Risca Faca é o primeiro álbum do quadrinista André Kitagawa desde o lançamento de Chapa Quente, em 2006. Apesar dos 15 anos que separam a publicação das duas HQs, o título mais recente do autor é fruto direto de seu trabalho prévio. As três histórias impressas nas 120 páginas em preto e branco da obra de estreia da editora Monstra foram concebidas em meio às várias tramas policiais de seu trabalho anterior.
“Três idéias, tidas 15 anos atrás, a serem desenvolvidas à luz do que eu e o mundo somos hoje, num contexto bem diverso”, me diz Kitagawa sobre o ponto de partida de seu mais recente trabalho.
As três tramas de Risca Faca estão interligadas por detalhes. A primeira das histórias é centrada em uma noitada com consequências extremas para uma mãe e seu filho, a segunda mostra um grupo de mulheres com propósitos escusos ao entrar de penetra em uma festa e a terceira narra a jornada de um homem em situação de rua. Além das conexões sutis entre seus enredos, predomina nas três o clima de tensão e ânsia por violência implícita no título.
Também dialoga com Chapa Quente a urbanidade como pano de fundo da HQ.
“Fiz questão de explorar a diversidade e os contrastes do espaço urbano”, conta Kitagawa. “Tem o centro, mas tem a periferia, tem bairro de rico… Vias expressas que funcionam como muros separando esses espaços, segregando as pessoas. Essa conformação determinando os rumos dos personagens… É São Paulo, mas também é um planeta imaginário.”
Compartilho a seguir a íntegra da minha conversa com Kitagawa. Ele me falou sobre o desenvolvimento de Risca Faca, expôs as origens de sua preferência pelo grafite como material de trabalho e refletiu sobre a relação dele com o teatro e o cinema norte-americano dos anos 1970, entre outros temas. A seguir, papo com André Kitagawa:
“Pode-se dizer que Risca Faca começa onde termina o Chapa Quente…”
Você pode contar, por favor, um pouco sobre a origem do Risca Faca? Houve algum ponto de partida em particular para o desenvolvimento desse trabalho?
Pode-se dizer que o Risca Faca começa onde termina o Chapa Quente, álbum que lancei há 15 anos. Ele parte de três de várias idéias para histórias curtas que eu pretendia fazer na época, mas que acabaram não se concretizando. De tempos em tempos eu pensava nelas, as aprimorava mentalmente, mas nunca cheguei sequer a esboçá-las no papel. A última história do álbum, Já Morreu, eu até cheguei a finalizar poucas páginas, mas parou aí. Durante a pandemia resolvi inscrever algum projeto no Proac e acabei propondo fazer uma publicação a partir dessas três idéias, que ainda precisavam ser desenvolvidas. Resolvi também que essas três histórias, mesmo que independentes, se entrelaçariam de alguma forma. Três idéias, tidas 15 anos atrás, a serem desenvolvidas à luz do que eu e o mundo somos hoje, num contexto bem diverso. Esse foi o ponto de partida.
E você pode falar, por favor, um pouco sobre as suas técnicas? Quais materiais você usou para a produção de Risca Faca? Como foi a sua rotina de trabalho nesse livro? São técnicas e rotinas muito distintas da sua época trabalhando em Chapa Quente?
Eu já fui adepto do pincel e posso dizer que fui um dos precursores do uso do pincel japonês, o fude, nos quadrinhos, ao menos no Brasil. Mas ao longo desses anos fui desenvolvendo uma técnica a partir do uso do grafite, que é um material bem mais cômodo de se usar. Um dos “starts” pra isso foi um desenho do Fabio Zimbres, que tinha uma textura que eu achava maravilhosa. Eu perguntei a ele como tinha chegado àquele resultado e ele disse que era a sujeira que tinha ficado no papel pelo uso excessivo do grafite, uma sujeira quase invisível que ele “puxou” usando o contraste no Photoshop. Então, a técnica que eu uso é baseada no grafite, de diversas durezas e formas (até grafite em pó), e no posterior tratamento no Photoshop, onde separo e sobreponho uma camada de preto e outra de cinza a partir de um mesmo desenho (todas as páginas tem um original). É como tocar guitarra com pedal: fazer um som analógico passar por filtros eletrônicos, potencializando-o, sobrepondo camadas… O pincel é um instrumento bem mais nobre, mas o grafite me dá bem mais flexibilidade pra chegar ao resultado que eu quero, pois posso continuamente apagar e redesenhar, inclusive usando caneta-borracha pra desenhar. A sujeira advinda disso, acabo incorporando. É como esculpir em barro em vez de pedra: posso errar à vontade, refazer o que não agrada, e isso não tem preço. Sim, eu poderia usar mesa digitalizadora, mas nunca me adaptei a ela, ainda me sinto mais a vontade com papel.
“Sou meio obcecado em fazer um quadrinho ‘total’, fazer aquilo que seja próprio dos quadrinhos”
Já que falei sobre o Chapa Quente, quais você considera as principais transformações nas suas percepções e nos seus interesses sobre quadrinhos de 2006 para cá?
Pra falar a verdade, faz tempo que não sou um aficionado por quadrinhos, até mesmo porque hoje não sou aficionado por nada, rs. Sim, leio esporadicamente, mas me sinto quase um leigo no assunto. Ressalto que não tenho orgulho nenhum disso, apenas que essa é minha realidade, e devo perder muito com essa postura displicente. Mas de lá pra cá dá pra dizer no quanto a qualidade dos desenhistas brasileiros deu um salto. Muitos artistas, desenhando em alto nível. E isso deve ser reflexo do quanto os quadrinhos passaram a ser mais aceitos e admirados de maneira geral. Tanto a nível de entretenimento quanto de arte. Eu sou de uma época em que ler e fazer quadrinhos era o fim da picada, uma coisa quase masoquista, rs. É muito bom ver que os quadrinhos hoje se mantém de pé, de uma maneira muito vibrante. E é muito bom voltar a fazer parte desse mundo.
Principalmente por causa dos seus trabalhos com cartazes de peças, é pública a sua proximidade com o teatro. Você vê algum impacto dessa relação com o teatro no desenvolvimento do roteiro e da narrativa de Risca Faca?
Acho que a minha relação com o teatro me fez perceber sobretudo o quanto os quadrinhos são uma arte à parte, com luz própria. Talvez essa relação tenha ressaltado mais as diferenças do que as similaridades. Por exemplo, longos diálogos podem ser muito legais no teatro, mas nas minhas HQs procuro me conter, sintetizar ao máximo. Acho que sou meio obcecado em fazer um quadrinho “total”, fazer aquilo que seja próprio dos quadrinhos, respeitar a sua vocação. Estou sempre vigilante pra não ceder à tentação de ser muito “literário”, não deixar que as palavras roubem o protagonismo que, no que proponho, deve ser das imagens no processo narrativo. De resto, acho que tive boas lições no que se refere à arte da atuação. Se for ver, enquanto desenhista, eu acabo fazendo o trabalho que seria do atores na minha HQ. Eu devo “interpretar” os personagens. E pra interpretá-los, devo entendê-los, e de alguma maneira me identificar com eles. De forma que eu acabo me identificando com todos os personagens.
“Nunca botei muita fé na dicotomia roteiro escrito/desenho”
Você pode contar um pouco sobre o desenvolvimento de Risca Faca? Você chegou a finalizar um roteiro para o livro inteiro antes de começar a desenhar?
Eu a princípio achava que esse era o processo “correto”: deixar tudo bem planejado e definido antes de começar a mandar bala, tal qual um projeto de arquitetura. Não falo de um roteiro escrito, mas de um esboço geral razoavelmente definido. Isso sempre funcionou bem pra mim com histórias de seis ou 10 páginas, mas aqui estava lidando com histórias de mais de 30 páginas. Depois de meses de um processo de roteirização pouco metodológico, tudo o que tinha eram cadernos cheio de anotações, esboços que me diziam muito pouco e muita confusão mental, rs. Aí percebi que se dependesse de definir tudo antes não começaria a desenhar nunca, pois a coisa simplesmente não estava ficando de pé. Então comecei a fazer “fazendo”. Eu esboçava o que iria acontecer em duas ou três paginas e mandava ver. Muitas soluções de roteiro só surgiram durante esse processo, coisas que não poderiam ser antevistas. E assim fui, sucessivamente, fazendo o caminho andando, nem sempre sabendo pra onde eu tava indo, seguindo um esboço mental, mas muito aberto ao que vai se revelando durante o desenhar. Eu particularmente nunca botei muita fé na dicotomia roteiro escrito/desenho, sobretudo quando eu sou tanto o roteirista quanto o desenhista. Pra mim é como se fosse uma coisa só, é como compor uma música tocando o instrumento.
Como lembra o Marcelo D’Salete na introdução do livro, o seu trabalho é bastante focado no ambiente urbano. Você pode falar um pouco sobre a sua relação com a cidade? Como você se relaciona com o ambiente urbano e como ele impacta a sua rotina?
O ambiente urbano é o cenário natural pra mim, já que sempre vivi na cidade de São Paulo. Acho que tem uma coisa de ordem estética que sempre me atraiu, os prédios, as pixações… E sempre gostei de filmes com essa temática. Sobretudo o centro da cidade, sempre me fascinou, e foi onde acabei morando. Gosto muito do estilo de vida que o centro propicia, que é bem diferente dos bairros residenciais de classe média, de onde eu vim originalmente. Mas acho que isso não afeta tanto minha obra, pois no fundo a cidade das minhas HQs é imaginária, é fictícia, apesar de ser claramente baseada em São Paulo. Crio histórias que se passam nela como poderia criar histórias que se passam em outro planeta. Meus personagens são todos alienígenas tentando se virar num ambiente inóspito. É claro que a vivência sempre inspira, te dá um chão, mas ela não é pré condicão para a criação. Em Risca Faca, fiz questão de explorar a diversidade e os contrastes do espaço urbano. Tem o centro, mas tem a periferia, tem bairro de rico… Vias expressas que funcionam como muros separando esses espaços, segregando as pessoas. Essa conformação determinando os rumos dos personagens… É São Paulo, mas também é um planeta imaginário.
“Fica quase impossível não falar das nossas mazelas enquanto sociedade”
E Risca Faca é bastante focada em violência e injustiça social. Acho que é explícito como a violência e a injustiça social aumentaram desde o início do governo Bolsonaro. Como a atual realidade sócio-política brasileira impactou a produção de Risca Faca?
Acho que acabou impactando significativamente, e isso foi inevitável. Eu costumo ficar muito ligado nos meios noticiosos, inclusive através das redes sociais. É quase que o dia inteiro. E quando estou num processo de criação, fico muito receptivo aos estímulos externos. Fora isso, vivemos em um daqueles momentos em que a realidade tende a superar a ficção. Tudo está tão trágico, perverso, irracional, e acho que isso me induziu a tornar tudo mais espinhoso e absurdo. Como disse, eu gosto de encarar minhas histórias como pura ficção, são histórias inventadas, passadas numa cidade imaginária, sem propósito bem definido. Nunca tive a pretensão e nem a intenção de “denunciar” o que é a realidade, mas gosto de partir da realidade, de me inspirar nela, pra criar minhas ficções. E elementos da realidade, como a injustiça social, muito naturalmente estão presentes nas histórias, às vezes até como meio de articulação. Não concordo que as minhas histórias sejam focadas nisso, ou em violência, isso nunca foi meu propósito e nem me soa muito bem. Mas são elementos que, sim, estão presentes nas minhas histórias, e a questão é: por que não deveriam estar?
Falando em injustiça social, há um paralelo recente entre obras de autores brasileiros com o cinema neorrealista italiano. Marcello Quintanilha, Marcelo D’Salete, Shiko e João Pinheiro são alguns dos autores nacionais com trabalhos muito focados em elementos característicos desse movimento – com obras protagonizadas por indivíduos de classes operárias, presos em ambientes sociais injustos e quase sempre frustrantes. Você vê um diálogo de Risca Faca com a produção desses autores? Você tem alguma relação com o cinema neorrealista italiano?
Acho que da minha parte o que existe mais uma é uma convergência. O João é mais novo, mas os outros devem ter quase a mesma idade que a minha. Acho que em comum sempre tivemos o propósito não só de fazer quadrinhos autorais, mas também “brasileiros”, uma idéia que hoje pode parecer banal, mas ao menos pra mim, que na adolescência tinha a pretensão de fazer HQs de super herói, era um desafio e tanto. Estou falando de criar quadrinhos a partir da nossa realidade, não a partir da realidade de outros países e culturas. Enfim, criar algo “autêntico”, temática e esteticamente, não um arremedo de qualquer coisa vinda de fora, por mais que gostemos dessa coisa (sim, pois isso não significa desprezo pelo que vem de fora, longe disso). E quando vamos partir da nossa realidade, fica quase impossível não falar das nossas mazelas enquanto sociedade, simples assim. Quanto ao neorrealismo italiano, eu até já vi os principais filmes, mas nessa seara os filmes americanos dos anos 70 sempre me inspiraram muito mais, principalmente os do Scorecese. Filmes “realistas”, mas mais que isso.
Aliás, outro padrão entre você e esses autores que mencionei é o preto e branco. Por que a sua preferência pelo preto e branco? O que mais te atrai no preto e branco?
Em parte talvez seja uma questão geracional. Creio que pra nós o PB seja mais a norma que o desvio. Acredito que todos nós admiramos artistas que desenham em PB. Eu sou do tempo do zine em xerox, então não tinha nem como. Eu já fiz HQs coloridas, e tendo a achar que pra adicionar cor é preciso ter algum propósito maior, mesmo que apenas de ordem estética. Botar cor só pra ficar mais padrãozinho não me interessa. Acho que o último álbum do Quintanilha [Escuta, Formosa Márcia], que é colorido, ilustra bem esse sentimento. Não se trata de desenhos PB aos quais foram adicionados cores só pra tornar a coisa mais atrativa. É pura cor, uma explosão de encher os olhos. Tudo muito bem pensado. E formidável.
“Posts sobre a situação política e o fabuloso mundo das subcelebridades acabaram me inspirando muito em Risca Faca”
Estamos fazendo essa entrevista e Risca Faca nem foi lançada ainda, então talvez seja uma pergunta um pouco injusta, mas vamos lá: você já tem algum outro trabalho em quadrinhos em mente para um futuro próximo?
Pro futuro próximo, eu e o [Guilherme] Lorandi, editor do Risca Faca, conversamos sobre uma compilação de histórias antigas, às quais eu adicionaria algumas inéditas. Só uma idéia. Para além disso, nada está muito definido, nem mesmo se vou continuar a fazer HQ, vai saber… Mas se for o caso, penso em dar passos adiante, fazer finalmente uma história longa, flertar com histórias de gênero, mas sempre no intuito de subvertê-las em alguma medida. Penso muito em fazer uma história policial, ou de ficção científica, talvez as juntar as duas coisas. Tenho várias idéias nesse sentido, o difícil é por isso de pé.
Gosto de encerrar as minhas entrevistas com um pedido de recomendação dos entrevistados. Você pode recomendar algo que esteja lendo/assistindo/ouvindo no momento? Ou então algo que você tenha lido/visto/ouvido que impactou de alguma forma a produção de Risca Faca?
No momento eu tô prostrado no sofá zapeando a TV a cabo, vendo coisas disparatadas. Coisa que adoro e odeio ao mesmo tempo. Também perco muito tempo em redes sociais, basicamente Facebook, que também redunda numa maneira de zapear. Aliás, nesse sentido, o contraste entre posts sobre a situação política e sobre o fabuloso mundo das subcelebridades acabou me inspirando muito na primeira história do Risca Faca. De resto, outras coisas que me inspiraram diretamente durante o processo, além da situação teratológica do país, foram alguns escritos do Nelson Rodrigues, dos quais eu deliberadamente fui atrás, a série Too Old to Die Young, o livro IQ84 do Haruki Murakami e episódios do Seinfeld que eu via enquanto jantava durante a madrugada. Acho que é isso.