Cannabis: A Ilegalização da Maconha nos Estados Unidos é o primeiro álbum do quadrinista Box Brown publicado no Brasil. O quadrinho lançado pela editora Mino é o quarto projeto de não-ficção do autor – do mesmo gênero ele já publicou Andre, The Giant, sobre a vida do lutador de luta livre André René Roussimoff; Is This Guy for Real, biografia do ator Andy Kaufman; e Tetris, narrando a história do joguinho precursor da hoje bilionária indústria de games.
Eu já havia entrevistado Brown em 2014, na época do lançamento de Andre, The Giant, e voltei a falar com ele agora para escrever sobre a publicação de Cannabis no Brasil. Esse papo virou matéria no jornal O Globo.
Na entrevista que reproduzo na íntegra a seguir, Brown fala sobre as origens de Cannabis e expõe suas impressões e críticas aos sistema Judicial norte-americano. Ele também conta sobre sua rotina como editor do selo independente Retrofit Comics e fala sobre Tetris – próximo trabalho dele a ser publicado por aqui, também pela Mino, ainda sem data de lançamento revelada. Papo massa, saca só:
“Não queria pegar leve ou soar hesitante em meu apoio e queria martelar esse posicionamento com fatos”
Mais do que um livro sobre o processo de ilegalização da maconha ao longo da história, Cannabis soou para mim como um livro sobre mentiras e racismo. Quando você começou o livro tinha consciência dessa relação tão próxima entre racismo e mentiras com o processo de ilegalização?
Eu tinha plena consciência de que nosso sistema atual é racista. Um sistema no qual pessoas não-brancas são presas em uma taxa muito mais alta do que suas contrapartes brancas por causa de maconha. Mas, não estava realmente consciente de que sempre foi assim e que, de fato, esse foi o ponto de partida para proibição, em primeiro lugar. A lei está funcionando da forma como foi criada para funcionar.
Aliás, você pode me contar um pouco sobre o momento no qual começou a pensar e desenvolver esse livro? A história da maconha sempre foi um tema de interesse para você?
Fui preso por posse de cannabis quando tinha 16 anos. Eu era muito jovem e ingênuo sobre tudo. Era apenas uma criança e provavelmente só tinha fumado um punhado de vezes em toda a minha vida. Pude ver um pouco do sistema de Justiça criminal e como eles tratavam meus pares, que não eram brancos e vinham de uma cidade menos rica. Desde então, acho que estava me coçando para contar essa história, mas foi só recentemente que minha editora conseguiu fazer isso acontecer. Acho que isso mostra o quanto a opinião pública mudou nos EUA, mesmo nos últimos anos.
“Sou muito passional em relação a todos os temas pelos quais tenho mais interesse, mas realmente sinto que esse é extremamente importante”
Eu gosto muito dos seus livros com temas históricos e biográficos, mas acredito que Cannabis tenha sido de alguma forma mais desafiador, por causa do volume de preconceito em torno desse tema. Por esse aspecto, foi mais difícil criar esse livro? Você se sentiu de alguma forma mais preocupado em ser mais factual e didático em relação a esse tema?
Sim, acho que posso tê-lo levado mais a sério de alguma forma. Havia partes em que eu realmente queria ser mais claro e usar uma linguagem muito forte sobre a maconha. Não queria pegar leve ou soar hesitante em meu apoio e queria martelar esse posicionamento com fatos. Sou muito passional em relação a todos os temas pelos quais tenho mais interesse, mas realmente sinto que esse é extremamente importante, muito mais do que wrestling e videogames (mas esses são muito importantes também!).
Ainda sobre a criação desse livro, você poderia me falar um pouco sobre a sua dinâmica de trabalho? O livro tem quatro páginas de bibliografia. Quanto tempo você passou pesquisando? Quanto tempo você passou escrevendo o roteiro? Quanto tempo você passou desenhando o livro?
Bem, passo muito tempo pesquisando sobre o meu próximo projeto antes de terminar de trabalhar no livro anterior e essa pesquisa segue mesmo quando já comecei a desenhar esse seguinte. Desenhar histórias em quadrinhos leva uma quantidade enorme de tempo, então quando estou desenhando a primeira página estou pesquisando a página 20 ou 30. E, em seguida, muitas vezes, tenho que voltar e mudar as coisas até o dia da impressão. A bibliografia no final era apenas uma bibliografia selecionada, a versão integral é muito maior e não cabia no livro.
“Leis são escritas para excluir qualquer um que tenha sido preso por cannabis de participar de um mercado legal”
Você pode falar um pouco sobre as suas técnicas, por favor? O que é digital e o que é tinta?
Eu desenho com nanquim no papel e depois finalizo no Photoshop. Desenho tudo bem pequeno, o que me ajuda a manter as coisas simples.
Quais são as suas opiniões sobre as atuais políticas americanas em relação ao consumo de maconha? Você é otimista em relação a uma possível mudança nesses preconceitos predominantes em relação ao consumo, a venda e o cultivo de maconha?
Eu realmente não sei o que pensar. Estamos vendo uma forma de legalização acontecendo nos EUA onde o dinheiro que está sendo feito no negócio não está indo para as pessoas que sofreram sob a proibição. Leis são escritas para excluir qualquer um que tenha sido preso por cannabis de participar de um mercado legal. Estamos vendo policiais realmente não obedecendo a novas leis e ainda assediando e prendendo pessoas com base na ignorância das leis. Mas, ao mesmo tempo, a opinião pública nos EUA mudou completamente e continua a mudar para ser simpática à maconha. Não há muito o que os legisladores possam fazer para impedir que isso aconteça. A coisa que me deixa com raiva é que, agora eles não podem impedir que se torne legal, todos estão tentando fazer o máximo de dinheiro possível por meio do processo de legalização.
“Todo mundo fica falando sobre justiça social, mas todos aqueles com algum registro policial são mantidos fora da indústria”
Qual você acredita que deveria ser a principal mudança política relacionada a esse tema? Você crê em alguma mudança legislativa específica que possa beneficiar os consumidores?
Eles estão tentando mudar as leis para permitir que os bancos se envolvam no negócio. Agora diz respeito estritamente a dinheiro, em todo o país. Mas não acho que devam mudar as leis apenas para permitir que os bancos tenham acesso ao dinheiro. Se os bancos querem acesso ao dinheiro, então deveriam estar fazendo lobby junto ao governo para legalizar e libertar quem está preso.
E o que te preocupa mais no momento em relação à legislação americana em relação a esse tema?
DINHEIRO, DINHEIRO e DINHEIRO. A maconha é barata e fácil de cultivar e processar e muitas empresas estão tomando grandes providências para garantir que sejam as únicas que podem produzi-las em determinadas áreas, para que possam aumentar os preços. Este é um recurso natural abundante e há muito lucro a ser feito sem que as corporações tentem abrir caminho para o setor e eliminem todos os outros produtores. Enquanto isso, todo mundo fica falando sobre justiça social, mas todos aqueles com algum registro policial são mantidos fora da indústria, assim como não há espaço para nenhuma empresa pequena.
“Passei a assistir um pregador no YouTube que defende que Donald Trump é o anticristo. Não sei se acredito na narrativa dele, mas está começando a fazer cada vez mais sentido”
Tenho curiosidade em relação à sua visão do mundo no momento. Vivemos numa realidade na qual Donald Trump é o presidente dos EUA e Jair Bolsonaro é o presidente do Brasil. O que você acha que está acontecendo com o mundo? Você é otimista em relação ao nosso futuro?
É difícil ler as notícias e ser otimista. Passei até a assistir a um pregador no YouTube que defende que Donald Trump é o anticristo. Não sei se acredito na narrativa dele, mas está começando a fazer cada vez mais sentido essa perspectiva. Quando estou com muito medo, penso na minha heroína Greta Thunberg e em como ela é tão durona diante de todos esses cuzões. Acho que muitos dos jovens que crescem testemunhando isso estão prestando muita atenção e veremos a formação de uma geração durona em resposta. Toda ação tem uma reação, não é?
O que você pensa quando um trabalho seu é publicado em um país como o Brasil? Somos todos americanos, mas são culturas muito diferentes. Você tem alguma curiosidade em relação à forma como um trabalho seu será lido e interpretado por pessoas de um ambiente tão diferente dos seu?
Sim! Fico muito empolgado com isso. Eu realmente não sabia, mas tenho um monte de leitores no Brasil. Tenho uma amiga, Laura Lannes, que é uma incrível quadrinista brasileira e estou começando a sentir que há uma grande paixão por quadrinhos por aí. Esse é o tipo de coisa que você pensa quando é criança e faz arte, que um dia pessoas de todo o mundo estarão olhando para seus desenhos. Muitas vezes me pego questionando o meu trabalho e me pergunto se ele fará algum sentido para alguém.
Fico curioso em relação às suas experiências e opiniões sobre o mercado editorial sendo o responsável por uma editora independente como a Retrofit Comics e o autor de uma editora gigante como a First Second. São operações em escalas muito diferentes, não são?
São muito diferentes. A Retrofit Comics foi iniciada no meu apartamento minúsculo e foi uma luta imensa para conseguir fazê-la chegar nas pessoas. Já a First Second fica em um arranha-céu imenso de Nova York. Comecei a Retrofit como uma forma de colaborar com artistas que eu gostava sem estarmos trabalhando propriamente em uma obra. Gosto de trabalhar sozinho quando faço quadrinhos, mas também sou uma criatura social e acho realmente instrutivo estar perto de outros artistas, seja de qual forma for. Quando lanço meu próprio quadrinho pela Retrofit e um gibi com a First Second, não há competição. A First Second tem uma presença de mercado e uma infraestrutura imensas, assim como pode se dar ao luxo de se arriscar mais e ter mais pessoas trabalhando em cada livro. Eles têm uma enorme rede de pessoas de imprensa e pessoas de relações públicas que têm um milhão de contatos e conhecem o mercado de livros e todos os meandros. A Retrofit sou só eu e o meu amigo Jared, nós dois tentando fazer tudo isso.
E em relação ao público? Há alguma diferença particular entre aqueles que leem seus quadrinhos para a Retrofit e aqueles que leem seus livros para a First Second? Aliás, você pensa nesses públicos enquanto está criando seus quadrinhos?
Muitas vezes as pessoas conhecem meus livros da First Second e nunca ouviram falar da Retrofit. Então acho que meus leitores ficam animados quando descobrem a Retrofit e encontram meus outros livros – e as vendas de muitos livros de outros artistas acabam sendo alavancados também! Eu realmente não penso neles como públicos diferentes ou mesmo pessoas diferentes.
Sobre o Tetris: você pode me contar um pouco sobre como e quando você começou a desenvolver esse livro?
Me deparei com um documentário sobre Tetris chamado From Russia With Love e era uma história incrível! Eu pensava tanto sobre esse livro que nem precisei elaborar muita coisa, a história do Tetris já era muito surpreendente. Apenas tentei colocar as coisas em contexto. Tetris causou um grande impacto em mim quando criança. Foi um dos primeiros jogos que toda a minha família jogou, até os adultos. Acho que para a minha geração foi uma marco para pais e filhos. Foi a primeira vez que os pais entenderam o que eram os videogames.
O mercado de games é provavelmente o mais rentável da indústria do entretenimento hoje, mas também é cercado de muitos preconceitos. Gosto como o cenário político do Tetris pode ajudar a esclarecer pessoas não iniciadas no assunto em relação ao começo desse mercado e suas possibilidades. Você tinha alguma intenção de combater esse preconceito quando começou esse livro?
Sim, acho que sim. Acho que é importante lembrar as pessoas que os videogames são uma forma de arte. As coisas que dizem sobre videogames agora são as mesmas coisas que disseram sobre romances na virada do século. Cem anos depois, não há dúvida de que o romance de ficção é um dos meios artísticos mais reverenciados em nossas culturas. Talvez daqui a 100 anos o videogame seja visto da mesma forma.
E apesar de todo esse preconceito em relação a jogos, eles são cada vez mais aceitos como uma forma de arte, como você mostra no final do seu livro. Você vê alguma mudança de pensamento da sociedade em relação a como ela vê video-games?
As coisas estão evoluindo já há algum tempo. Até mesmo a primeira febre da Nintendo foi vista como uma “lavagem cerebral” nas nossas crianças. Não acho que as pessoas ainda vejam dessa mesma forma. Ainda assim, entre o público em geral, há muitos estereótipos sobre quem joga. É o mesmo com os quadrinhos. As pessoas ouvem “quadrinhos” e acham que você deve ser alguém que mora no porão dos pais (aliás, um ótimo lugar para se viver!) e é um fardo para a sociedade. Como artistas, acho que estamos sempre lutando contra isso e, ao mesmo tempo, também abraçando essas ideias.
O que você gosta de jogar? Você tem algum jogo preferido? O que você está jogando no momento?
Recentemente me tornei viciado em Stardew Valley. Perdi um total de seis meses com esse jogo. Mas o meu favorito de todos os tempos é Zelda. Joguei todos eles muitas vezes (exceto Skyward Sword!). Gosto de revisitar Zelda o tempo todo e explorar os jogos, mesmo que eu os conheça de cor. Eu realmente gosto do Switch. É bom para mim porque a minha esposa não aguenta mais me ver jogando videogames.
Você pode recomendar algo que esteja lendo/assistindo/ouvindo no momento?
Gostei muito de I Think You Should Leave with Tim Robinson no Netflix. Também tenho revisitado muitas franquias de brinquedos / desenhos animados dos anos 80 (para pesquisa!!!) e gostei do desenho de Caverna do Dragão. É muito bem feito. Sinto que eles fizeram um bom trabalho de recriar como é a experiência do jogo.
Você está trabalhando em algum projeto novo atualmente?
Sim, estou trabalhando em alguns livros novos. Uma ficção e uma não-ficção. Ambos são sobre a TV e a mídia da década de 1980. Às vezes acho que estou preso nessa época.
Você pode me falar como é seu ambiente de trabalho?
Odeio essa porra no momento! Estou trabalhando em um escritório muito pequeno na minha casa e não consigo decidir se devo sair e arrumar um estúdio ou arrumar nesse em que estou. Tenho uma mesa com uma prancheta na qual desenho e tenho uma mesa dobrável bem porcaria ao lado dela com meu computador e meu tablet. E é claro que tenho minha minúscula geladeira para manter meu hash fresco. Também tenho uma mesa atrás de mim. É como um embrulho em volta da mesa. Eu tenho uma janela com vista para uma parede de tijolos a cerca de 10 metros de distância. Se eu virar a cabeça ligeiramente, às vezes, posso ver o céu. Eu quero um dia ter um escritório com uma janela grande o suficiente para poder ver alguma coisa.