Papo com a editora do selo Barricada, Bibiana Leme

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Difícil imaginar outra coletânea de histórias em quadrinhos tão ambiciosa quanto O Cânone Gráfico. Em 2012 o editor norte-americano Russ Kick publicou o primeiro dos três volumes da coleção, seu objetivo: reunir quadrinistas dos mais diferentes estilos para adaptar para o formato de hq alguns dos textos mais importantes da literatura mundial. O primeiro tomo de Cânone Gráfico será lançado no Brasil em agosto, na leva inicial de obras do selo de quadrinhos Barricada, da Boitempo Editorial. É definitivamente um dos lançamentos do ano para os leitores de quadrinhos. No primeiro álbum estão presentes trabalhos de autores como Will Eisner e Robert Crumb.

Os outros dois títulos inaugurais são Último Aviso, da alemã Franziska Becker, e o nacional Claun: A Saga dos Bate-bolas, de Felipe Bragança. Conversei por email com a Bibiana Leme, editora da Barricada e ela me falou mais sobre a estreia da Boitempo no mercado de quadrinhos, os três primeiros títulos do selo e a possibilidade de produzir uma edição semelhante à de Cânone Gráfico apenas com artistas brasileiros. Segundo ela, mesmo numa fase ainda inicial, a ideia de um “Cânone nacional” já vem sendo estudada. Segue a entrevista:

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A Boitempo tem quase 20 anos de existência. Por que investir em quadrinhos agora?

Na verdade, já faz alguns anos que pensamos nisso, estávamos amadurecendo essa ideia e, este ano, ela finalmente ganhou corpo. Avaliando a cena brasileira, percebemos que poderíamos contribuir para a diversidade de publicações nessa área. Há uma demanda crescente de leitores interessados em quadrinhos e espaço para a publicação de títulos mais ousados, afinados à linha editorial da Boitempo, ou seja, que transmitam uma mensagem libertária e privilegiem temas ligados à política, aos direitos humanos, à crítica social. As editoras que vieram antes de nós fizeram um trabalho maravilhoso de criação de público no Brasil, pelo qual nós temos muito a agradecer. Agora esperamos dar uma contribuição positiva a esse mercado também, com a nossa cara! É assim que a Barricada surgiu: disposta a fincar sua bandeirinha num solo que a cada dia ganha mais respeito no Brasil.

Vocês divulgaram que a Barricada é voltada principalmente a “títulos libertários e de resistência”. Como vocês chegaram a essa linha editorial?

Por ser uma extensão da Boitempo, editora que tem por característica justamente a publicação de obras do pensamento crítico, é natural que a Barricada siga o mesmo caminho. É nosso foco de interesse, é com isso que gostamos de trabalhar. Mas vemos muito o quadrinho como obra de arte: e arte é arte, não tem que se prender a nada. Por isso não queremos limitar o selo, pra gente basta que a temática seja capaz de acender o questionamento e instigar a imaginação. Mas, claro, se isso fizer alguém querer revolucionar algum aspecto que não ande bem na própria vida ou no mundo, melhor ainda!

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O primeiro lançamento de vocês é Último Aviso, da Franziska Becker. Ela é uma cartunista famosa na Alemanha, mas acredito que será o primeiro trabalho dela publicado no Brasil. Por que vocês escolheram ela para inaugurar o selo?

É isso mesmo, esse é o primeiro trabalho da Franziska Becker publicado no Brasil, apesar de ela estar na ativa desde a década de 1970 na Alemanha. A gente estava selecionando quadrinistas para essa primeira investida da Barricada e chegou a ela quase sem querer, mas o estilo dela nos conquistou de cara! Ela tem tudo a ver com a Barricada, porque consegue ser ácida sem ser ranzinza, “sem perder a ternura”, de forma divertida e muito perspicaz, unindo temas diversos da vida moderna numa mesma sacola, por exemplo as questões de gênero, a crítica ao consumismo desenfreado, a ditadura da beleza etc. Com essa temática, ela cria situações hilárias, mas que ao mesmo tempo nos deixam perplexos, por cutucar sem dó os pontos fracos de nossa sociedade. É um estilo completamente corrosivo e bastante original.

E a quarta capa do quadrinho é de autoria do Laerte. Ele já conhecia o trabalho da Franziska Becker? Você sabe o que ele achou do livro?

Como o Laerte conta na orelha, ele conhecia apenas as ilustrações da Franziska, mas isso já tinha chamado a atenção dele há muitos anos. Ele comenta no mesmo texto que gosta do estilo de Franziska – as cores fortes, quentes, e o detalhamento – e até questiona o fato de ela não ter sido publicada no Brasil antes. Tanto a Franziska como outros quadrinistas europeus influenciaram a geração do Laerte e são desconhecidos ainda por aqui. Ou seja: a Barricada e outras editoras de quadrinhos brasileiras têm bastante chão para cobrir até suprir essa deficiência!

Em seguida vocês lançam o Cânone Gráfico. Essa é uma das coletâneas de quadrinhos mais aclamadas já publicadas. Ela deve impressionar muitos leitores de quadrinhos, mas fico pensando na reação de pessoas não acostumadas a ler gibis quando lerem esse livro. Você acha que pode funcionar como uma porta de entrada para os quadrinhos?

Com certeza! Pessoalmente, torço muito para que sim! O Cânone gráfico é uma verdadeira obra de arte, é uma concepção genial! E, por ter como base clássicos da literatura universal, pode sim fazer com que gente que nunca leu um quadrinho queira ler esses. E aí o caminho estará aberto! E estará aberto de forma realmente brilhante: participam dos volumes quadrinistas da envergadura de Robert Crumb, Hunt Emerson, Peter Kuper e Will Eisner, entre muitos outros. E todas as histórias vêm acompanhadas de um texto do organizador, o Russ Kick, explicando o contexto daquela obra e particularidades da adaptação para quadrinhos. Simplesmente um livro delicioso de se ler e de se ver!

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São mais de 50 histórias presentes nesse primeiro volume. Você tem alguma preferida?

Ah, tenho algumas… Impossível escolher uma… Tem as adaptações mais engraçadas, como A epopeia de Gilgamesh,Lisístrata, “A mulher com duas vaginas”, O inferno, de Dante. E tem as mais artísticas, por exemplo a versão da Medeia em tons soturnos e traços minimalistas. O Mahabharata está muito estiloso também. As Cartas de Abelardo e Heloísa estão incríveis, “O pescador e o gênio” tem toda uma apresentação original, A rainha das fadas é bastante exótica… O bacana é isto: tem pra todos os gostos, o organizador não ficou preso a um estilo único e assim conseguiu criar um verdadeiro panorama dos quadrinhos.

Há alguma previsão para o próximo volume da série?

Sim, já estamos trabalhando na tradução e nossa ideia é lançá-lo até meados de 2015.

Vocês também estão trabalhando com autores nacionais. Há alguma possibilidade de algum material semelhante ao Cânone sendo produzido com artistas brasileiros?

Há mais que uma possibilidade: nós já estamos estudando esse projeto! (Mas por enquanto ele ainda está numa fase bem inicial.)

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Sobre o Claun, como vocês chegaram nesse material? Ele compõe um projeto maior do autor da obra, certo?

O Claun vai ser nosso primeiro livro nacional, motivo de orgulho total. O livro é fruto da imaginação fantástica do cineasta Felipe Bragança e faz parte de um projeto transmídia que trata da cultura dos “clóvis e bate-bolas” do Carnaval do Rio de Janeiro, dos quais pouco sabemos, mas que existem desde os anos 1920 e formam uma verdadeira rede de grupos (cerca de 400!) que se unem no carnaval carioca numa espécie de folia do submundo. O Felipe mescla isso tudo à mitologia urbana da cidade, sua diversidade de culturas, a juventude, os conflitos sociais. As ilustrações são de jovens artistas talentosos: Daniel Sake, Gustavo M. Bragança e Diego Sanchez Martines. Essa coisa do projeto transmídia é bem interessante: o Felipe é um cara bastante ligado na questão da linguagem e na quebra de barreiras, então ele teve essa ideia de dar ao projeto Claun diversas formas, fazendo com que as histórias se interconectem entre si. Além da HQ, contempla também uma websérie, um jogo de videogame online e um filme-piloto. A forma como ele chegou à Barricada foi bastante natural, pois conhecia gente daqui. Foi uma sorte do selo!

Há uma cena imensa de quadrinistas nacionais e independentes. Muita gente produzindo muita coisa, tanto na internet quanto no papel. Pela linha editorial da Barricada, é possível esperar alguns desses autores publicando em breve com vocês?

Sim, estamos abertos a tudo que há de novo e incrível sendo feito por aí! Nossa intenção é ampliar o mercado, claro que dentro da nossa capacidade. Temos um conselho editorial do mais alto nível, formado por Luiz Gê (que, aliás, fez o nosso logo), Rafael Campos Rocha, Gilberto Maringoni e Ronaldo Bressane. Junto com a gente, eles estão esquadrinhando as novidades e atentos ao que há de novo por aí com a cara da Barricada!

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Ramon Vitral

Meu nome é Ramon Vitral, sou jornalista e nasci em Juiz de Fora (MG). Edito o Vitralizado desde 2012 e sou autor do livro Vitralizado - HQs e o Mundo, publicado pela editora MMarte.

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