Até o final de 2019 estarão disponíveis no Brasil as principais obras do quadrinista Charles Burns. A Companhia das Letras acabou de publicar o trabalho mais recente do autor, a trilogia Sem Volta, reunida em um único volume. No ano passado, a editora DarkSide Books publicou a obra-prima do artista, o clássico Black Hole. Para o segundo semestre de 2018, a mesma DarkSide promete Big Baby – seguido por Skin Deep e El Borabah até o final do ano que vem.
O foco da minha matéria sobre o trabalho de Burns para a Folha de São Paulo foi em Sem Volta, quadrinho mais recente do autor e recém-chegado às livrarias e lojas especializadas brasileiras. Você lê a íntegra do meu texto, tratando dos temas das obras e falando desse momento especial para os leitores de Burns no país, por aqui. Mas o papo rendeu e ainda falamos de outros assuntos, principalmente sobre as transformações do estilo dos quadrinista e dos temas abordados por ele em suas HQs ao longo de sua carreira.
Ainda deu tempo de conversarmos sobre Tintim, Hergé, Raw, Frigidaire, Lorenzo Mattotti e as várias leituras que impactaram na formação do autor. A seguir, papo com Charles Burns:
Black Hole foi publicado pela primeira vez no Brasil há 20 anos e foi republicado por aqui quase simultaneamente ao seu livro mais recente, Sem Volta. Também estão previstos para breve o lançamento de El Borbah, Big Baby e Skin Deep. Eu fico curioso em relação ao que você pensa sobre todo esse interesse no seu trabalho aqui no Brasil…
Para ser sincero, não sei muito a respeito disso. É óbvio, é algo que me deixa feliz. Mas acho que são apenas os resultados dos trabalhos dos meus agentes, pois os livros estão sendo publicados. Eu jamais imaginaria que algo assim poderia estar ocorrendo no Brasil (risos)
E você fica curioso em relação a como os seus livros são recebidos em outros países? Como eles podem ser lidos em uma cultura tão diferente da sua?
Eu não sei… Quero dizer, eu espero que culturalmente exista algo universal que será compreendido em culturas diferentes. Talvez a cultura americana, a cultura pop feita nos Estados Unidos, seja legível em vários lugares. Mas não sei mesmo.
Um dos primeiros países no qual os meus livros foram traduzidos foi a Espanha, há muito, muito tempo. Eu lembro de um sentimento, de como era incrível ver um trabalho encontrar o seu caminho para outra cultura, em outro país. É algo que me faz surtar um pouco, pensar que o meu trabalho está sendo lido no Brasil, está sendo lido, sei lá, na Finlândia ou na Rússia. Mas é impossível para mim cogitar como eles serão recebidos culturalmente.
Há um intervalo de 20 anos entre Black Hole e a trilogia Sem Volta. O quanto os seus métodos e as suas técnicas mudaram ao longo desse período?
Muito gradualmente. Eu olho para trás… Eu não costumo rever meus trabalhos antigos, mas às vezes eu pego algum deles e tenho a sensação de estar olhando para outro autor. Eu reconheço algumas coisas sobre o trabalho e as histórias, temas presentes em todos os meus livros, mas às vezes me parecem… Não irreconhecíveis, mas sim, às vezes me parecem que são de outra pessoa, como se eu fosse um outro autor nessas épocas.
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“Na época do Black Hole eu havia chegado em um ponto da minha vida no qual eu queria arriscar, eu queria estar envolvido em histórias mais longas”
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Há algum desafio distinto entre criar uma história curta como a de Big Baby ou de Skin Depp e obras mais longas como Black Hole e Sem Volta?
Na época do Black Hole eu havia chegado em um ponto da minha vida no qual eu queria arriscar, eu queria estar envolvido em histórias mais longas. Acho que antes disso, eu não sei… Eu sentia que estava aprendendo lentamente a como escrever e desenhar (risos) Por muitos anos. Então naturalmente eu fazia coisas menores, me parecia mais natural fazer trabalhos menores. Mas houve um momento específico em que eu compreendi que tinha uma história mais longa para contar. Eu acho que existe uma frustração no fato de quadrinhos implicarem em tanto sofrimento e lentidão para serem criados, pelo menos para mim. É frustrante que eles demorem tanto para serem finalizados.
Você já morou em muitos lugares, em várias cidades dos Estados Unidos e também em outros países. Você vê muita influência dos lugares em que viveu nos seus trabalhos?
Sim, eu acho que sim. Durante a minha vida eu também vivi na Itália e passei por outros lugares da Europa. Eu acho que esse lugares diferentes… Estamos falando sobre culturas diferentes, mesmo em cidades da América do Norte eram partes muito diferentes do país e culturas diferentes, então sei lá. A Costa Leste, onde vivo atualmente é muito diferente da Costa Noroeste, de Seattle. Eu sei que todas essas coisas tiveram alguma influência em mim. Acho que também socialmente, eu me mudei bastante e precisei me reestabelecer em cada lugar, o ambiente teve algum impacto também.
E o que você pode contar sobre o seu período na Itália? Eu vejo um diálogo muito grande entre a cena italiana de quadrinhos do começo dos anos 80, publicações como a Frigidaire, e o que vocês estavam fazendo na Raw…
Eu morei em Roma exatamente no começo dos anos 80, em 83 ou 84. Esse foi um período no qual havia muita coisa acontecendo na Itália. A revista Frigidaire estava sendo publicada, assim como outras que saiam na mesma época. Eu conheci outros cartunistas. Então sim, foi um período muito empolgante. Especialmente para mim, estando em outra cultura e envolvido em outra cena.
Dessa geração de artistas italianos dos anos 80, algum deles teve um impacto maior no seu trabalho?
Eu trabalhei com um grupo de cartunistas do qual ainda tenho amigos, o Lorenzo Mattotti é um bom amigo, o Igor Tuvery, mais conhecido como Igort, também – ele está publicando os meus quadrinhos na Itália. Esses tipos de conexões foram importantes para mim. Eu me lembro de um amigo dizendo que eu morei na Itália, mas isso não teve nenhum impacto no meu estilo, na minha arte. Acho que as principais influências que eu tive quando era mais novo foram atitudes e ideias, me vejo influenciado hoje muito mais por isso do que por aspectos relacionados à narrativa ou ao desenho.
Sem Volta é colorido, mas o seu trabalho é muito caracterizado pelo preto e branco de alto contraste, pelo protagonismo de personagens novos e por um tom sobrenatural das histórias. Você vê esses elementos como parte do seu estilo? Aliás, você consegue definir um estilo específico seu?
Há alguma coisa… Eu acho que o meu trabalho é reconhecível, há uma certa estética específica, na linha, na luz e no contraste. Ele surgiu com um diálogo intenso com o quadrinho norte-americano clássico que eu cresci lendo. Ele começou com esse tipo de visual e depois não sei se consigo defini-lo mais. Não consigo pensar numa resposta. Eu acredito que ele foi sendo construído com o passar do tempo, havia um visual específico e um tipo de imagem que me atraiam e eu desenvolvi lentamente a partir daí. Ocasionalmente eu vejo o trabalho de alguma outra pessoa e tenho essa sensação de ver alguma influência minha, que talvez a pessoa tenha visto o meu trabalho ou tenha referências semelhantes às minhas. Mas sim, é difícil encontrar de onde tudo isso veio.
O preto e branco é algo muito característico dessa sua geração, das publicações do Raw. Você tinha alguma motivação especial para o uso do preto e branco no início da sua carreira além do fato de ser mais barato de imprimir?
Sim, existiam restrições financeiras. A revista Raw era auto-publicada, pelo menos a primeira versão dela era bancada pelo Art Spiegelman e pela Françoise Mouly, então lembro de até terem algumas cores ocasionalmente, na capa ou em alguma história, mas existiam limitações financeiras. Eu acho que todas essas questões financeiras tiveram uma influência no meu trabalho. Eu via reimpressões de quadrinhos antigos baratos e em preto e branco e notava um certo estilo… Quando você está criando e sabe que será impresso em preto e branco e que talvez a qualidade do papel não seja tão boa, isso implica em um empenho maior para a arte. Talvez eu tenha sido muito influenciado por esses quadrinhos baratos e em preto e branco, eu gostava do visual deles e desde cedo tentei emular essa estética.
Quando penso em autores contemporâneos a você, como o Chris Ware e o Daniel Clowes, vejo uma diversidade muito grande nos estilos e nas obras, mas é um grupo de pessoas geralmente lembrado como parte de uma mesma geração. Você vê algum padrão e diálogo específico esse o seu trabalho e os desses colegas?
Hummm… Eu posso ver isso mais no que diz respeito aos temas ou às influências. Mas você está certo, eu acho que há essa diversidade. Eu suspeito que talvez o único ponto em comum seja que todos nós estávamos obcecados com os nossos ídolos e as nossas ideias. E quando eu penso em artistas da revista Raw também há, por exemplo, o Gary Panter, que também é um pintor e um músico com obras muito diversas. A minha percepção da revista Raw é que ela foi uma das primeiras publicações nos Estados Unidos unicamente focada, por falta de uma palavra melhor, em quadrinhos de arte. Quadrinho de arte centrados principalmente no aspecto estético. Acho que eventualmente essa linha acabou indo mais para narrativa ou em um foco maior em histórias e enredos. Mas acho que no começo o principal interesse era no aspecto gráfico.
Você começou a publicar com 20 e poucos anos, a idade da maior parte dos seus personagens. Houve alguma mudança na sua experiência criando esses personagens e na abordagem dos dramas vivenciados por eles agora que até suas filhas estão mais velhas que seus protagonistas?
(risos) Essa é uma boa pergunta, eu me pergunto ela constantemente e não tenho uma boa resposta. Acho que parte da resposta é: eu tenho pouco interesse na minha vida adulta e de meia-idade, suspeito. Eu não tenho uma boa resposta.
Você se lembra do momento em que teve a ideia que deu origem à trilogia Sem Volta?
Provavelmente… Eu posso olhar em cadernos antigos e ver várias coisas que datam de muito tempo atrás. Existem vários fragmentos de ideias que foram se construindo aos poucos. Não houve um momento exato em que a ideia surgiu formada na minha cabeça. Posso encontrar anotações de algumas ideias que surgiram quando eu estava nos meus vinte, trinta ou quarenta anos. O que acho que acontece comigo é que eu tenho uma ideia inicial de como será a história e enquanto trabalho eu acabo encontrando qual será a história verdadeira. Com Sem Volta, por exemplo, eu inicialmente estava trabalhando em uma ideia que tinha sobre música punk e no final das contas a história não tem nada a ver com esse universo.
Sobre música punk?
Quando comecei a história, as minhas primeiras ideias eram tratar de um período específico da minha vida, no final dos anos 70, e do meu interesse em música punk, mas acabou se afastando disso.
E sobre o diálogo do livro com Tintim, como ele surgiu? Você se lembra dos seus primeiros contatos com os livros do Hergé?
Sim. É relativamente pouco usual para um americano da minha geração crescer tendo acesso ao Tintim e aos trabalhos do Hergé. Mas havia alguns livros dele publicados nos Estados Unidos – que me deram mesmo antes que eu soubesse ler, eu devia ter quatro ou cinco anos. Com certeza eles tiveram um impacto imenso na minha vida, talvez não um impacto no estilo, mas as histórias e a atmosfera com certeza impactaram a minha formação.
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“Acho que o meu trabalho mais atual seja mais focado em experiências em primeira pessoa. As minhas próprias experiências em primeira pessoa. Na verdade, experiências mais internas”
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Os seus livros me soam como crônicas de jovens em uma realidade muito americana. Você vê muito contraste entre a América de Trump e de Obama? Se sim, esse contraste tem alguma influência nas histórias que você conta?
Eu sempre me mantive distante da ideia de trabalhos distintamente políticos. Talvez o meu trabalho inicial fosse mais focado em temas mais específicos da cultura americana. Acho que o meu trabalho mais atual seja mais focado em experiências em primeira pessoa. As minhas próprias experiências em primeira pessoa. Na verdade, experiências mais internas. É claro que essas experiências internas precisam estar conscientes do mundo exterior, mas não estou interessado em escrever qualquer coisa sobre política americana ou cultura americana por si só.
E o que te interessa mais em quadrinhos hoje em dia? Há alguma coisa específica que você gostaria de ver sendo explorada?
Nada especificamente. Há alguns artistas que sempre estou interessado em saber o que estão fazendo, pessoas que estejam criando algo novo, mas não consigo pensar em nada que estou esperando ver existindo – acho que esse seria o trabalho que eu iria estar fazendo. Estou sempre interessado em trabalhos fortes, vigorosos e pessoais.
Quais as memórias mais antigas que você tem de quadrinhos na sua memória?
Provavelmente apenas quadrinhos infantis americanos típicos. Provavelmente Walt Disney e coisas do tipo. Mas como disse, o impacto mais forte foi a descoberta do Tintim e dos livros do Hergé. Eles me pareciam muito mais maduros e tiveram um impacto imenso em mim. O meu pai era muito interessado em quadrinhos e eu lia muito das coisas dele, mas na verdade isso foi antes que eu soubesse ler de verdade.
É engraçado você mencionar o Tintim, principalmente por causa da linha clara…
Sim, a linha clara. Acho que quando era mais novo eu até tentei trabalhar nesse estilo, mas por algum motivo não funcionou. A atmosfera que eu tento criar é um pouco mais sombria.
Sobre essa atmosfera. O que você pensa quando classificam seus trabalhos como quadrinhos de terror ou horror?
Eu não fico surpreso. Eu não tenho nenhuma intenção específica de aterrorizar ninguém ou fazer qualquer coisa que seja horrorizante. Há alguns elementos que podem ser classificados dessa forma, mas eu sempre brinco e digo que os meus quadrinhos são histórias de amor (risos).
No que você está trabalhando no momento? Você já tem algum livro novo em mente?
Nada em particular. Para mim, um livro ou uma história não existem enquanto não estejam publicados. Eu estou trabalhando em uns dois livros e espero que eles vejam a luz do dia. Eu nunca pressuponho que tudo em que eu estou trabalhando vá funcionar, é sempre parte de um processo em andamento de ver o que vai sobreviver e acabará sendo publicando. É um processo em andamento até virar um livro físico.
Há alguma coisa que você tenha lido, ouvido ou assistido recentemente que te impressionou e você possa recomendar?
Acho que o livro mais incrível que li recentemente foi Monograph, um trabalho espantoso. Eu sou amigo do Chris [Ware] e ele não é sigiloso, mas nunca fala do trabalho que está fazendo. Ver o produto final é algo sensacional. Eu tive planos de fazer um livro não igual ao dele (risos), mas de ilustrações e quadrinhos, um livro de arte reunindo vários trabalhos. Eu fico muito feliz do meu não ter sido publicado no mesmo ano que o dele. Tenho muita sorte.