo. A exposição terá abertura na noite de hoje, 29 de outubro, e ficará em cartaz até o próximo sábado, dia 2 de novembro. Você confere outras informações sobre a abertura da mostra na página do evento no Facebook.
Autor das revistas Cintaralha Comix, Lacerda tem como principais características obras com forte teor pornográfico – e possivelmente ofensivas para muitos -, extremamente técnicas e marcadas pelo uso do nanquim – prática inspirada pelos trabalhos de autores como Daniel Clowes e Peter Bagge.
“Desde que eu comecei a fazer quadrinhos eu tenho estudado bem mais narrativa. Ultimamente eu tenho lido coisas com olhos mais críticos. Como tal cara constrói uma página e quais os benefícios disso. É uma parada que eu tô sempre pensando pra me melhorar como quadrinista e deixar a leitura mais fluida e prazerosa pro leitor”, diz o autor sobre uma de suas reflexões enquanto fazia a curadoria dos trabalhos que serão expostos a partir de hoje.
No papo a seguir, Lacerda fala sobre os bastidores de sua mostra na 9ª Arte Galeria, a repercussão de seu trabalho nas redes sociais e sua próxima publicação. Saca só:
“Me deram carta branca pra eu colocar o que eu quisesse na exposição”
Você pode falar um pouco sobre a curadoria dessa exposição na 9ª Arte Galeria? Ela é feita a partir de algum recorte específico do seu trabalho?
Não necessariamente. Eles me deram o máximo de liberdade possível pra fazer a exposição da forma que eu queria. Eles me deram carta branca pra eu colocar o que eu quisesse lá na exposição e a partir daí eu selecionei alguns dos meus trabalhos que estavam mais direitinhos pra colocar lá e eu recebi toda a atenção e ajuda necessária do pessoal.
Todos os seus trabalhos que estarão expostos são obras produzidas com nanquim. O que mais te interessa no uso do nanquim? Você tem alguma técnica e material de trabalho preferidos?
Eu trabalho muito com nanquim e caneta pincel. A maioria dos meus primeiros trabalhos foram feitos dessa forma e mesclados com digital. Eu comecei a usar nanquim porque é o material que todas as minhas influências usam pra produzir quadrinhos. Eu lembro de uma entrevista com o Daniel Clowes que ele fala que passou uma eternidade tentando achar o material certo pra conseguir o efeito que ele queria nos desenhos dele, até ele descobrir que os profissionais trabalhavam com pincel e nanquim. Eu nunca consegui me adaptar muito bem pra usar pincel, aí eu uso o mais próximo disso, que é uma canetinha com ponta de pincel.
Eu gosto muito de aquarela também, mas eu sou péssimo haha.
Além disso, eu tenho trabalhado muito no digital ultimamente. O Cintaralha 3 foi produzido todo no digital e estou gostando muito do resultado. Meu traço fica mais limpo e certinho quando eu trabalho no digital, além de ser bem mais rápido. A única desvantagem é que eu fico sem original pra expor hehe.
“Parece que tá todo mundo num estado de desenvolvimento interrompido”
Eu imagino que uma exposição como essa acaba também sendo uma oportunidade para você refletir e pensar sobre a sua produção. Isso aconteceu com você? Você nota muitas mudanças e transformações na forma como você pensa e faz quadrinhos ao longo dos anos?
Ah, sim, com certeza. Eu nunca liguei pros meus originais, eu nunca achei que eles tinham valor, e ainda não sei se eu acho. Mas ir lá na galeria e mostrar minhas folhas de quadrinho me fez pensar que talvez eu devesse desenhar em um papel um pouco melhor que chamequinho, haha. Desde que eu comecei a fazer quadrinhos eu tenho estudado bem mais narrativa e tal. Ultimamente eu tenho lido coisas com olhos mais críticos. Como tal cara constrói uma página e quais os benefícios disso e tal. É uma parada que eu tô sempre pensando pra me melhorar como quadrinista e deixar a leitura mais fluida e prazerosa pro leitor.
O seu trabalho apresenta muitas cenas de nudez e sexo – o seu Inktober inclusive foi denunciado e censurado mais de uma vez no Instagram. Que leitura você faz da repercussão que uma produção como a sua acaba tendo em dias retrógrados como os que estamos vivendo?
Até o final desse mês o meu Instagram ainda vai ser excluído, haha. Eu acho que tem muita gente puritana por aí, ou gente que interpreta o que eu faço de uma forma escrota e mal-intencionada. Eu já ouvi muita merda em relação a isso, já tive gente me tratando esquisito e tal, mas eu acho que isso faz parte quando tu faz um conteúdo igual ao que eu faço. Eu não ligo muito. Ligava mais antes.
Recentemente eu vi uma palestra com a youtuber Lindsay Ellis, no qual ela conta sobre como ela estava sendo perseguida pela Alt-Right e por esses 4channers neonazi. Ela conta sobre como isso fodeu com a cabeça dela e ela foi parar numa instituição psiquiátrica por causa disso. Horrível. Eu morro de medo de cair na mira dessa gente. Eu morro de medo de bolsominions de internet em massa. Espero continuar fora do radar deles. Eu não tenho emocional pra lidar com esses psicopatas. Ler comentários de Facebook me deprime. Quando teve aquela parada da Escória, que o filho do bolsonaro retuitou uma foto do maluco com a pochete do Adriano Disk Gás, eu fui ler os comentários e aquilo acabou comigo. Eu me sinto péssimo vendo essa galera tão ignorante no mundo. Parece que tá todo mundo num estado de desenvolvimento interrompido. Tá todo mundo na terceira série fazendo piada homofóbica e racista como se fosse a parada mais groundbreaking do mundo. Eu odeio essa galera com todas as minhas forças.
“O meu objetivo é fazer um gibi que, se não fosse meu, eu ia gostar de ler”
O que mais te interessa em termos de quadrinhos hoje? O que você mais tem interesse em ler e tentar fazer e experimentar com a linguagem das HQs?
Ultimamente eu tô obcecado por Hate, do Peter Bagge. Eu não consigo parar de ler. A forma como ele escreve os diálogos e monta a história é absolutamente incrível. Parece que tu tá vendo uma conversa de verdade acontecendo ali. Eu queria fazer isso. Os quadrinhos que eu gosto muito de fazer são quadrinhos que são quase inteiramente monólogos. Personagens conversando com o leitor. Mas quando eu vou criar duas pessoas conversando não sei se fica tão fluído assim, tão natural. Mas é algo que eu quero fazer. Deixar o texto dos meus quadrinhos parecendo uma conversa real, que tu pode entrar na história e sentir que aquilo poderia ser uma conversa que tu tá ouvindo quando tu tá na rua. Texto pra mim é fundamental. Se eu tô lendo um quadrinho que a história é boa, os desenhos são bons, a narrativa é irada, mas o texto é mecânico, isso me frustra um pouco. E é isso que eu quero melhorar mais. A gente é muito autocrítico e isso atrapalha um pouco às vezes, mas meu objetivo é fazer um gibi que, se não fosse meu, eu ia gostar de ler.
Uma pergunta que tenho feito bastante aqui no blog: desde o dia 1º de janeiro de 2019 o Brasil é governado por um presidente de extrema-direita, militarista, pró-tortura, fascista, misógino, machista, xenófobo, homofóbico e racista que reflete muito do que é a nossa sociedade hoje. Você é otimista em relação ao nosso futuro?
Eu vario bastante entre estar otimista e pessimista. O Bolsonaro é o reflexo do cidadão brasileiro. Ele é a imagem cuspida e escarrada do teu tio fascista. Ele não tá lá sozinho. Ele não tá lá porque ele enganou a população. Ele tá lá porque tem muita gente que pensa exatamente igual a ele. E isso é profundamente assustador. Eu cresci com varias pessoas que sempre falaram exatamente o que o Bolsonaro tá falando agora pro Brasil todo ver. O que me fode é um cara desses chegar ao poder e fazer as merdas que ele tá fazendo. A gente tá vivendo numa época que parece que mundo inteiro tá andando pra trás. A KKK tá aí marchando pela rua dos EUA. Nós temos nazistas se sentindo empoderados por esses caras. Antes eu achava que essa gente era a exceção, mas agora parece que é a regra. A gente essencialmente tá dividindo o país com uma porcentagem gigantesca de mongolóides nacionalistas tementes a deus que valorizam padrões arcaicos de família tradicional branca conservadora que advogam por ideias medievais de hegemonia. Mas meu lado mais positivo, porém, acredita que isso seja uma coisa passageira. Eu já escutei uma vez que antes de algum progresso existir, a sociedade precisa mostrar a sua cara feia. E acho que talvez seja isso que estamos vivendo hoje, a sociedade se declarando abertamente como podre. E eu espero que a partir daí, exista algum progresso substancial.
Você pode recomendar algo que esteja lendo, assistindo ou ouvindo no momento?
Eu terminei de ver Sopranos outro dia. Uma das melhores séries de todos os tempos e que abriu espaço pra séries picas de hoje. Breaking Bad não existiria sem Sopranos, por exemplo. Eu sempre recomendo os filmes do Ari Aster, um dos meus cineastas favoritos atualmente, o filme mais recente dele, Midsommar, é uma obra de arte.
Fora séries e filmes eu fico muito tempo assistindo vídeos no YouTube. Recomendo a ContraPoints e o Hbomberguy, que são pessoas que tão fazendo uns vídeos incríveis sobre a sociedade atual. Recomendo muito o vídeo sobre Incels, da ContraPoints e da Terra Plana, do Hbomberguy. São umas análises do caralho.
Meu gosto musical é bem bizarro. Eu vou usar essa oportunidade pra indicar um dos melhores álbuns de todos os tempos, Emotion, da Carly Rae Jepsen.
“Fazer uma história mais longa tá me dando oportunidade de explorar coisas que eu não conseguia antes”
Pra encerrar, no que você está trabalhando agora? Você já tem alguma próxima publicação em vista? Se sim, o que pode falar sobre ela?
Eu tô terminado o próximo Cintaralha Comix. Essa é a maior história que eu fiz até agora. Tá com 52 páginas e três epílogos. Eu comecei a fazer essa história porque eu queria expandir um personagem que eu criei em 2017, chamado Bebe-Mijos. Esse próximo Cintaralha vai ser a primeira parte de três, da história da ascensão, auge e queda desse personagem. O que eu posso falar sobre essa história é que ela não é o que vocês imaginam que ela vai ser. Eu tô sentindo que fazer uma história mais longa tá me dando oportunidade de explorar coisas que eu não conseguia antes. Eu tô me divertindo fazendo. Tô sentindo que eu tô aprendendo bastante em questão de estrutura de história e de ritmo e tal. Eu tô bem empolgado pras pessoas lerem. Eu quero ver se consigo lançar agora em dezembro, numa tiragem pequena. Vamo ver se rola!