Imagine algo que você goste muito de fazer. Agora pense em alguma coisa que te deixe completamente desconfortável. Tipo, acho que poucas coisas me dão mais prazer que um prato de espaguete à carbonara. E começo a fechar os olhos se penso no barulho de giz passando num quadro de escola. Pior, aquele barulho de unha passando em um quadro. Talvez seja o som que melhor passa a ideia de desconforto.
Enfim, o meu ponto é que, para mim, ler um quadrinho de Diego Gerlach é meio que comer um carbonara tendo como trilha sonora uma unha se arrastando por um quadro de escola. É diversão no seu melhor acompanhada de um incômodo incessante.
O álbum Alvorada dos Corações Macabros talvez seja o ápice desse antagonismo de sensações que só a leitura de um quadrinho de Diego Gerlach consegue gerar. É uma HQ engraçada que não chega a ser de humor, mas cômica em sua tragicidade. Me ganha pelo absurdo. É a epítome de um gênero do qualo autor é seu primeiro e único representante: o desconforto gerlachiano.
“Faz sentido, sim”, me disse Gerlach no começo de maio, quando o entrevistei sobre seu trabalho mais recente, publicado pela editora Pé-de-Cabra, e perguntei sobre os atributos do gênero referente única e exclusivamente às obras dele.
Ele completou: “Curto suspense, curto quando uma obra consegue me manipular a ponto de me deixar na ponta dos cascos, me perguntando o que vai acontecer a seguir. Me interessam certos tipos de desconforto (com exceção de cenas de tortura e violência sexual), seja pela endorfina que geram, seja pelas reflexões que surgem a posterior”.
Passei cada uma das 116 páginas de Alvorada dos Corações Macabros na ponta dos cascos, me perguntando o que iria acontecer a seguir, obcecado com cada página e temeroso do que estava para acontecer. Trata-se, até o momento, da minha leitura preferida de 2024.
Alvorada é ambientado entre 1994 e 2022, entre a morte dos músicos Kurt Cobain e Taylor Hawkins. Um foi vocalista do Nirvana e o outro baterista do Foo Fighters, parceiros criativos de Dave Grohl, baterista de um conjunto e vocalista do outro. Aí, um adolescente emocionalmente abalado com a morte de Cobain no início dos anos 1990 concebe uma teoria conspiratória envolvendo Grohl em seguida à morte de Hawkins no início dos anos 2020.
Ir além disso estragaria a história – apesar dela ir bem além disso, envolvendo toda uma saga cósmica-alienígena relacionada à própria existência da espécie humana.
“Comecei com a intenção de fazer uma história curta para uma antologia, e acabei com minha HQ mais longa até hoje”, me contou Gerlach. “O estopim inicial foi a morte do Taylor Hawkins e algumas piadas internas que tinha com amigos a respeito de Dave Grohl e da imagem que ele construiu para si, de um rockstar trabalhador e boa-praça, que se orgulha de encher arenas e ser amigo de todo mundo. Tenho uma suspeição natural desse tipo de pessoa. Talvez, sei lá, porque pareça muito a antítese da promessa inicial do Nirvana”.
O contraponto anos 1990/anos 2020 proposto pela HQ potencializa ainda mais os ares bizarros da trama. As pirações conspiracionistas do protagonista em sua adolescência, como fã de Nirvana e Arquivo X, tornam-se terreno fértil para práticas e ideias fascistas do mesmo personagem quando mais velho. Lembra a jornada do protagonista fã de quadrinhos de super-heróis de Noia – Uma História de Vingança, obra de Gerlach publicada em 2017 pela Escória Comix.
Alvorada dos Corações Macabros reforça a posição de Gerlach como um dos meus quadrinistas preferidos. Autor de obras como O Ano do Bumerangue (2010), O Plexo Holístico (2011), Arracém (2017), Nóia, Pinacoderal (2019), Batata-Quente (2019) e toda a série Know-Haole, ele não tem paralelo em termos estéticos e temáticos. E mérito para a editora Pé-de-Cabra em investir em um autor assim. Compartilho agora a íntegra da minha entrevista com Diego Gerlach, saca só:
“Acho que os anos 1990 parecem uma época meio lúdica, se comparada aos dias de hoje“
Queria saber sobre você nos anos 1990. O que você tava arrumando e como era sua vida no início dos anos 1990? O que você gostava de ler, ouvir e assistir nessa época?
Nos anos 1990, era um adolescente que vivia de modo disfuncional mas ainda não sabia disso. Gostava de gibis de super-herói, filmes de ação (sobretudo os do Van Damme), mas não tinha um gosto musical definido – meus pais não costumavam ouvir música em casa. Achava que minha família era como tantas outras (e era mesmo), mas não tinha parâmetro para saber que alguns aspectos não eram saudáveis, ou o quanto isso me cobraria no futuro. Talvez por isso, por volta dos meus 12-13 anos, me tornei alvo fácil pra “revolução rock’n’roll” da época, o grunge. Me parece um período absolutamente insano, considerando que usar drogas pesadas e parecer anoréxico e deprimido adquiriu uma aura cool e, talvez o ponto-chave, algo altamente vendável para a indústria cultural voltada aos jovens da época.
Me fala também, por favor, sobre a sua relação com o Nirvana? Você se lembra da primeira vez que ouviu Nirvana? Quais músicas curtia mais? Aliás, você gostava do Nirvana? A morte do Kurt Cobain teve algum significado particular para você?
Ouvi Nirvana pela primeira vez quando Nevermind já tocava direto no rádio, como a maioria das pessoas. Na época ouvi bastante o disco, embora no começo não soubesse dizer a diferença entre Nirvana, Iron Maiden ou Metallica, era tudo rock pesado pra mim. Depois de algum tempo meu gosto se cristalizou em torno do grunge em específico, deixando o metal de lado (pelo menos até surgirem as primeiras bandas de nu metal). A morte do Kurt me marcou bastante, lembro de quando um amigo veio me contar que “o cara do Nirvana” tinha se matado. Lembro distintamente do meu choque ao ver pela primeira vez aquela foto clássica do Nirvana em que Kurt posa sentado com o cano de um rifle automático enfiado na boca, enquanto Dave Grohl e Krist Novoselic sorriem ao lado dele. Durante um tempo, achei que era uma montagem de mau gosto mas, como vimos depois, não era sequer uma foto sarcástica. Eu era um adolescente introspectivo, anti social e deprimido, e durante um bom tempo não conseguia ouvir Nirvana e Hole sem chorar. Em especial quando ouvia Bleach, com a banda ainda verde e cheia de entusiasmo, um senso de tragédia me invadia e era mais do que eu conseguia suportar. Como resultado, ao longo da maior parte da minha adolescência, enquanto ouvia qualquer outra banda surgida na esteira do Nirvana, ignorava a banda-mãe. Só muito tempo depois voltei a eles. Me parece óbvio que eles eram os melhores, tanto os Beatles quanto os Sex Pistols da minha geração. Hoje em dia, escuto até mais do que na minha adolescência (com destaque para o Unplugged MTV), embora Nevermind tenha se tornado meu disco menos predileto deles.
E Arquivo X, você assistia?
Na época, muito pouco, um ou outro episódio na Record. Há poucos anos assisti às três primeiras temporadas. Tinha curiosidade de ver como o seriado tinha envelhecido, muito por conta do que o conspiracionismo contemporâneo se transformou. Achei bem divertido, adorei a ingenuidade dos roteiros, a profusão de atores coadjuvantes conhecidos, a sanguinolência dos efeitos especiais. Mas se hoje em dia você topa alguém com um papo parecido com o do Mulder num bar (e tenho a impressão que essas pessoas existem em números cada vez maiores), é a deixa para você dizer que vai ao banheiro e fugir.
“Minha maneira de contar histórias é influenciada 50% por quadrinhos e 50% por cinema“
Qual foi o ponto de partida de Alvorada dos Corações Macabros? Teve alguma motivação em particular ou alguma inspiração específica para esse quadrinho?
O estopim inicial foi a morte do Taylor Hawkins e algumas piadas internas que tinha com amigos a respeito de Dave Grohl e da imagem que ele construiu para si, de um rockstar trabalhador e boa-praça, que se orgulha de encher arenas e ser amigo de todo mundo. Tenho uma suspeição natural desse tipo de pessoa. Talvez, sei lá, porque pareça muito a antítese da promessa inicial do Nirvana, que a certa altura gravou uma música chamada “I Hate Myself and Want to Die”. Em termos de inspiração mesmo, é um misto de bizarrices diversas, incluindo histórias reais de stalkers e terroristas (como o “Stalker da Björk”, o Unabomber e Mark David Chapman), além de retratos ficcionais famosos de tipos assim (talvez epitomizada no arquétipo do “Homem Solitário de Deus” dos roteiros de Paul Schrader). Incluiria também o fato do rock hoje contar com um público mais velho e eminentemente reacionário. Comecei com a intenção de fazer uma história curta para uma antologia, e acabei com minha HQ mais longa até hoje.
Você pode contar um pouco por favor sobre a produção desse quadrinho? Quanto tempo você passou trabalhando nele? Quais materiais você usou?
Já faz uns três anos que luto contra sentimentos depressivos intensos (minha família tem histórico de problemas de saúde mental) e, no último ano em especial, se somaram a isso problemas financeiros. Durante a pandemia e logo após, uma série de traumas nunca antes acessados passou a cobrar seu preço. Creio que a leitura da história deixa claro que ela não se originou de um lugar de saúde mental e estabilidade, mas espero que mesmo assim renda algumas risadas e seja vista como um esforço para não sucumbir. Entre as pessoas que me informaram com anedotas e factóides que acabaram entrando na história, destacaria Pedro D’Apremont (que partilha do mesmo interesse irônico que eu por incels e tipos disfuncionais em geral) e DW Ribatski (que é obcecado por Kurt e Nirvana como eu). Levei dois anos entre indas e vindas para criar ela. Usei materiais simples: papel ofício 75 gramas, lápis, canetas de ponta seca e muito, muito corretivo.
Os seus quadrinhos têm momentos engraçados, mas não conseguiria dizer que você faz HQs de humor. Se eu tivesse que colocar seus trabalhos em um gênero, seria algo como “desconforto Gerlachiano”. Isso faz sentido para você? Provocar esse desconforto é uma intenção sua?
Faz sentido, sim. Curto suspense, curto quando uma obra consegue me manipular a ponto de me deixar na ponta dos cascos, me perguntando o que vai acontecer a seguir. Me interessam certos tipos de desconforto (com exceção de cenas de tortura e violência sexual), seja pela endorfina que geram, seja pelas reflexões que surgem a posterior. Acho que minha maneira de contar histórias é influenciada 50% por quadrinhos e 50% por cinema. Gosto muito dos filmes de Yorgos Lanthimos, Darren Aronofsky e Paul Thomas Anderson, por exemplo – autores que gostam de gerar desconforto. E Robert Altman, que também fazia filmes engraçados que não eram necessariamente comédias.
“Nostalgia, pra mim, é algo intrinsecamente reacionário e ilusório“
E acho que muito desse desconforto dialoga com a bad vibes do Brasil do início dos anos 1990, com a coisa deprê do Nirvana e as tensões conspiratórias de Arquivo X. Tem todo um combo aí muito propício para conspiracionistas, negacionistas, incels e tudo meio de errado que pode existir no mundo, né?
Olha, até nem vejo essa bad vibe toda atrelada aos anos 1990. Talvez pareça paradoxal, mas pra mim o grunge era um sintoma de uma época de estabilidade financeira e geopolítica sem precedentes, graças ao fim da Guerra Fria, todo aquele papo do Fukuyama sobre “O Fim da História”. Claro que hoje entendemos como só uma teoria furada proposta por alguns teóricos enamorados demais da própria retórica, mas mesmo assim acho que os anos 1990 parecem uma época meio lúdica, se comparada aos dias de hoje. Teorias conspiratórias ainda eram a província da esquerda e a angústia do grunge soa hoje tão caricata, a “voz de uma geração” passou a ser a de adolescentes de classe média entediados e traumatizados pelo divórcio dos pais. Não sinto uma nostalgia particular pelo período, porque nostalgia, pra mim, é algo intrinsecamente reacionário e ilusório. Os “bons tempos” nunca existiram: olhando pra trás, certamente não me definiria como feliz durante o período e não me sinto particularmente saudoso dele. Nos anos 1990 houve, por exemplo, uma consolidação sorrateira do neoliberalismo que hoje nos estrangula com a iminência do colapso climático. Como, em sã consciência, se sentir nostálgico disso? O que me levou a abordar o período foi o fato de ter vivido meus anos mais crucialmente formativos nele, mais do que alguma afeição especial, ou a crença de que as coisas eram mais interessantes na época.
Tem algo cíclico aí, não acha? Minha impressão é que 30 anos depois as redes sociais meio que fomentaram ainda mais essas loucuras do começo dos anos 1990. Falando em loucos do tipo, o meio nerd-geek é bem propício para o surgimento dessas pessoas. Aliás, você já tinha investido um pouco nessa em Noia. Enfim, o que você acha a respeito disso, dos reaças se proliferando nesse meio de supers-colecionáveis-saudosistas?
Acho que muito disso emana de um colapso educacional amplo. Tanto em termos particulares, da educação dada por pais egocêntricos e autocentrados a seus filhos, quanto num sentido maior, da degradação dos mecanismos de ensino e da anti-intelectualidade que vem no rastro disso. Cria-se um terreno fértil para sensações de não-pertencimento, facilmente distorcidas pelas redes sociais do capitalismo desregulado que habitamos, e aliciada por um de seus principais sintomas, o populismo político, que procura sempre explicações simples para problemas complexos. A intersecção disso tudo com quadrinhos me parece clara: entre leitores de quadrinhos você encontra muitas pessoas com dificuldades de sociabilidade, propensas ao solipsismo, que sentem ter encontrado uma seara apropriada para seus gostos peculiares. Essas pessoas começam a agir de maneira tribalizada e irracional quando se sentem ameaçadas, independente dessas ameaças serem irreais. Mas posso dizer que, felizmente, entre meus leitores ao menos, quase não vejo esse tipo de pessoa. Meus leitores são em sua maioria incríveis, e isso me dá força para seguir em meio às dificuldades.
Você leu, assistiu ou ouviu algo recentemente que chamou a sua atenção? Aliás, teve alguma obra que te acompanhou durante a produção de Alvorada dos Corações Macabros?
Adorei a série The Curse, creio que a mais interessante que vi em alguns anos. É uma série deveras engraçada e desconfortável, que detona de maneira inventiva os pontos cegos de um certo tipo de progressismo branco de hoje em dia. Em termos de rock, um assunto tão caro a esse gibi, tenho escutado muito os britânicos da Fat White Family, talvez a única banda nova que me importa hoje: articulada, reprovável e eventualmente chocante. O disco novo deles, Forgiveness is Yours, é maravilhoso. Sobre obras que acompanharam a feitura do gibi em específico, escutei a título de pesquisa discos de “rock alternativo” que não ouvia há mais de vinte anos. Na maioria das vezes, acabava me perguntando como algum dia podia ter gostado daquilo por tanto tempo, como bandas tão absurdamente distantes da minha realidade poderiam ter me cativado tanto. Mas a barulheira do Melvins e o pseudo-grunge radiofônico do Stone Temple Pilots ainda me descem bem.
Entrevista sensacional! “Alvorada…” está entre as minhas leituras preferidas deste ano. Gerlach é brilhante. Parabéns!