Conversei com a quadrinista norte-americana Alison Bechdel sobre o álbum O Segredo da Força Sobre-Humana (Todavia), terceiro álbum da autora dos clássicos Fun Home: Uma Tragicomédia em Família e Você É Minha Mãe? Um Drama em Quadrinhos. A obra é centrada na relação da artista com seu próprio corpo e suas práticas de exercícios físicos. Transformei esse papo em texto para a Folha de S.Paulo. Você lê o meu trabalho para o jornal clicando aqui. Compartilho a seguir, a íntegra da minha conversa com Alison Bechdel, saca só:
“Meu processo criativo sempre foi uma espécie de teste de resistência”
Tenho a impressão que muito da prática de exercícios físicos diz respeito a foco e disciplina. Também acredito que parar para fazer um quadrinho (ou qualquer obra de arte, na verdade) também envolve muito foco e disciplina. Enfim, você vê alguma relação física e/ou emocional entre praticar exercícios físicos e fazer um quadrinho?
Sim, muito! De muitas formas, meu processo criativo sempre foi uma espécie de teste de resistência. É difícil ficar sentada na cadeira e manter o foco no trabalho no início de um projeto, da mesma forma que ao começar uma corrida você pode se sentir fria e cansada. Então, conforme você avança e se aquece, as coisas começam a fluir. Mas é preciso resistência para continuar, para levar um projeto até o fim. Suponho que tudo isso também seja verdade para a escrita. Mas desenhar é uma atividade mais física do que escrever, eu diria. Você está usando o braço e a mão para manipular lápis e canetas, lutando com a materialidade da tinta e do papel. É muito físico, muito analógico!
Aliás, O Segredo da Força Sobre-Humana vai nas origens da sua relação com a prática de exercícios físicos. Fico curioso, você se lembra da memória mais antiga da presença de quadrinhos na sua vida?
Acho que os primeiros quadrinhos que vi foram provavelmente os de Chas. Addams. Ele era um cartunista da revista New Yorker, conhecido por seus personagens da Família Addams, espécies de monstros que viviam em uma casa vitoriana caindo aos pedaços. Meus pais tinham algumas coleções de suas obras que eu “lia” antes de realmente saber ler. A velha casa assustadora e as pessoas estranhas me lembravam muito da minha própria família.
Você fala em alguns momentos do livro sobre o barato que certas práticas de exercício te dão. Tenho a impressão que alguns dos meus momentos de maior criatividade vieram durante práticas de exercícios físicos – talvez principalmente nos instantes de “estado de fluxo”, conceito que aprendi lendo O Segredo da Força Sobre-Humana. Isso também acontece com você? Você tem ímpetos criativos durante suas práticas de exercícios?
Muitas vezes tenho a experiência de sentar a manhã toda escrevendo no meu computador e, finalmente, sentir que preciso me levantar, sair e me mexer. Então, saio para correr ou caminhar e, quase imediatamente, uma solução para qualquer problema com o qual estou lutando vem até mim. Mas não posso planejar ou tentar fazer isso – só posso parar de pensar e deixar minha mente vagar livremente. Normalmente, tenho pelo menos uma boa ideia como essa por saída, mas de alguma forma é sempre uma surpresa.
“A exuberância da cor parecia importante para um livro que fala tanto sobre vida, vitalidade e natureza”
Voltando à relação entre exercícios e quadrinhos. Fico com a impressão que a prática constante de exercícios físicos torna mais fácil a manutenção dessas práticas. O mesmo vale para a sua profissão? Após tantos anos trabalhando em quadrinhos autobiográficos, ficou de alguma forma mais fácil fazer um quadrinho autobiográfico?
Eu gostaria que sim. Com o exercício, fazer a mesma coisa todos os dias é uma coisa boa. Mas com o trabalho criativo você tem que continuar fazendo coisas novas e diferentes, o que parece ficar mais difícil quanto mais tempo você faz. Mas certamente é verdade que, para escrever e desenhar, você precisa praticar essas coisas regularmente. Caso contrário, você começa a perder o toque rapidamente. Durante o tempo em que escrevi O Segredo da Força Sobre-Humana, passei por um período em que não fazia nenhum desenho e meio que travei. Eu tive que me esforçar para voltar à prática diária. Comecei com desenhos de algo que tinha feito naquele dia, um diário visual, e usava pincel em vez de caneta. Isso me forçou a me soltar mais e a confiar em mim. Essa prática diária influenciou minha decisão de desenhar certas cenas neste livro apenas em preto e branco, com um pincel, para evocar alguns momentos cruciais da minha vida que pareciam transcendentes, como se estivessem me dando um vislumbre além do véu da realidade cotidiana.
As cores de Fun Home e Você É Minha Mãe? são aspectos muito importantes desses dois livros, sendo que em ambos você trabalha com paletas muito limitadas. O que significou para você a decisão de trabalhar com uma paleta mais ampla em O Segredo da Força Sobre-Humana?
A exuberância da cor parecia importante para um livro que fala tanto sobre vida, vitalidade e natureza. Costumo evitar cores em meu trabalho, em parte porque é muito trabalhoso – não sei como as pessoas fazem isso, honestamente. Mas criei uma técnica que pensei que seria mais rápida e fácil do que em cores. Eu usaria apenas ciano, magenta e amarelo como cores exatas e as combinaria em camadas. Isso me daria uma bela paleta brilhante, sem todas as infinitas decisões e preenchimentos que a cor total implicaria. Além disso, foi um aceno divertido para a maneira como os quadrinhos costumavam ser coloridos – esse processo incrivelmente tedioso em que você realmente precisava cortar as áreas de ciano, magenta e amarelo no fotolito, por camadas.
De alguma forma, não previ que minha técnica rápida e fácil se tornaria ainda mais tediosa e meticulosa do que à moda antiga. Mas, felizmente, minha companheira Holly interveio para ajudar em tudo. Ela “coloriu” à mão com tinta cinza no papel, não no computador. Não pudemos ver a cor até o final do processo, depois que essas centenas de camadas cinzas foram digitalizadas e manipuladas no Photoshop. Estou muito feliz com o resultado final. É uma combinação da qualidade ligeiramente extravagante e fora do registro típica de quadrinhos antigos com um efeito de aquarela orgânico e quente.
“Sou grata por ter passado os primeiros 35 anos da minha vida sem internet”
Você retrata no livro o impacto da publicidade e de programas de TV ligados à prática de exercício físico no seu interesse pelo tema, ainda durante a sua infância. Tenho a impressão que as redes sociais acabaram tomando esse espaço como grandes plataformas de difusão de certos padrões estéticos de beleza e de fórmulas fáceis para o alcance da “melhor forma física”, mas você não parece muito ligada a redes sociais – pelo menos não se retrata assim no livro. Acho que o que quero saber é: como é a sua relação com redes sociais?
Você está certo, quase não há nada no livro sobre redes sociais. Isso é em parte uma função do recorte temporal do livro. Cada um dos seis capítulos cobre uma década da minha vida, e as redes sociais só se tornaram realidade no capítulo final do livro, nos anos 2010. Além disso, estou velha! Com certeza dediquei algum tempo ao Facebook, Twitter e Instagram, mas nunca fiquei viciada neles como muitos jovens parecem ficar. Sinto muito por essas crianças, especialmente aquelas que internalizam esses padrões malucos de estética e condicionamento físico. Quer dizer, esses sempre estiveram por aí, na TV ou nas revistas, mas tudo fica muito mais intenso e viciante quando é no celular. Todos os dias sou grata por ter passado os primeiros 35 anos da minha vida sem internet.
O capítulo final do livro mostra você trabalhando em meio ao “colapso da humanidade”, com o Trump e tudo de ruim que estava acontecendo no fim dos anos 2010. Você vê a humanidade em situação um pouco melhor desde então? Você é otimista em relação ao nosso futuro?
Estou lutando para ser otimista. Eu sei que o pessimismo só é funcional na medida em que leva você a agir para evitar que as coisas piorem ainda mais. Então tento manter esse equilíbrio instável entre o realismo sobre nossa situação e a fé de que começaremos coletivamente a fazer as coisas necessárias para nos salvar. É tão frustrante que todos nós estejamos envolvidos nessas lutas políticas desnecessárias enquanto ignoramos o terrível problema da mudança climática irreversível. Acho que é por isso que todo mundo está flertando com o autoritarismo – o estresse real de perder nosso habitat está levando as pessoas à loucura.
O ambiente político dos EUA parece ter melhorado um pouco com a saída do Trump, mas parecer haver um reacionarismo generalizado em voga em todo o mundo. Os seus livros, por exemplo, são alvo constante de censura em bibliotecas e escolas do seu país. O que você acha que está acontecendo? Quero dizer, você vê algo atípico na humanidade no momento ou é e sempre será assim?
Eu gostaria de poder dizer que foi atípico, mas qualquer pessoa com um mínimo de conhecimento histórico pode ver que estamos nos repetindo. E não tenho certeza se as coisas melhoraram qualitativamente desde Trump – ele mudou a natureza da política conservadora e os legisladores estaduais estão tentando ser ainda mais radicais do que ele. O Partido Republicano costumava representar “Estado Mínimo”, mas agora eles estão focados em proibições de livros e legislação anti-LGBT, eliminando o acesso ao aborto, tornando mais difícil para as pessoas votarem. Aparentemente, eles não têm problemas com o “Estado Máximo”, desde que restrinja os direitos e a integridade corporal de outras pessoas. Pensei por muitos anos que o conservadorismo desapareceria à medida que a população envelhecesse. Mas eu subestimei as práticas cínicas e até mesmo ilegais que as pessoas estão dispostas a ir para se agarrar ao poder.
“Tenho lutado para entender e abraçar minha mortalidade desde criança”
Tanto Fun Home quanto Você É Minha Mãe? giram em torno de morte. Você encerra O Segredo da Força Sobre-Humana com uma reflexão sobre mortalidade. O quanto a sua relação com a morte e a passagem do tempo mudou ao longo dos anos?
Sinto que tenho lutado para entender e abraçar minha mortalidade desde que era uma criança pequena crescendo na casa funerária da minha família. Mas as coisas neste planeta chegaram a tal ponto que todos estamos enfrentando não apenas nossa mortalidade individual, mas a extinção como espécie. Temos que mudar ou morrer.
Há uma luta em curso entre valores progressistas e conservadores. As coisas sobre as quais estou escrevendo – abraçar a mudança, superar o narcisismo, reconhecer o Outro, encarar nossa mortalidade – são inerentemente progressivas. A ideia de força e poder que era tão atraente para mim quando criança, a atração de não depender de mais ninguém, de negar a mortalidade, a vulnerabilidade e a interconexão – esse é um valor profundamente conservador.
O verdadeiro segredo da força sobre-humana é entender que o bem individual é o bem coletivo. Encarar o fato de que você é apenas um dos 7,6 bilhões de outros eus no planeta e que, como todos eles, você vai morrer, não é tão ruim assim! Há uma grande libertação nisso. Há exuberância, até alegria. E esses são sentimentos muito melhores do que ficar preso na cela de seu eu imaginário e musculoso.
O que mais te interessa em relação à linguagem dos quadrinhos atualmente?
Tenho lido muito o trabalho da Nora Krug. Ela escreveu um livro chamado Heimat: Ponderações de uma alemã [nota do editor: publicado no Brasil pela Companhia das Letras] sobre sua terra e história, sobre a história de sua família durante a Segunda Guerra Mundial. No momento, estou lendo seu projeto mais recente, que ainda não foi publicado, Diaries of War, no qual ela ilustra as entradas do diário semanal de um jornalista ucraniano e um artista russo enquanto a guerra russa na Ucrânia se desenrola. É incrível – muito mais íntimo do que os noticiários, realmente transmitindo a textura da vida durante a guerra e as tragédias menores sobre as quais não lemos necessariamente nos noticiários. Também sou uma grande fã da Rutu Modan, a quadrinista israelense. Adoro os desenhos dela – eles me lembram do Hergé, que é possivelmente meu cartunista favorito de todos os tempos.
A última: você pode recomendar algo que esteja lendo/assistindo/ouvindo no momento?
Minha companheira e eu assistimos obsessivamente ao canal do YouTube de um holandês, Martijn Doolaard, que tem postado vídeos enquanto restaura dois celeiros de pedra antigos, em ruínas, no alto dos Alpes italianos. Não consigo explicar o apelo… Talvez seja uma coisa lésbica. Mas é profundamente reconfortante ver esse cara trabalhar lenta e constantemente sozinho neste projeto de construção em um lugar bonito.