Cosplayers – Fantasiando a Vida é o primeiro álbum do quadrinista Dash Shaw publicado no Brasil desde Umbigo Sem Fundo, em 2009. Lançamento da editora Conrad, com tradução de Dandara Palankof, o quadrinho narra a jornada de uma cosplayer e sua fiel assistente, fotógrafa e editora de vídeo por convenções de cultura pop nos Estados Unidos. Entrevistei o autor e transformei esse papo em matéria aqui para o blog (você lê o meu texto clicando aqui). Reproduzo agora a íntegra da minha conversa com o autor. Falamos sobre convenções de quadrinhos, desenhos animados e Daniel Clowes e ele me falou sobre sua paixão por Osamu Tezuka e sua vontade de retornar ao Brasil.
Deixo mais uma vez o link para o meu texto sobre Cosplayers e compartilho, a seguir, a minha entrevista com Shaw. Saca só:
“Vou a convenções de anime e quadrinhos desde os 12 anos”
Você lembra do ponto de partida de Cosplayers? Houve alguma inspiração em particular ou alguma motivação por trás da produção dessa obra?
Eu vou a convenções de anime e quadrinhos desde os 12 anos. Quando eu era criança, eu fazia agendas de programação para convenções de anime fictícias. Eu tive uma ampla gama de experiências em convenções, é claro. Muitas experiências incríveis e positivas, e outras horríveis, e tudo mais no meio do caminho das duas coisas. Eu posso oscilar loucamente em uma convenção de pensar “eu amo todas essas coisas” para “é tudo lixo” para, na maioria das vezes, uma série de sentimentos contraditórios no meio desses extremos. Eu queria que Cosplayers representasse esses sentimentos e adotasse um tom positivo, mas realista. Além disso, a ideia inicial era ser uma revista serializada. Essas histórias existem primeiro como quadrinhos curtos serializados. Então, em uma quarta-feira, na loja de quadrinhos, havia quadrinhos do Batman e do Superman e logo ao lado deles, o meu quadrinho, Cosplayers, sobre pessoas comuns vestidas de Batman e Superman. As questões dos cosplayers foram fáceis de escrever, porque eu conhecia aquelas pessoas, aquelas situações.
O seu outro trabalho publicado no Brasil foi Umbigo sem Fundo. Acho que seus leitores brasileiros vão ver um contraste muito grande entre a sua arte desse primeiro livro publicado por aqui e esse mais recente. Você pode, por favor, comentar um pouco sobre o contraste entre as suas técnicas e seus métodos de trabalho entre Umbigo e Cosplayers?
Essa é uma pergunta interessante. Já fiz outros livros antes e depois de Cosplayers. Mas Umbigo e Cosplayers são talvez meus trabalhos mais focados em personagens. Eu não sou o melhor para julgar por que apenas esses dois foram traduzidos. De qualquer forma, primeiro tenho uma ideia de história e depois os designs e layouts são inspirados na história. A forma tem que parecer a melhor maneira de contar qualquer que seja essa história em particular. Umbigo deveria parecer um diário, mas escrito por vários personagens. Os cosplayers deveriam se sentir como alguém “vestindo-se” como um quadrinho periódico mainstream.
O quanto as suas percepções sobre quadrinhos, os seus principais interesses pelo meio, mudaram de 2008, quando Umbigo saiu, para cá? O que mais te interessa em termos de linguagens dos quadrinhos atualmente? Aliás, o que são quadrinhos para você hoje? O quanto essa percepção mudou para você ao longo dos anos?
Tenho muita sorte de ter feito quadrinhos toda a minha vida, e fiz os quadrinhos que queria fazer. Eu não trabalho como ilustrador, na verdade. Eu apenas faço minhas próprias coisas. Eu nunca tive um quadrinho incrivelmente bem-sucedido, que poderia ter colocado expectativas em mim ou me atrapalhado de alguma forma. Eu vejo tudo isso como uma bênção, sério. Eu sempre senti que os quadrinhos são uma forma de arte única. Quadrinhos são ótimos para apresentar ideias ou sentimentos contraditórios. Quadrinhos são complicados, mas simples. Não cansei de fazê-los. Dedico minha vida a eles.
“Quadrinhos são como colagens que você pode ler”
Aliás, você também é muito ligado ao universo das animações. Você vê muitos paralelos entre as linguagens das HQs e dos desenhos animados? Você se vê “pegando emprestado” técnicas e práticas de uma para a produção da outra?
Sim, sempre me interessei por “animação limitada” ligada aos quadrinhos, como as primeiras animações de [Osamu] Tezuka, a primeira temporada de Astro Boy ou o especial de Natal do Charlie Brown. Gostei de ambos por suas próprias linguagens cinematográficas particulares surgidas dos quadrinhos. Você pode ver, por exemplo, naquela primeira temporada de Astro Boy como Tezuka criou um modo cinematográfico específico a partir de suas habilidades como quadrinista. É diferente da animação “comprimir e esticar”, é uma coisa própria. Eu vi isso conectado ao cinema independente, o ethos de “menos é mais”.
Também fico curioso em relação à forma como você pensa cada página dos seus trabalhos. Pergunto isso porque os designs de página de Cosplayers são muito diferentes de Umbigo, me parecem muito mais rígidos. Qual é a sua proposta ao pensar o design de cada página?
Estou em busca de maneiras de a forma se tornar conteúdo, ou uma interação que impulsione um ao outro. Quadrinhos são como colagens que você pode ler. Por exemplo, se você faz algo maior, ocupando muito da página, está dizendo que isso é mais importante. O conteúdo dita a forma, e também a forma altera o conteúdo.
Talvez pelas duas protagonistas jovens, mulheres, desencantadas com o mundo, às vezes cínicas e irônicas, eu vi certo diálogo de Cosplayers com Ghost World, do Daniel Clowes. O Daniel Clowes é uma influência para você? Ghost World teve algum impacto na sua formação como autor?
Não era a minha intenção no começo, mas assim que a primeira edição saiu, o editor da Fantagraphics me chamou atenção para isso. Provavelmente porque sou do contra, pensei que seria interessante tentar me aproximar disso em vez de me afastar, então a segunda edição, Tezukon, tem um personagem muito característico do Clowes, o estudioso de mangá. Seja como for, eu amo o Clowes. Ele é o melhor.
Você pode, por favor, listar algumas obras e artistas que tiveram impacto em sua formação?
Meu pai colecionava quadrinhos então eles sempre estiveram por perto enquanto eu crescia. Eu sabia sobre quadrinhos hippies e Watchmen, até mesmo sobre o Spirit do Will Eisner, desde muito cedo. Nasci em 1983. Nos anos noventa, claro, eu lia os quadrinhos da Image, The Maxx do Sam Kieth era o meu favorito, mas o maior impacto em mim quando adolescente foram os quadrinhos japoneses que estavam sendo traduzidos: Ranma 1/2, Akira, etc. Eu vi quadrinhos longos, focados em personagens e com milhares de páginas. Além disso, veio a iluminação de que os quadrinhos não precisam ter uma aparência específica, que eles podem ser qualquer coisa. Esse foi talvez o maior e mais importante impacto sobre mim.
“Amo cosplayers pela fusão da fantasia com a realidade”
Cosplayers também aborda um pouco da realidade da cultura de fã, ligada a convenções e eventos de cultura pop, e muito associada à indústria dos quadrinhos. Como você se relaciona com essa realidade?
Pessoas diferentes gostam de cosplay por razões diferentes. Este livro reflete o que eu pessoalmente gosto. Eu amo a teatralidade dele, e seu aspecto artesanal. Eu amo que é uma fusão da fantasia com a realidade. Desenhar cosplayers é interessante porque os personagens se originam em desenhos, mas eles foram filtrados pela realidade, e agora estou filtrando-os de volta para a irrealidade/fantasia. Foram adicionados elementos que não estavam lá antes: o Gambit usa óculos agora, o Batman tem bigode, o traje é um pouco instável ou “folgado”, ou personagens mudaram de gênero ou raça. Renderizar essas diferenças ou idiossincrasias foi mais poderoso para mim do que desenhá-las para se parecerem com o personagem que as inspirou. Isso é parte do que eu amo sobre cosplays… Parece tanto representar como o fandom é mais amplo e mais inclusivo e humanista do que a maioria das histórias/personagens que os fãs são fãs, e também como o mundo ficcional impacta (ou invade) o mundo real.
Enquanto trabalhava em Cosplayers, li uma entrevista de 1974 com J.G. Ballard em que ele diz:
“O próprio surrealismo ficou para trás; é um período encerrado. Para [Salvador] Dalí poder pintar relógios macios, era necessário que os relógios reais fossem duros. Hoje, se você perguntar a alguém as horas na rua, poderá ver o rosto de Mickey Mouse na tela. É uma invasão típica e inteiramente banal da realidade pela ficção. Os papéis foram invertidos, e a partir de agora a literatura não deve tanto inventar um mundo imaginário, mas explorar as ficções que nos cercam.”
O que você pensa quando um trabalho seu é publicado em um país como o Brasil? Somos todos americanos, mas são culturas muito diferentes. Você tem alguma curiosidade em relação à forma como um trabalho seu será lido e interpretado por pessoas de um ambiente tão diferente dos seu?
Fui à Bienal do Livro do Rio de Janeiro quando Umbigo saiu, há mais de dez anos, e adorei. Também visitei São Paulo. Eu tinha vinte e poucos anos e foi perfeito. Visitei o Fábio Moon e o Gabriel Bá. Acho que o Rafael Grampá também estava por lá. Tenho boas lembranças dessa viagem e de ver a arquitetura no Rio de Janeiro. Em um livro em que estou trabalhando atualmente, um personagem vai ao Rio de Janeiro, inspirado nessa viagem. Enfim, fiquei encantado e espero que algum festival ou evento volte a me convidar, pois, como autor, só viajo quando sou chamado por um festival de cinema ou de livro.
A última! Você pode recomendar algo que esteja lendo/assistindo/ouvindo no momento?
Espero que todos conheçam Olivier Schrauwen, meu amigo que mora em Berlim. Seus quadrinhos são ótimos. Sobre filmes? Eu amo Matías Piñeiro, ele vive na Argentina. Eu nunca o conheci, mas eu amo seus filmes. As histórias dos Cosplayers foram em parte inspiradas em ver todos os filmes de Rohmer, em particular As 4 Aventuras de Reinette e Mirabelle, e os filmes de Piñeiro estão definitivamente nesse espírito rohmeriano.