Quando o quadrinista Marcelo D’Salete deu início aos seus trabalhos em Mukanda Tiodora (Veneta), ele tinha em mente um projeto menor. Seriam entre 40 e 60 páginas, possivelmente uma obra juvenil e quase sem texto. Eram propostas distintas de seus dois trabalhos prévios, os premiados Cumbe (2014) e Angola Janga (2017). O projeto cresceu, novos personagens surgiram e os temas tratados por ele exigiram novas pesquisas. Às vésperas de sua chega às livrarias nacionais, o livro ficou com 224 páginas. É uma ficção histórica sobre os esforços reais de uma mulher escravizada em busca de sua liberdade na São Paulo do século 19.
Possivelmente a grande HQ brasileira de 2022, Mukanda Tiodora aprofunda temas presentes nos trabalhos anteriores de D’Salete, amplia as reflexões propostas por eles sobre o Brasil contemporâneo e soa como um novo capítulo da verdadeira história brasileira sob a perspectiva e o nanquim de seu autor.
O novo álbum de D’Salete começou a ganhar forma quando ele leu Sonhos Africanos, Vivências Ladinas (Hucitec Editora), obra da pesquisadora e historiadora Maria Cristina Cortez Wissenbach. O livro trata da cidade de São Paulo no século 19 e, principalmente, sua população negra, tanto sua parcela escravizada quanto a livre. Um trecho da obra é dedicado às cartas de Teodora Dias da Cunha, Tiodora, mulher escravizada originária das terras de Angola. Com auxílio de um homem escravizado alfabetizado, ela escreveu sete cartas, para diferentes destinatários, entre autoridades e familiares, tendo em vista sua alforria.
As sete cartas de Tiodora estão reproduzidas na íntegra nos extras da HQ – além de textos complementares de D’Salete e Maria Cristina Cortez Wissenbach, fotos e mapas da cidade de São Paulo do fim do século 19 e uma linha do tempo da luta contra a escravidão no estado de São Paulo.
“Foi um impacto enorme ler as cartas da Tiodora”, me disse D’Salete sobre seu primeiro contato com aquele que viria a ser o foco de seu mais novo quadrinho. “Eu lembro que chorava ao ler as cartas, porque ela é muito contundente. Ela é muito direta em mostrar ali as suas emoções e também o seu interesse de conseguir a sua alforria. E claro, de ter esse contato com pessoas de quem ela foi separada. Este conjunto de cartas, com certeza, como considera a historiadora Cristina Wissenbach, é algo único para pensar na cidade de São Paulo nesse período”.
Na avaliação do autor, as cartas ainda são reveladoras sobre a história de vida de Tiodora e o passado recente do país: “Tiodora vem das terras de Angola, chegou no Brasil e foi vendida no interior de São Paulo. Foi para a cidade de São Paulo, morando na Rua da Liberdade, por volta de 1860. Sendo que o seu esposo e filho ficaram no interior. É preciso entender que o interior de São Paulo e a cidade de São Paulo, ambos escravistas, formavam uma sociedade extremamente desigual e violenta. Mas havia formas diferenciadas de escravidão. E o livro tenta trazer um pouco disso”.
Documentos potenciais
Em 2018, Marcelo D’Salete teve um ano de repercussão inédita para um quadrinista brasileiro. Por Angola Janga, lançado no ano anterior, pela editora Veneta, ele levou o Prêmio Jabuti na categoria Histórias em Quadrinhos, quatro troféus HQMix (Melhor Edição Especial, Melhor Desenhista Nacional, Melhor Roteirista Nacional e Destaque Internacional) e o Prêmio Grampo de Ouro. Ele ainda recebeu o Prêmio Eisner, o mais importante da indústria de quadrinhos dos Estados Unidos, na categoria Melhor Edição de Material Estrangeiro, pela versão em inglês de Cumbe (Veneta). As duas obras foram publicadas nos EUA pela lendária editora Fantagraphics, casa de alguns dos nomes mais célebres das HQs locais.
Tanto em Cumbe quanto em Angola Janga, D’Salete criou tramas ficcionais a partir de suas pesquisas sobre o Brasil escravocrata do fim do século 16. Em Mukanda Tiodora ele criou ficção a partir de uma das cartas de Tiodora, construindo uma trama envolvendo a jornada da mensagem até seu destinatário. Segundo o autor, as cartas foram como um ponto de partida: “documentos potenciais” que resultaram em imagens, personagens e todo um enredo.
“Há aproximações em relação à história, em relação a essa tentativa de imaginar São Paulo no século 19 e, principalmente, sobre a população negra nesse período”, refletiu o autor sobre seu novo trabalho. “Ele é uma forma de aproximação, uma forma de investigação poética e ficcional sobre aquele momento, trazendo diferentes personagens para entender aquele contexto. Não considero um livro de registro apenas histórico, mas é uma tentativa de imaginar a história criando novas formas de interpretar aqueles fatos a partir da ficção”.
A mescla de ficção e história e a apresentação de uma nova trama sobre resistência e enfrentamento ao poder escravista enfatizam o diálogo entre Tiodora, Cumbe e Angola Janga. No entanto, o salto temporal, do século 16 nos dois álbuns prévios, para a segunda metade do século 19 nesse trabalho mais recente, expõe outro contexto da escravidão e outro período da história de resistência da população negra contra o poder escravista.
“Mostro outras estratégias da população negra em relação à tentativa de obter a sua liberdade ou melhores condições de vida. Essa negociação passava pela fuga, às vezes pela formação de quilombos, mas também por uma negociação tensa com os ‘senhores’, usando cartas, como aconteceu com a Tiodora. Então, a escrita, assim como a ação das irmandades negras, eram uma outra forma de tentativa de negociação com esse poder escravista, tentando melhores condições de vidas e também a liberdade”, explica ele.
“É muito importante que a gente entenda que havia diferentes formas de resistência e negociação com o poder escravista”, ressalta D’Salete. “Todas essas formas, de certo modo, são relevantes para a gente compreender que essas pessoas buscavam melhores condições de vida, às vezes conseguindo sua alforria de fato, mas às vezes conseguindo mais tempo para os seus trabalhos, mais tempo para vender as suas coisas, para conseguir juntar dinheiro, para compra da carta de alforria, para os seus momentos festivos também. Tudo isso faz parte dessas formas de negociação e diz respeito a essa história negra de resistência, de luta contra o poder escravista”.
Libertos escravizados
D’Salete focou Mukanda Tiodora no percurso de uma das cartas de Tiodora. Ele mostra a jornada de um jovem que se propõe a fazer a entrega da mensagem em meio a todos os perigos e ao ambiente hostil da São Paulo escravocrata. A trama simples é cercada por uma ambientação reveladora em relação ao seu contexto. O terceiro capítulo da obra, por exemplo, é protagonizado por Luís Gama e Ferreira de Menezes, figuras icônicas e fundamentais do movimento abolicionista. Os dois aparecem no quadrinho em discussão sobre os vários levantes de escravizados que vinham ocorrendo e o fim inevitável da escravidão, mas como o sistema resistia e a escrita poderia ser uma estratégia de combate.
Nascido livre em Salvador, Luís Gama foi escravizado durante a infância. Já adulto, ele conseguiu na Justiça sua liberdade. Depois, como advogado, foi fundamental na libertação de mais de 500 pessoas. D’Salete conta que a presença de Gama acabou se impondo em Mukanda Tiodora – também por ter sido uma das pessoas que relatou o caso de Tiodora na imprensa da época.
“Luís Gama fazia uma crítica acirrada, extremamente forte, contra o poder instaurado naquele momento, contra os grandes fazendeiros e contra a igreja. Se por um lado você tinha os fazendeiros, que possuíam o dinheiro, o poder para manter essa estrutura, por outro lado, você tinha a igreja, que infelizmente dava apoio moral ao regime da escravidão. O Luís Gama nunca foi condescendente com esses abusos e com essa ‘distorção’, vamos dizer assim, dos ensinamentos que vêm da própria igreja em relação à igualdade e tudo mais”.
D’Salete também lembra que, no contexto da HQ, o tráfico de escravizados no Oceano Atlântico estava proibido há mais de 30 anos. Mas a prática seguiu sob a vista grossa das autoridades e da igreja católica: “Luís Gama é provavelmente uma das primeiras pessoas a utilizar o termo ‘libertos escravizados’. Ele compreendia que pela lei, aquelas pessoas já deveriam ser consideradas livres quando chegavam aqui. Mas, de acordo com o conluio entre os grandes fazendeiros e também a polícia da época, todo aparato jurídico e criminal daquele período não tornavam aquilo um crime hediondo”.
Brasil contemporâneo
Além do salto temporal de 300 anos, Mukanda Tiodora também se distingue dos trabalhos prévios de D’Salete em relação à sua arte. Seu preto e branco segue em alto contraste, à base de papel e nanquim, mas dialoga ainda mais com a xilogravura. Ele assume ter se empenhado para alcançar um “novo estilo” e “outra forma de pensar desenho e composição”.
“Acabava pintando boa parte da cena e da figura com aguadas de nanquim e depois ia construindo as partes de luz com tinta branca, corretivo”, me explicou o quadrinista. “Senti que estava precisando desenvolver outras formas de desenho. Fiquei bem feliz com o resultado, com o que consegui até agora. Não sou um artista eclético, que muda muito de traço de um trabalho para o outro. Mas avalio que o livro Tiodora mostra uma nova fase em relação à composição, ao desenho, às texturas. E claro, tem muita influência de artistas latino-americanos também, como Alberto Breccia e um pouco do José Muñoz”.
E após três álbuns ambientados no Brasil colonial, D’Salete assume sentir saudade dos cenários mais urbanos e modernos de seus primeiros livros, como Encruzilhada (Veneta) e Noite Luz (Via Lettera): “Eu tenho alguns projetos focados no Brasil mais contemporâneo. Mas esses outros projetos, mais históricos, acabaram se impondo de uma forma muito grande na minha relação com os quadrinhos. Eram histórias que eu via e pensava ‘é importante que isso seja contado de algum modo’. Mas ainda espero voltar, sim, para as histórias mais contemporâneas”.
Já sobre o Brasil contemporâneo ele se diz esperançoso. Focado na produção de Mukanda Tiodora durante grande parte dos quatro anos de presidência de Jair Bolsonaro, D’Salete está aliviado com a vitória de Lula nas eleições do último mês de outubro, mas também lamentou o número expressivo de votos conquistados pelo atual presidente.
“Creio que teremos o desafio, nos próximos meses e anos, de criar formas de lutar contra essa desinformação praticada de modo extremamente devastador pelo bolsonarismo. Não podemos imaginar um governo contra as populações negras, quilombolas, indígenas, pobres e mulheres, novamente assumindo o poder de uma forma tão desastrosa. Teremos desafios muito grandes para que isso não volte a ocorrer”.