Aguardo ansiosamente cada atualização da Correio Elegante, newsletter semanal mantida pelo cartunista Adão Iturrusgarai já há alguns anos. Graças a ela aprendi um monte sobre o início da carreira dele, li sobre as origens da célebre revista Dundum e compreendi um tanto sobre a lendária geração de autores da qual ele faz parte. Entre vários relatos de viagens e encontros com lendas dos quadrinhos mundiais, uma das fases mais inspiradas da newsletter narrou o período de pouco mais de sete meses do criador de personagens como Aline e Rocky & Hudson vivendo em Paris.
Paris por um Triz – Aventuras de um Cartunista (Zarabatana Books) reúne os textos de Iturrusgarai referentes ao seu período na capital francesa, entre agosto de 1990 e março de 1991.
Com 25 anos ao desembarcar na Europa, Iturrusgarai alimentava sonhos de uma carreira de sucesso na capital mundial do humor escrachado praticado e idolatrado por ele. As 248 páginas do livro sobre as aventuras do cartunista em Paris narram uma montanha-russa emocional marcada por amizades e paixões memoráveis e algumas decepções profissionais. Entre idas a bares com lendas do humor gráfico como Gilbert Shelton e Hunt Emerson e quadrinhos publicados em revistas locais, ele se vê solitário em outro país e sofrendo para arcar com seus gastos.
A importância desse período de Iturrusgarai em Paris para a vida pessoal e profissional do autor fez com que ele adiasse ao máximo seus relatos do período na França.
“Quando a ideia de escrever sobre a minha estada em Paris começou a tomar um espaço importante da minha cabeça, comecei a fazer anotações, buscar fotos, blocos de rascunho e contatar pessoas”, me contou o autor. “Fui guardando tudo isso em um documento de Word. Um dia, depois de não ter mais o que escrever, respirei fundo e dei um nome a esse doc: Memórias de Paris. Então comecei”.
“No início foi meio intuitivo e anárquico. Depois me dei conta de que, mesmo sem ter experiência em folhetim semanal, os textos fluiam legais e sempre ficava um gancho para o seguinte. Eu tenho muito boa memória para coisas que aconteceram há muito tempo e tinha algumas fotos e anotações que me ajudaram a alinhavar as histórias. Lembro perfeitamente de alguns acontecimentos, como se tivessem acontecido ontem”.
Assim como a newsletter que o inspirou, Paris por um Triz é engraçado, trágico e revelador sobre a formação e a personalidade de um dos autores mais importantes do humor sem-noção nacional. Torço para ver outros recortes da newsletter de Iturrusgarai também acabarem no papel.
Reproduzo agora a íntegra do papo que bati por email com o cartunista. Ele me falou sobre o começo da Correio Elegante, comentou o impacto do período em Paris em sua vida pessoal e profissional e refletiu sobre sua estreia como escritor. A seguir, papo com Adão Iturrusgarai:
“Sempre tive vontade de escrever…”
Os relatos presentes no seu livro foram inicialmente publicados na sua newsletter. Você pode contar um pouco, por favor, sobre o ponto de partida da Correio Elegante?
Inicialmente o Correio era uma newsletter semanal com cartuns, frases e outras maluquices minhas. Era também uma forma de divulgar os produtos da minha loja virtual. Depois que veio a ideia de escrever textos. Eu sempre tive vontade de escrever, mas foi um processo lento até criar coragem. Comecei pouco a pouco, com textos curtos, até voar mais alto. Depois o texto se tornou o prato principal da newsletter.
E você sempre teve em mente narrar o seu período em Paris na newsletter?
Não. No início escrevia contos soltos e curtinhos. Depois vieram as memórias de infância, adolescência e época da faculdade. Na sequência sobre viagens pelo Brasil e a Nova York. Paris estava na manga mas eu sabia que era algo que tinha que ser longo e mais complexo. Demorei uns três anos para começar. E confesso que, no início, jamais imaginei conseguir escrever um livro desses.
Houve algum momento em que você sentou para planejar e organizar quais histórias seriam contadas em cada edição da newsletter? Pergunto isso porque eu sempre li a Correio Elegante como um imenso fluxo de memória, com você contando suas histórias à medida que elas vinham à mente. O que você pode contar sobre esse processo?
Quando a ideia de escrever minha estada em Paris começou a tomar um espaço importante da minha cabeça, comecei a fazer anotações, buscar fotos, blocos de rascunho e contatar pessoas. Fui guardando tudo isso em um documento de Word na nuvem. Um dia, depois de não ter mais o que escrever, respirei fundo e dei um nome a esse doc: Memórias de Paris. Então comecei. No início foi meio intuitivo e anárquico. Depois me dei conta de que, mesmo sem ter experiência em folhetim semanal, os textos fluiam legais e sempre ficava um gancho para o leitor esperar pelo seguinte. Eu tenho muito boa memória para coisas que aconteceram há muito tempo e tinha algumas fotos e anotações da época que me ajudaram a alinhavar as histórias. Lembro perfeitamente de alguns acontecimentos, como se tivessem acontecido ontem.
“Eu queria mergulhar na cidade, ver, sentir, viver como se fosse um francês”
Essa sua temporada em Paris foi marcada por grandes encontros. Houve algum em particular que te impactou mais? Houve alguma relação pessoal durante esse período que foi mais marcante para a sua vida?
O mais legal disso tudo são as amizades. Estamos em 2022. Passaram 32 anos e eu tenho amigos parisienses. Sempre que volto lá, dou um jeito de reencontrar essas pessoas e visitar lugares que morei ou frequentei. As amizades podem ser eternas e isso é algo que emociona muito.
Minha ideia inicial era passar dois dias em Paris em 2019, quando viajei a Madri, e percorrer a cidade seguindo meus passos, a cronologia das minhas mudanças. E ir fotografando e filmando para ajudar no processo. Mas infelizmente não pude fazer o bate e volta Madri-Paris-Madri. Também tiveram os encontros com grandes artistas como: Gilbert Shelton, Jano, Hunt Emerson. Ah, e claro, um show do Pixies. Este acabou ficando de fora do livro.
Passados quase 30 anos desse seu período na França, qual balanço você faz dessa sua temporada em Paris? Como você acha que esses anos convivendo com autores, cartunistas e quadrinistas estrangeiros impactou as suas técnicas e a forma como você pensa o seu trabalho?
Não desenhei muito, compulsivamente, em Paris. Eu queria mais mergulhar na cidade, ver, sentir, viver como se fosse um francês. No final da minha estada me dei conta que Paris tinha influenciado muito o meu estilo. E foi um grande aprendizado. Talvez um dos maiores da minha vida. Mesmo nos momentos mais sofridos. E felizmente eu pude desfrutar da Paris analógica. Era uma cidade mais escura e mais leve. Hoje está demasiado frenética. Foi a preparação para voltar para o Brasil e encarar mudar para São Paulo. Paris foi o estágio para São Paulo.
Não consigo pensar em artistas que prezem tanto pela liberdade de expressão e pelo seu direito de usá-la quanto os franceses. O quanto a forma como os franceses pensam humor influenciou o seu trabalho após esse período em Paris?
Eu já estava “pego” pelo humor francês mesmo antes de ir para lá. Essa foi uma das razões de escolher a cidade. O humor naquela época era mais livre. Os franceses prezam muito a liberdade de expressão. Quando rolou o atentado ao Charlie Hebdo eles foram às ruas para manifestar-se, mesmo não concordando com algumas coisas que a revista publicava.
“Meus maiores ídolos são franceses”
E o que mais te interessa na forma como os franceses pensam o humor? Aliás, o que mais te interessa em fazer humor hoje?
Esse humor sacana, safado e sem freios. Principalmente da época da Charlie Hebdo, L’Echo des Savanes, Hara Kiri. Wolinski, Reiser, Vuillemin, meus maiores ídolos são os franceses.
Qual balanço você faz da sua experiência escrevendo a Correio Elegante e editando Paris por um Triz? É muito diferente para você publicar um livro apenas com textos, sem imagens, em comparação com seus títulos prévios com ilustrações?
É diferente, tipo “brinquedinho novo”, hehe. Escrever sempre foi um desafio e conseguir lançar um livro desses foi como realizar um sonho. E estou gostando de experimentar outras coisas, além do cartum: artes plásticas, escrita, fotografia. A verdade é que estou muito satisfeito com minha produção atual. E nem sempre foi assim.
Você poderia recomendar algo que esteja lendo, ouvindo ou assistindo no momento?
Séries: vi um documentário do Dave Chapelle, humorista também sem papas na língua. Me diverti muito com Inbetweeners, série inglesa. Adoro também o humor britânico. Qualquer coisa do Monty Phyton. Breaking Bad, a melhor série de todas.
Livros: Marrom e Amarelo, Paulo Scott. Pergunte ao Pó, do John Fante. Serotonina, do Michel Houellebecq. Sobre os Ossos dos Mortos, Olga Tokarczuk. Paris é Uma Festa, do Ernest Hemingway. O Velho e o Mar, também do Hemingway.