Luciano Salles diz estar encerrando um ciclo com o lançamento de Limiar: Dark Matter. A carreira do artista no mundo dos quadrinhos começou em 2012, com o lançamento de Luzcia, A Dona do Boteco. Com tiragem pequena e poucas páginas, a HQ foi uma espécie de cartão de visitas utilizado pelo quadrinista para apresentar seus dotes artísticos. O lançamento de O Quarto Vivente em 2013 deu início a uma série de publicações encerrada com seu mais recente trabalho. Entre os dois está L’Amour: 12 oz, um dos grandes gibis brasileiros lançados em 2014 e o mais belo e impactante álbum produzido por Salles até hoje.
Limiar sempre foi anunciado pelo autor como o ponto final dessa sua trajetória inicial como quadrinista. Apesar de seus enredos independentes, as três HQs compõem um mesmo cenário, com temas em comum e um mesmo acabamentos editorial. “Criei um diferente nascimento em O Quarto Vivente. Desenvolvi o princípio e o término da vida e do amor em nossas vidas em L’Amour: 12 oz. E, de modo superlativo, um tipo de apego pós vida em Limiar: Dark Matter”, conta Salles em entrevista por email (leia a íntegra no final do texto).
A leitura de do quadrinho recém-lançado é difícil. Como anunciado pelo próprio autor no início do ano, o livro trata de uma história de vingança envolvendo três amigos. A trama é bem mais complicada que isso. O roteiro é ambientado em um futuro distópico e os colegas em busca de justiça são usuários de uma droga de efeitos mais do que alucinógenos. Eles ganham poderes para enfrentar o assassino do amigo morto.
No início de 2015, Salles comentou por aqui que não gostava de subestimar o leitor: “Ele é a peça chave em uma história em quadrinhos. O ciclo vai se fechar na mão dele, então que o ciclo seja fechado da melhor forma, ou seja, deixando o leitor imerso no que leu. Não estou dizendo que faço isso, mas que procuro (da minha forma) deixar caminhos, atalhos, ensejos, para que o leitor participe de alguma forma do que está consumindo. Eu gosto quando assisto um filme e aquilo me toca de tal forma que me incomoda, induz a repensar algumas coisas e reflito sobre aquilo”.
Se o objetivo de Salles em seu quarto título foi criar essa mesma sensação de desconforto, o quadrinho é um sucesso. Difícil de ser compreendido e com uma colorização bastante incômoda de autoria de Marcelo Maiolo, Limiar: Dark Matter é um dos quadrinhos mais estranhos, difíceis e curiosos do ano.
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“Não precisamos ficar presos em tipos de histórias que funcionem. Qual será sua contribuição acrescentando mais do mesmo?”
Conversei com Luciano Salles sobre Limiar: Dark Matter. Ele falou sobre suas intenções com a obra, o fim do ciclo iniciado com O Quarto Vivente, a narrativa complexa de seu mais recente trabalho e seus planos para 2016. Papo bem massa. Saca só:
Achei o Limiar o mais estranho dos seus quadrinhos. Acho que é uma pergunta meio besta, mas necessária: como essa história surgiu na sua cabeça?
Tenho um grande amigo que mora no Canadá. Em comum tínhamos outro camarada que de um momento para outro faleceu. Tudo em apenas uma semana. Estava bom e então morto. Ficamos extremamente sentidos e angustiados com a notícia (acho que falávamos ao telefone) quando comentei que somos apenas memória. Nada além de memória. Um tipo de memória que varia de pessoa para pessoa.
A memória de alguém pelo outro depende do tipo de vínculo, afeto e reciprocidade. E foi assim que essa ideia me importunou e se manteve em minha cabeça. Esse foi o mote inicial mas sempre tive a intenção de contar a história como algo claustrofóbico.
Ao longo da produção do Limiar você ressaltou que esse livro fechava uma trilogia iniciada com O Quarto Vivente. Você tem o seu estilo de texto e escrita e os livros seguem um mesmo padrão, mas não consegui encontrar um elemento padrão que fosse comum nos três livros. Acho até cada um muito autônomo em termos de história. Existe um enredo maior que compõe as três obras?
Prefiro não usar o termo ‘trilogia’ e sim ‘arco’. Cada livros independe do outro. São histórias isoladas, pontuadas e que funcionam muito bem sozinhas. Entretanto, ao meu ver, quando finalizei o roteiro de Limiar: Dark Matter, percebi um fato: trabalhei com dilemas que sofremos para aceitar. Sofremos com nossa pequenez e geralmente não aceitamos isso. Somos seres prepotentes, cheios de soberba e discursos prontos. Somos orientados pelo que o momento diz ser adequado. Não conseguimos extrair o melhor de nossos sentimentos e pensamentos. Sempre reagimos com a guarda alta e prontos para atacar pelas costas. Sempre como convém. Sempre com respaldo de outro ou de outros. Sempre imbuindo um respaldo psicológico para nos acalentar. Somos assim.
A partir disso, criei um diferente nascimento em O Quarto Vivente. Desenvolvi o princípio e o término da vida e do amor em nossas vidas em L’Amour: 12 oz. E, de modo superlativo, um tipo de apego pós vida em Limiar: Dark Matter. É exatamente neste aspecto que acredito em que esse arco se encerra.
Para cada mínima ação, uma reação adequada é iniciada. É isso a vida e nunca a aceitaremos assim. Somos prepotentes demais dentro de uma escala universal.
Um ponto em comum que vi entre o L’Amour e o Limiar é a questão da memória. O grande mote do Limiar parece ser o esforço pela manutenção da lembrança de um amigo. O L’Amour trata da passagem do tempo, algo que está incondicionalmente ligado à memória. Esse é um tema importante pra você?
Sim. Mas são tipos diferentes de memórias. Em L’Amour: 12 oz me preocupei com o sentido termodinâmico do tempo, da vida e amor. Em Limiar: Dark Matter o tempo que quis tratar é aquele que se apaga com seu avançar. Como era o sorriso de uma pessoa querida, por exemplo? Não é estranho quando você não lembra mais de algum aspecto de uma pessoa que se foi? Sendo assim e, respondendo a sua pergunta, a memória e os tipos de memórias são das coisas mais incríveis que existem.
Mas também há outros aspectos na história que estão muito presentes e de fato são tão importantes quanto o que citou. O fato do desconhecimento da composição da matéria escura e do uso dela para catalizar a memória, os elementos químicos que compõem todo o universo desde o big bang, o peso e especificidade de uma fagulha para um requerido reinicio (o limiar a que estamos sujeitos a todo momento), o delicado equilíbrio entre caos e ordem, o nome do personagem, alguns cenários, além do poder de imagens inseridas para uma compreensão e vínculos com as histórias anteriormente publicadas. E tudo isso amarrado dentro de uma típica e simples história de vingança.
Quando conversamos pela primeira vez você comentou comigo que “nunca e jamais se deve subestimar o leitor”. Acho o L’Amour uma HQ mais ousada, mas o Limiar parece exigir mais. Não sei se consegui entender a obra plenamente e creio que essa confusão na minha cabeça faz parte da dinâmica que você propôs ao gibi. Entendo o seu ponto de vista, mas você já pensou se existe um limite para a quantidade de crédito que deve ser dado ao leitor?
É claro que você entendeu a obra e os questionamentos ou sua chamada ‘confusão’ fazem parte da dinâmica. E, sinceramente, não acredito que este limite de crédito deva existir. Qual o motivo que supomos que alguma coisa é incompreensível para alguém? A não ser que seja um estudo específico que exige uma base muito boa em, por exemplo, cálculo avançado. Mas é história em quadrinhos. Leitura com imagens. Gosto de tentar instigar o leitor de alguma forma.
Agora o que aceito é que esse limite geralmente não existe e é empurrado goela abaixo há todo momento e em todo lugar. Tudo pronto, pasteurizado e pronto para digerir. Muito do entretenimento é assim. Música, cinema, quadrinhos e muito mais. Sei que é arriscado trabalhar desta forma mas, às vezes, ler uma HQ ou mesmo um livro como se vira as páginas de uma revista ‘Caras’ não me deixa satisfeito. Fico entediado e geralmente não termino a leitura.
Assim como na música, existem diversos andamentos e tempos para uma HQ. Não precisamos ficar presos em tipos de histórias que funcionem. É mais ou menos como aplicar um fórmula matemática ideal para a solução de um problema. Penso que desta forma, qual será sua contribuição acrescentando mais do mesmo? Não quero que me entenda como prepotente ou que esteja dizendo que o que eu faço é algo novo e diferenciado. Não, muito ao contrário. Não inovo em nada. Não inovo no traço, no formato e nem na diagramação do álbum que seria o mais fácil em um primeiro momento. A tecla que insisto em fazer soar é a que temos que acrescentar sempre. Nem que seja em um mínimo detalhe.
Deixando de divagar e voltando a resposta de sua pergunta, acredito demais na empatia para com o leitor. Até pelo fato que sou mais leitor e espectador do que um camarada que faz quadrinhos. Faço uma HQ por ano enquanto leio, assisto e escuto muitas coisas dentro deste mesmo período.
Aliás, pensando nisso, eu fui atrás daquela nossa primeira conversa e lá você fala de alguns cineastas que são referência pra você. Na época você citou David Lynch, Alejandro Iñáritto, Gaspar Noé, Lars Von Trier, Darren Aronofsky e Pedro Almodóvar. Vejo dois padrões óbvios nesses diretores: nenhum facilita o trabalho do público dos seus filmes e as obras deles não costumam ser as mais confortáveis de assistir. Até onde você acha que pode ir em termos narrativos sem afastar o leitor da obra?
Afastar o leitor da obra? Realmente não acredito nisso. Até pelo fato que conto a história que sinto que devo contar. Procuro ser 100% honesto comigo mesmo em cada página que produzo. Como disse, sei que pode ser arriscado trabalhar por essa linha tênue que, pra mim, é uma forma natural de executar o que pretendo. Meus trabalhos são escritos desta forma.
O que me encanta nesses diretores são suas distintas peculiaridades. Me atento demais em figurinos, nas cores, na fotografia e também me encanta o fato de apresentarem o que pretendem. Penso que o Pedro Almodovar não vai filmar algo pelo fato de estar na mídia, saca? Acho que é desta forma que o diálogo com o espectador está aberto.
Não é pelo fato da discussão de gênero, sexismo e outros assuntos estarem tão em voga que vou trabalhar com um destes assuntos, certo?
E você publicou o L’Amour pela Mino e depois quis publicar de forma independente outra vez. Durante a produção do Limiar você foi mostrando seu trabalho para conhecidos e amigos, certo? Que tipo de retorno você recebeu? Você chegou a mudar ou cogitou mudar alguma coisa em função de retorno desses leitores?
As únicas pessoas que conheciam a história desde o roteiro foram o Daniel Lopes, que é o editor da HQ e o Marcelo Maiolo, o colorista.
O trabalho com o Lopes é extremamente tranquilo. Ele entende perfeitamente o que pretendo e todas as sugestões que ele me concedeu eu atendi prontamente pois só tinham a acrescentar e melhorar a narrativa da história. Com o Maiolo é só deixar o monstro trabalhar que é certeza que vai ficar lindo.
No lançamento do quadrinho você comentou comigo que o Viagem Alucinante do Gaspar Noé foi a principal referência que você passou para o Marcelo Maiolo na hora de fazer as cores. O longa tem nas drogas uma de suas temáticas principais. O seu quadrinho também fala de drogas e fiquei com a impressão de vocês estarem querendo remeter a algum tipo de experiência alucinógena. A cor tem um peso mais intenso pra trama nessa HQ do que nas anteriores?
Sim, você está certo. Indico sempre um filme ao Maiolo para eu conseguir transmitir para ele a sensação das cores que pretendo. Acho muito mais fácil indicar um filme do que tentar verbalizar isso. Desta forma as cores para Limiar foram fundamentais para o melhor andamento da narrativa.
E como foi o trabalho com o Marcelo Maiolo? Foi tranquilo chegar à paleta ideal do quadrinho?
Trabalhar com o Maiolo é incrível. Como disse, eu queria transmitir a sensação das cores que desejava e assim indiquei um filme para ele. Não sou um colorista profissional e desta forma não sei como chegar a definir o que desejo nas cores. Por isso indico filmes para ele. Com o roteiro em mãos e o filme para assistir, ele tem a liberdade plena para criar a paleta.
Quando ele começou a me passar as páginas fiquei impressionado! Era exatamente como eu poderia imaginar e queria que as páginas ficassem mas, com certeza, jamais chegaria sozinho naquelas cores. Por isso deixo a dica: se você não é um colorista, chame alguém que entende para fazer isso. Só tem a agregar ao trabalho.
Estamos às vésperas do FIQ e da CCXP. Como autor independente, o que vão representar para você esses eventos no final do ano? Você estabeleceu alguma estratégia de venda para cada uma dessas convenções?
Esses eventos são extremamente importantes para quadrinistas independentes. É onde posso angariar com os leitores o necessário fundo para quitar minha dívida com a gráfica. Além do fato de fidelizar e fornecer um novo quadrinho as pessoas que acompanham e gostam dos meus trabalhos.
Não montei nada especifico para o FIQ mas para a CCXP vou apresentar prints exclusivos.
E já falamos do seu comentário dizendo que essa HQ representava o final de um ciclo. O que esse final de ciclo significa pra você? Em termos da sua carreira, a publicação do Limiar é o fim de uma fase iniciada com o Luzcia?
Não com Luzcia, mas com O Quarto Vivente. Agora estou livre em relação a um formato físico, de como contar uma história e de novas propostas de roteiro. Terminar esse novo álbum me concedeu uma liberdade criativa imensa.
Esse final de ciclo só me traz imensa vontade de apresentar algo totalmente novo e assim deve ser seguido.
O Limiar acabou de sair, mas você já tem planos para o ano que vem, certo? Você comentou que tem em mente produzir algo menor e com um formato e estilo diferente do que usou até agora. Tem algo mais que você pode dizer sobre isso?
Basicamente só isso. Inclusive o modo de produção da minha futura HQ será diferente. Costumo atualizar em meu blog como anda a produção dos trabalhos. Nesse futuro próximo não farei assim. É difícil inovar mas vou tentar algo diferente.
Então para 2016 pretendo trabalhar muito mais com ilustração. Tentar abrir minha primeira lista de commission, quem sabe…
Contando é claro com uma nova história em quadrinhos. Resumindo é isso