O cartunista Batista queria que sua primeira coletânea de tiras e charges formasse um discurso. A intenção dele era que O que Conto Quando Conto uma Piada fosse um “livro de cartuns para quem não lê cartuns”. Coube ao quadrinista Diego Gerlach ajudá-lo na seleção dos trabalhos que entraram no livro e ao também quadrinista Stêvz conceber o projeto gráfico da obra.
“Ele montou o livro de uma forma que me parece um caderno de artista, o que gosto, porque acho que vira um pequeno tratado, e não uma sequência de piadas”, me diz o autor quando pergunto sobre o filtro editoral do livro que está às vésperas de seu lançamento e sobre o desenvolvimento da obra – primeiro título da editora Atrapalho, criada pelo próprio autor.
Já as tiras que ocupam as 192 páginas da publicação estão alguns dos melhores exemplares do “estilo Batista”, com piadas que vão do infame ao chocante.
Um dos criadores e editores da revista A Zica e colaborador de projetos como Wunder Toy Comics 1: Tiger Fist Action, PARAFUSO 1 e Novo Amanhecer, Batista já havia publicado títulos próprios, mas em tiragens menores e jeitão de zine – como Cutucando a Onça Com Vara Longa e Do Alto da Minha Sabedoria. O que Conto Quando Conto uma Piada tende a ser a melhor via de acesso para os trabalhos do autor, necessários em tempos de conservadorismo crescente.
Bati um papo com Batista sobre esse sua primeira coletânea, que apresenta prefácios de Diego Gerlach e Cynthia Bonacossa. Ele me falou sobre suas preferências em relação a humor, expôs algumas de suas inspirações e refletiu sobre o impacto da realidade sócio-econômica-pandêmica do país em seus trabalhos. Papo massa, saca:
“O trauma da pandemia é tão profundo que estou idiotizado”
Tenho perguntando para todo mundo que entrevisto desde o início do ano passado: como estão as coisas aí? Como você está lidando com a pandemia? Ela afetou de alguma forma a sua produção e a sua rotina diária?
Eu estou muito bem obrigado. Alcancei a alienação suprema, e a pandemia não me incomoda mais. Eu tinha salário, banda, planos para o futuro… Em um ano tudo isso foi para a berlinda, e segurei bem a onda até o fim de dezembro, quando comecei a chorar todos os dias ao sair e voltar para casa. Passei janeiro e fevereiro em casa, meio na cama, sem perspectiva, sem trabalhar, sem esperança. Em março parece que completei meu luto e voltei a trabalhar, e praticamente ignoro o mal-estar da pandemia. Acho que o trauma é tão profundo que estou idiotizado.
Cara, você tem seus conjuntos e produz seus quadrinhos. Como você se define profissionalmente? Músico-quadrinista? Quadrinista-músico? Aliás, você vê muitos paralelos entre as suas duas áreas de atuação?
Eu não me defino profissionalmente. Eu sou o que precisar ser dependendo da necessidade. Sou empresário, editor, livreiro, roteirista, músico e cartunista. Acho que o que une tudo o que faço é a poesia. Não escrevo poemas faz anos, mas sinto que continuo produzindo através dessas atividades. Nada disso é separado. Tudo envolve pessoas e expressão. Escutar e dizer. Se machucar e machucar os outros. Ser feliz e fazer os outros felizes. Tudo envolve grana.
“Eu lia Mad quando criança e curtia o escracho, a paródia”
Quando começa seu interesse por quadrinhos? E quando você começa a querer fazer quadrinhos?
Eu lia Mad quando criança e curtia o escracho, a paródia. Mas o que me desperta para quadrinhos é uma série em que Pedro e Otto (os namorados da Aline) vão para o exército e rolam mil piadas gays com eles. Foi quando vi algo poderoso ser dito através de quadrinhos. Depois eu li o Preto no Branco que mudou minha vida. E quando conheci os meninos da Quase, fazer quadrinho deixou de ser algo distante. A partir daí convivi também com edições da Tarja Preta e da F., e então passei a criar tiras e cartuns de forma involuntária, de repente pipocavam ideias na minha cabeça. Então passei a querer fazer quadrinhos.
O que você mais gosta em uma piada? O que te faz rir? Que tipo de humor você gosta?
Para mim o bom cartum é análogo à boa poesia. Gosto da transcendência, da fuga para o belo, para o riso libertador, para a suspensão da tragédia. Gosto de rir do que não é engraçado, por que a engenhosidade de tirar graça da tragédia, da luta que é viver, apazigua algo muito forte em mim. Gosto do que me faz rir, não tenho um tipo de humor.
“Entendi que eu desenhava bem pra burro, só que do meu jeito”
A Cynthia Bonacossa chama atenção no prefácio do seu livro para a sua capacidade de síntese. E acho que capacidade de síntese é um dos principais atributos de uma boa charge. É difícil para você chegar em uma sinteticidade que te satisfaça?
Não, geralmente a ideia vem sintética e me satisfaz. De um tempo pra cá tem acontecido dela só passar por mim, eu nem me sinto dono, só veículo. Mas claro, muitas precisam ser buriladas, olhadas por mais lados, e adoro o trabalho de acertar as coisas para fazer uma boa piada.
Ainda sobre essa sua capacidade de síntese, eu acho que ela se faz presente tanto nas suas piadas quanto no seu traço. Como é a sua dinâmica entre texto e desenho? Você pensa as duas coisas ao mesmo tempo? Uma costuma vir antes da outra?
Tudo que faço parte do texto. Daí vou resolver como desenhar para o texto ter um bom suporte. Minhas primeiras experiências com esse humor que faço foi criando os textos e tendo quem desenhasse. Mas descobri que ter um desenhista não é uma realidade, e tive que aprender a desenhar na marra. Lutei anos com o desenho, até que descobri num livro da Linda Barry e num papo com a Cynthia que minha relação com o desenho era equivocada. Eu tirei da cabeça que não sabia desenhar e entendi que eu desenhava bem pra burro, só que do meu jeito. Percebo hoje que meu desenho amadureceu e é expressivo. Mas no contexto do que faço, na maior parte das vezes o lance é o texto, o desenho tem função meramente ilustrativa.
“O mais difícil no momento é ter como principal meio de publicação as redes sociais”
E o que você acha mais difícil na produção de humor em quadrinhos? Tem algum aspecto da produção de uma tira ou um cartum que costuma ser mais desafiador para você?
Pra mim o mais difícil no momento é ter como principal meio de publicação as redes sociais, que são doentias. Receita de bolo, golpe de estado, trezentos mil mortos e piada sobre boquete são lidas na mesma toada. Daí fica difícil ter o trabalho lido de forma mais crítica. Estou trabalhando com assinaturas no apoia.se, e a relação com quem lê é outra, mais rica. O barato do livro é colocar o trabalho nessa forma mais calma e – creio – mais contundente que em seu meio original de publicação.
É tentador perguntar de onde surgem as suas ideias, mas imagino que elas venham de todos os lugares. Das suas leituras, dos seus convívios, da sua rotina… Enfim, a minha curiosidade maior é: você testa as suas piadas antes de transformar em desenho? Você tem algum filtro ou critério pessoal para saber se uma ideia tende a funcionar ou não?
Não testo minhas ideias, mas acho que funcionam porque eu rio ou então acho bonito. Confio na minha reflexão sobre os assuntos que abordo. Tem umas coisas que você já prevê que funciona, como falar da agenda social do momento. Funciona. Já apontar certo ridículo em algo que todos defendem, xiii, pode não funcionar…
“Queria que essa coleção de trabalhos formasse um discurso”
Você já teve outros trabalhos impressos, zines e tiras e cartuns em coletâneas, mas O que Conto Quando Conto uma Piada é o seu primeiro livro para valer, né? Como foi a produção dessa publicação? Quais foram os critério para as tiras que entraram?
Esse livro começa com a produção executiva do Luiz Navarro, parceiro da Zica e produtor de cinema, que viabilizou o recurso via Lei Aldi Blanc. A partir daí eu sabia que eu não queria fazer nada relativo à seleção de trabalhos e projeto gráfico. Então reuni mais 600 cartuns e quadrinhos e enviei para o Diego Gerlach, que fez as seleções do material. A escolha de trabalhar com o Gerla acontece por eu considerar ele um crítico do meu trabalho, então eu gostaria do olhar dele nessa seleção.
Escolhidos os trabalhos, o projeto gráfico ficou por conta do Stêvz, que sempre me impressionou com as edições da Bongolê Bongorô, Beleléu e Chupa Manga Zine. Eu disse para ele que não queria um display de cartuns, uma página branca com um desenho e só. Queria que essa coleção de trabalhos formasse um discurso. Um livro de cartuns pra quem não lê cartuns. Assim ele montou o livro de uma forma que me parece um caderno de artista, o que gosto porque acho que o livro vira um pequeno tratado, e não uma sequência de piadas.
E como foi para você a experiência de rever e reler todos esses trabalhos impressos no livro? O quanto você acha que o seu trabalho mudou ao longo dos seus anos como quadrinista?
A minha primeira impressão em rever tudo foi um assombro com a quantidade. A minha segunda impressão foi um mal-estar em ver a primeira versão montada, achei pesado, bad vibe. Precisei que Gerla e Stêvz dissessem que era impressão minha. Com o trabalho organizado no livro, tenho uma visão mais clara do que faço e do que quero fazer. Ver o trabalho realizado me deixou satisfeito, percebi o quando sou mais fluente no desenho e no pensamento. E também me anima ver que cada vez mais consigo encontrar a graça das coisas, que é o que sempre me interessou nesses anos.
“Me desanima desenhar política, prefiro comportamento”
Você também tem investido em publicações mais longas nos últimos anos (como a parceria com Cynthia B no Mau #24 e o gibi Máquina de Lavar, publicado pelo selo Vibe Tronxa Comix) e em parcerias em que fica responsável apenas pelo texto (como a série Pedro & Luiz, com o Rafael Coutinho). É muito diferente o modo-Batista-das-tiras-e-cartuns dessas suas empreitadas trabalhando com outros autores e pensando em obras mais longas? São experiências de leitura distintas, mas são experiências de produção e inspiração muito diferentes para você?
O modus operandi é diferente, mas a inspiração vem do mesmo lugar. A diferença principal é que posso estender o que quero falar. Num cartum ou história curta eu solto a bomba de uma vez. Numa história maior, com outra pessoa desenhando e me dando liberdade para me alongar, falo com mais calma dos meus assuntos. O grande atrativo de trabalhar com alguém é escrever pensando no desenho de outra pessoa. Isso me faz melhorar a forma como escrevo. Trabalhei por exemplo com Gabriel Góes, PM OZ, Adriano Rampazzo, Cynthia Bonacossa e no momento trabalho com Joana Afonso, e em todas essas ocasiões escrevo com mais alegria, porque estou trabalhando com uma pessoa que é admiro.
Também não quero entrar numa discussão sobre OS LIMITES DO HUMOR, mas tem algum tema que você não gosta, que você acha que não rende para você ou que te desanimar produzir a partir dele?
Não penso nos limites do humor, penso na potência do humor, e na sua engenharia fantástica. As coisas da vida são grandes, são difíceis de lidar, e conseguir fotografar elas com uma couve do dente é meu barato. Me desanima desenhar política, prefiro comportamento. Mas faço de tudo.
“Tinha me proposto a não falar de pandemia, hoje consigo fazer um pequeno volume do que desenhei sobre o tema”
E cara, como o estado das coisas como estão, a merda toda que estamos vivendo, tem influenciado e impactado o seu trabalho? O quanto que essa nossa realidade interfere na sua criação, mesmo que seja te impulsionando a não produzir sobre um tema quente?
Essa nova realidade interferiu mais do que eu supus no início. Eu tinha me proposto a não falar de pandemia, hoje consigo fazer um pequeno volume do que desenhei sobre o tema. Eu morri por dentro durante alguns meses, antes disso eu batalhei com esperança, eu tive medo de morrer, eu me indigno com o governo. Então se o cartum é minha válvula de escape para o que acho indizível, tudo que fiz está chafurdado na pandemia.
Você pode recomendar algo que esteja lendo/assistindo/ouvindo no momento?
Minhas quatro últimas grandes experiências que recomendo são: jogar The Last of Us Parte II; redescobrir a discografia dos Paralamas e ouvir diariamente; ler o novo gibi do Pablo Carranza, o PODRÃO ANIQUILAÇÃO, e ver a terceira revolução no trabalho dele, que sou fã; e reassistir o programa Melhor do Que Falecer, no YouTube, do Ricardo Araújo Pereira, que acho um barato total, classudo.