Publicado pela editora Veneta, Viagem em Volta de uma Ervilha é o primeiro quadrinho de Deborah Salles e Sofia Nestrovski lançado por uma editora. Anteriormente, em 2018, a dupla havia trabalhado junta em Minha Casa Está um Caos, um dos vencedores do edital da Coleção Des.Gráfica, organizado pelo Museu da Imagem e do Som. Responsável pela arte dos trabalhos da dupla, Salles também havia publicado a independente Quase Um Ano e quarta edição da Série Postal 2018.
Entrevistei as duas autoras para escrever sobre Viagem em Volta de uma Ervilha para o jornal O Globo. Você lê o meu texto sobre a HQ clicando aqui. Reproduzo a seguir a íntegra da minha conversa com as artistas, na qual elas falam sobre a dinâmica de trabalho que desenvolveram durante a produção do livro, comentam as influências do quadrinista Winsor McCay e do poeta britânico William Wordsworth e apresentam algumas cenas inéditas que acabaram fora versão final do quadrinho. Papo massa, saca só:
“Foram surgindo as afinidades e a vontade de criar algo no mundo enquanto a nossa amizade ia se criando”
Por causa do Minha Casa Está um Caos e pelos posts de vocês no Instagram eu presumo que a amizade de vocês não é de hoje. Vocês podem me contar, por favor, como se conheceram? E quando vocês criaram alguma coisa juntas pela primeira vez?
Não é de hoje, mas também não é tão antiga assim. Ela tem exatamente a idade deste livro novo: quase dois anos. A gente se aproximou porque queria fazer algo juntas. Já tínhamos nos encontrado uma vez ou outra, por uma amiga em comum (beijo pra Milena), mas nunca tínhamos conversado de verdade. Partiu da Deborah o convite para pensarmos num projeto coletivo. Daí em diante foram surgindo as afinidades e a vontade de criar algo no mundo enquanto a nossa amizade ia se criando.
O livro foi se realizando por meio de muita troca e muita convivência. Começamos a nos ver quase diariamente durante esse período, porque foi um momento em que nós duas estávamos trabalhando em casa, passando os dias sozinhas… então fazia sentido que a gente se juntasse para trabalhar em companhia. A gente começou a passar o dia juntas, mas cada uma fazendo suas próprias coisas, parando de tempos em tempos para tomar um café ou comer um doce ruim de padaria. Nessa convivência, é claro, a gente conversava muito sobre o livro e ia experimentando modos diferentes de fazê-lo.
Como foi o início dessa experiência juntas?
Foi uma descoberta para nós duas: como trabalhar juntas, como ir se afinando uma à outra. Teve muita troca de referências durante todo o processo. Criamos uma pasta no dropbox onde fomos colocando todo tipo de coisa que queríamos compartilhar entre nós — músicas, poemas, uma caligrafia bonita num papel antigo… São referências que nos ajudaram a pensar no projeto, mas que também nos fizeram mais amigas, mais íntimas. Não é pouca coisa.
“Talvez tenha sido essa a ideia ou sentimento inicial do livro: uma vontade de se colocar no mundo”
Eu queria saber o mesmo sobre o Viagem em Volta de uma Ervilha: houve algum momento específico em que esse quadrinho começou a tomar forma? Houve alguma ideia ou sentimento inicial que vocês tinham em mente quando começaram a desenvolver esse projeto?
Talvez ele nunca tenha parado de tomar forma, e se a Veneta não tivesse aparecido, a gente estaria mexendo nele até hoje. Teve alguns momentos em que a gente achou que ele já estava pronto. E não estava. Em abril de 2018, a gente teve um desses momentos. Foi o nosso “primeiro-pronto”. Mandamos um PDF dele para alguns amigos e a maior parte deles nos respondeu com aquele emoji que é só dois olhinhos e nenhuma boca.
Mentira, nenhum deles fez isso, mas acho que foi essa a sensação que nos deu. As pessoas não estavam entendendo o que a gente estava tentando fazer. Então a gente decidiu repensar o projeto, porque aquilo tinha virado uma conversa fechada, que não comunicava com as pessoas além de nós duas. Comunicação é um negócio difícil, mas era o que a gente queria tentar.
Talvez tenha sido essa a ideia ou sentimento inicial do livro: uma vontade de se colocar no mundo. É um pouco vago. A gente queria abrir uma conversa. Talvez seja isso.
Acredito que esse livro foi tomando forma principalmente a partir das reflexões da Sofia pro mestrado e da Deborah sobre quadrinhos e design. Fico curioso pra saber o quanto a Deborah tava inserida nos estudos da Sofia e a Sofia nas reflexões da Deborah sobre HQs. Como foi pra vocês a experiência de uma ir se inteirando e dominando o universo habitado pela outra?
A gente se conheceu num momento muito parecido, em que as duas precisavam se concentrar muito em projetos das quais tinham que dar conta sozinhas. Eram trabalhos muito individuais e de muita pesquisa, então chega um momento que parece que você está flutuando no vazio e sua cabeça virou um balão de ar.
Foi muito bom descobrir que, de repente, a gente tinha com quem compartilhar nossas pesquisas. A natureza de trabalhar junto é meio essa: parar pra conversar, ficar um tempão em silêncio depois, ver o que a outra está fazendo… acho que a gente se apresentou uma para a outra também pelo nosso trabalho.
Além disso, teve muita ajuda num sentido mais prático, a Deborah leu e releu e diagramou o mestrado da Sofia, a Sofia fez várias poses estranhas para que a Deborah pudesse desenhar no TCC, que ela leu e releu também… E os trabalhos com certeza foram mudando por essas influências. Bônus: o mestrado da Sofia fala sobre poetas da virada do século 18 para o 19 que eram muito amigos, conviviam quase diariamente e escreveram um livro em conjunto.
Vocês podem me contar um pouco sobre a construção desse trabalho? Qual era a dinâmica de trabalho de vocês? Vocês trabalharam com um roteiro fechado?
Não tivemos um roteiro fechado. Foi muito na tentativa e erro. A gente tinha feito histórias inteiras que, de última hora, entendemos que não cabiam no quadrinho, estavam destoando. Então tiramos. Mas podemos mostrar uma palhinha (não comprometedora) delas:
Para cada história que fizemos, foi um processo diferente. Às vezes era como se a gente estivesse começando um livro novo, do zero, a cada história nova. Então deu um trabalhão. Se trabalho deixasse alguém rico, a gente agora seria milionárias.
Sofia, eu gosto muito como o seu texto no quadrinho é disposto em parágrafos blocados com cara de quadros. Você pensou no seu texto a partir dessa disposição visual associada aos desenhos da Deborah? Você sentiu algum desafio particular em construir um texto para uma história em quadrinhos?
Alguns dos textos já estavam prontos antes de eu conhecer a Deborah, e a gente foi pensando em como dividi-los para encaixarem nas páginas. O texto de abertura, por exemplo, era todo escrito em parágrafos longos, e a gente sentou juntas para separá-lo em pedacinhos. Mas o mais legal, pelo menos pra mim, foi quando comecei a pensar a escrita junto com o desenho, pensar numa espécie de roteiro. Propus coisas de desenho para a Deborah e deu certo porque a Deborah é uma gênia. É muito bom trabalhar com gênios.
Foi uma grande descoberta e uma grande alegria e uma grande libertação fazer esse livro. Várias coisas grandes. O que permitiu que o livro fosse pequenininho, para ele ter só o que precisava ter, e todas as rebarbas de emoção puderam permanecer conosco.
“Tinha alguma coisa na minha pesquisa que parecia conversar com o livro, e hoje eu acho que eram os espaços vazios e de silêncio”
Aliás, Sofia, o que mais te interessa na linguagem dos quadrinhos?
A primeira coisa que eu penso é que me interessa aprender uma língua nova. E o quadrinho é isso para mim: um jeito novo de falar. Vou contar uma história.
“Uma cesta de pesca é feita para capturar peixes. Mas depois que você tem o peixe, você não precisa mais pensar na cesta. Uma armadilha é feita para capturar lebres. Mas depois que você tem a lebre, não precisa mais pensar na armadilha. Palavras são feitas para capturar ideias. Mas quando você já capturou essas ideias, não precisa mais pensar nas palavras. Se eu pudesse apenas encontrar alguém para conversar comigo que tivesse parado de pensar nas palavras…”
Essa historinha é de Zhuang Zhou, um filósofo chinês que viveu mais de dois mil anos atrás. Me faz pensar nas possibilidades do quadrinho. E me faz pensar no que foi trabalhar com a Deborah.
Deborah, mesma pergunta procê: o que mais te interessa na linguagem dos quadrinhos?
Poderia dar a mesma resposta, porque para mim também é uma linguagem totalmente nova, um jeito de pensar o desenho que eu só comecei a experimentar há pouco tempo. Como alguém que desenha, gosto muito de poder trabalhar uma mesma ideia em quantas páginas for necessário, e com recursos que parecem infinitos. Felizmente, eu sou alguém que desenha trabalhando com alguém que escreve, então é como se todo aquele infinito se multiplicasse por mil.
Deborah, me fala sobre as suas técnicas? Como você faz os seus desenhos? Qual material você usa?
Como estava fazendo meu TCC — também um quadrinho — quando começamos o nosso livro, parti dos mesmos materiais que já estava usando, caneta-pincel e nanquim. Tinha alguma coisa na minha pesquisa que parecia conversar com o livro, e hoje eu acho que eram os espaços vazios e de silêncio. Mas a primeira ponte que fiz entre os dois trabalhos foi repetir os materiais, e não deu certo. O nosso livro exigia um grau de precisão muito maior, e eu mudei para bico de pena, um pincel bem fino e duas cores de nanquim.
Eu adoro a forma como vocês exploram o branco algumas páginas. Por que essa opção por tanto espaço “vazio”?
Para permitir que o leitor tenha um espacinho para ele também.
Também queria saber mais sobre a opção de cores utilizadas por vocês. Por que essas cores?
No começo, o livro era todo colorido.
Depois, a gente percebeu que isso poderia ficar confuso, além de diminuir muito nossas possibilidades de publicação, porque deixa a impressão bem mais cara. Então o rosa partiu de uma observação da Deborah de que o apartamento da Sofia tinha muitas coisas vermelhas. E que o rosa é a versão encantada do vermelho.
Mas essa cor tem mais de um significado: em primeiro lugar, o rosa é o lugar onde a vida imaginária do livro acontece. Mas ele às vezes cumpre uma função instrumental mesmo, de criar contrastes nos desenhos e de chamar a atenção para algo específico num quadro.
Depois que a gente já tinha entendido que o nosso quadrinho teria essas duas cores, teve um livro que nos ajudou a entender como desenvolver nossas ideias: Eloise, parceria da Kay Thompson (texto), com Hilary Knight (desenhos). É um livro infantil maravilhoso, sobre uma criança mal-educada e inquieta, vivendo sozinha num quarto com seus animais de estimação. Um pouco como a gente:
Me falem, por favor, um pouco sobre a influência do Little Nemo in Slumberland e do Winsor McCay na construção desse livro?
Por um lado, existe algo do tom geral do Little Nemo que nos atrai — em primeiro lugar, isso de você não saber se é um quadrinho para crianças ou para adultos. E isso de ele viver histórias mágicas e cheias de aventuras nos sonhos, mas o que muitas vezes as motiva é um troço totalmente banal e estranho: aquilo que ele comeu no jantar. A indigestão cria histórias lindas. Tem algum senso de humor aí que a gente não sabe explicar, mas que nos deixa curiosas.
Por outro lado, tem o virtuosismo do desenho do Winsor McCay. Ele é inimitável, o que enche a gente de vontade de imitar. Por exemplo:
Gosto muito de histórias sobre rotinas e banalidades, são temas predominantes em trabalhos como Seinfeld e nas HQs do Adrian Tomine, por exemplo, e acho que o Viagem gira muito em torno disso. Esses temas também são caros para vocês?
São muito, e chegaram em nós por muitas referências diferentes. Para dar uma resposta um pouco longa: a maior influência nesse sentido foi provavelmente o William Wordsworth (1770-1850), que é o poeta que a Sofia pesquisou no mestrado. Ele escrevia poemas sobre coisas muito miúdas do cotidiano, porque percebia que as pessoas estavam vivendo num estado de distração muito forte, ficando cegas e insensíveis ao que se passava com elas. Foi o período da Revolução Industrial e do crescimento das cidades na Inglaterra, e os modos de vida estavam mudando. Wordsworth intuiu que esses grandes acontecimentos — impulsionados também pela mídia, que começava a ganhar força — faziam as pessoas perderem contato com elas mesmas, e buscarem emoções cada vez mais fortes, quase como um vício. Os modos de vida estavam mudando e os modos de sofrimento também. A literatura da época era cheia de sangue e lágrimas e exageros; Wordsworth quis escrever num tom que devolvesse às pessoas o que elas tinham de mais humano e inalienável: a atenção. É algo muito simples, mas muito difícil de conseguir, sobretudo nesses momentos — um pouco como hoje — de grande instabilidade política. O que Wordsworth estava fazendo era nos mostrar de novo as coisas que a gente já se acostumou a ver — aquelas coisas do dia a dia que nem percebemos mais. Ele nos reapresenta ao mundo, e nos mostra que de perto ou de dentro tudo é interessante. Ele estava propondo uma educação da atenção.
Isto é um ponto. Mas teve também outras influências (gostamos de Seinfeld e de Adrian Tomine também!), como o filme A cidade onde envelheço (2016), de Marília Rocha. É um filme muito sutil, sobre a vida de duas amigas morando em Belo Horizonte. Não acontece praticamente nada nele, mas é tão bom de olhar. A gente queria fazer algo assim também: um livro sobre nada, mas que fosse bom de olhar. Que educasse nossa maneira de prestar atenção no mundo, e de dar atenção uma à outra.
Pra gente, agora, resta saber qual vai ser o olhar dos leitores para o livro. Estamos curiosas. E queremos estar atentas.