Papo com Evan Dorkin, o roteirista de Beasts of Burden: “A série difunde lealdade, coragem e amizade em um mundo no qual coisas ruins acontecem, mas há esperança no fim”

O quadrinista Evan Dorkin tem como uma de suas principais preocupações na criação de Beasts of Burden que cada um de seus personagens na série tenha sua própria voz. “Vozes são tão importantes quanto os designs dos personagens, a voz está no cerne da forma como o personagem vive e respira na página”, afirma o artista em entrevista ao blog. O cuidado do roteirista em dar personalidades e características distintas aos cães e gatos de sua série em parceria com a ilustradora Jill Thompson fica explícito no primeiro encadernado do quadrinho lançado no Brasil. Beasts of Burden – Rituais Animais é o quarto título da editora Pipoca & Nanquim e é publicado em português pouco mais de 14 anos após sua estreia nos Estados Unidos.

A série de Dorkin e Thompson conta a história de um grupo de cães e gatos enfrentando demônios, bruxas e criaturas assombradas em uma vizinhança suburbana do interior dos EUA. Esse primeiro volume da série é composto por histórias fechadas que dão indícios de um quadro maior sendo construído por seus autores. A HQ é um ótimo escapismo mesclando terror, aventura e humor mas dialoga constantemente com a realidade.

“A arte alivia a dor e nos conecta, permite que eu, como artista, fuja da realidade e crie um espaço no qual as coisas são diferentes, me permite falar com outras pessoas de forma direta ou indireta, me permite continuar humano em tempos tão desumanos”, ressalta o autor em relação a essa diálogo entre seu trabalho de fantasia e o mundo no qual ele está sendo publicado. Beasts of Burden foi uma surpresa para mim e fico na torcida para o lançamento dos próximos capítulos da série. A seguir, minha entrevista com o roteirista da HQ:

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Acredito que Beasts of Burden seja o seu primeiro trabalho publicado no Brasil. Pesquisei sobre outros quadrinhos seus e percebi que são muito diferentes da sua parceria com a Jill Thompson. Como você começou com HQs e como você define as suas primeiras publicações?

Os meus primeiros projetos eram principalmente quadrinhos de humor como Milk and Cheese e Dork e a série Bill and Ted pra Marvel. Mas mesmos os quadrinhos de aventura que fiz, como Pirate Corp$!/Hectic Planet, tendiam muito ao humor. Ou pelo menos tentavam ser engraçados. Eu sempre tive interesse em múltiplos gêneros, humor, aventura, ficção científica, super-heróis, autobiografias e também horror. Eu apenas não tinha conseguido levar adiante um projeto de horror até o surgimento de Beasts of Burden. A maior parte dos meus projetos iniciais é muito conectada à cultura pop americana e à realidade do meu país, então muito disso acabou não sendo traduzido para outros países. Até onde eu sei, Beasts é a primeira série em que estou envolvido que é publicada no Brasil.

“Eu pensei nessa ideia de uma casa de cães assombrada e a história acabou virando uma espécie de mistura entre Poltergeist e Uma Grande Aventura”

Você se lembra do momento em que teve a ideia de criar Beasts of Burden?

Sim, porque surgiu como algo muito específico, para uma antologia de horror que o editor Scott Allie estava criando para a Dark Horse chamada The Dark Horse Book of Hauntings, lá em 2003. O Scott sabia que eu tinha interesse em escrever histórias de horror e me pediu para contribuir com uma de fantasmas. Eu amo histórias de casas assombradas e queria escrever uma, mas pensei que mais alguém poderia tentar essa mesma abordagem então resolvi que a minha deveria ser diferente de alguma forma. Eu pensei nessa ideia de uma casa de cães assombrada e a história acabou virando uma espécie de mistura entre Poltergeist e Uma Grande Aventura. No meio disso tudo eu queria o visual e o clima de uma fábula e escrevi tendo em mente a aquarela da Jill Thompson. O Scott pediu pra Jill ilustrar, ela topou e a história, Abandono, teve um ótimo retorno.

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Você pode contar um pouco como começou a sua parceria com a Jill Thompson e como foi a apresentação do projeto pra Dark Horse? Você sempre teve em mente que seria uma série longa?

Nós nunca oferecemos para ninguém, foi essa primeira história que fez tudo acontecer. Abandono era para ser apenas uma história de oito páginas e não pensávamos em continuar a trabalhar com esses personagens. Mas no ano seguinte o Scott nos pediu uma história para o Dark Horse Book of Witchcraft, eu perguntei pra ele se poderíamos fazer uma continuação. Bruxas me fazem pensar em famílias e isso me fez pensar em gatos, o que me deu uma ideia para uma nova história nesse mesmo universo. Acabamos fazendo, assim como outras para os dois volumes seguintes da série, Book of The Dead e Book of Monsters. Nesse ponto nós já havíamos percebido que tínhamos uma série nas nossas mãos. Então eu sugeri o título Beasts of Burden e nós assinamos para fazer uma minissérie de quatro edições. Essas oito edições marcam a primeira fase da série. Trabalhando na minissérie eu acabei traçando os eventos que fariam de Beasts of Burden um projeto muito mais longo, com um arco principal, histórias paralelas e flashbacks que eu esperava conseguir contar.

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Como é a dinâmica do seu trabalho com a Jill Thompson? Você pode falar um pouco como é o seu roteiro e quais tipos de instruções que passa para ela?

Eu escrevo o roteiro completo – tudo o que precisamos apresentar na história é listado junto com informações que preciso que a Jill e os leitores saibam. A Jill pega isso e desenvolve na página da forma que achar melhor. De vez em quando ela expande uma sequência ou quebra alguns painéis, ela também costuma escolher outras angulações ou abordagens para o que sugiro no roteiro. Posso pedir que ela faça alguma coisa em função de um efeito específico ou então deixo por conta dela. Desde que a história seja preservada e a arte cumpra a sua função, mudanças são sempre bem-vindas. Um exemplo de cena que foi reconstruída pela Jill está no final de Um Cachorro e Seu Menino, que ela esticou por mais duas páginas para dar à sequência um impacto muito maior do que tinha. Era uma história de 18 páginas e tentei contar tudo no espaço que tínhamos, mas ela convenceu o Scott Allie a nos dar mais duas páginas para termos a atenção dos leitores e ampliarmos a tensão da situação do Ace e seu destino. É uma sequência adorável e ela resolveu isso muito bem, os leitores sempre mencionam o impacto dessa história.

“Vozes são tão importantes quanto os designs dos personagens, a voz está no cerne da forma como o personagem vive e respira na página”

Eu acho muito interessante como cada um dos personagens de Beasts of Burnden tem sua própria voz. Imagino que nós, leitores, nos conectamos mais facilmente com personagens humanos, obviamente, por sermos humanos. Eu fiquei curioso se essa foi uma preocupação em especial sua enquanto escrevia. Como os personagens não possuem feições humanas, foi importante para você investir em personalidades distintas na voz de cada um deles?

Dar personalidades e vozes distintas para personagens é algo muito importante para mim em todos os meus quadrinhos. Eu não gosto quando escritores não personalizam seus diálogos, quando todos os personagens falam da mesma forma e possuem os mesmos trejeitos a ponto de ser impossível discernir quem está falando se você acompanhar apenas os balões. Vozes são tão importantes quanto os designs dos personagens, a voz está no cerne da forma como o personagem vive e respira na página. Cada personagem deve ser escrito e criado e ter sua voz distinta sempre em prol da dinâmica do grupo. Especialmente em um livro com animais, no qual você não tem roupas, uniformes e cortes de cabelo que ajudem a aflorar a personalidade do personagem. Quando converso com jovens quadrinistas ou escritores eu cito um exemplo muito básico disso na forma como falam os membros do Quarteto Fantástico no anos 60 – o Reed Richards é o intelectual pomposo, o Johnny Storm é o esquentadinho arrogante metido a engraçado e cheio de gírias, o Coisa é cheio dos maneirismos das regiões do Brooklyn e do Bronx e a Sue Storm, infelizmente, sempre fala de maneira emocional e maternal. É uma abordagem simplista, mas você consegue distinguir quem está falando em cada momento sem precisar ver a arte. Eu tento criar dentro dessa mesma abordagem para dar mais personalidade e verossimilhança para os meus personagens.

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Não é algo novo o uso de animais humanizados na ficção e quando isso ocorre costuma ser para expor verdades sobre nós, humanos. Eu vi um diálogo entre as tensões e os medos dos personagens do seu quadrinho com a nossa realidade. É importante pra você essa conexão entre ficção e realidade? Que o quadrinho seja mais que apenas puro escapismo?

O principal objetivo da série é contar histórias atraentes e memoráveis com personagens que os leitores possam se importar. Os personagens ganharam atributos humanos e há uma tensão e alguns comentários sobre as diferenças do mundo deles e como eles são vistos pela nossa sociedade. E há alguns instantes com subtextos deliberados, como o medo da morte e do abandono. A história Perdido eu escrevi tendo em mente meus temores e as minhas ansiedades em relação à paternidade, é sobre o medo de perder uma criança. Também trata explicitamente de crueldade animal. What The Cat Dragged In remete a Perdido, trata do fato de que algumas pessoas jamais deveriam ser pais e também sobre as possíveis más escolhas feitas por uma pessoa. Isso tudo está inserido na história de forma a não acertar a cara de ninguém como uma mensagem. Acho que um trabalho fica mais forte se seu principal tema estiver na espinha da história e não na face, se é que isso faz sentido. É melhor que o tema fique enterrado abaixo do escapismo, da diversão, das piadas e dos horrores ao invés de exposto como uma mensagem para se provar um quadrinho sério.

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Eu estou escrevendo para você no dia seguinte ao ataque terrorista em Las Vegas que resultou em 58 mortes. Assim como o Brasil, os Estados Unidos também estão passando por um período de muito medo e conservadorismo aflorado. Como você vê o papel da arte em tempos como esses? Como você acha que quadrinhos podem nos ajudar a melhorar as nossas realidades? Aliás, você acha que isso é possível?

Eu gostaria de ter uma resposta maravilhosa para isso. Eu estou respondendo após o atentado em Las Vegas, também após nosso dito líder minimizar e atacar as pessoas sofrendo em Porto Rico e não parece haver fim a insanidade e a podridão em curso no meu país e no mundo. A arte alivia a dor e nos conecta, permite que eu, como artista, fuja da realidade e crie um espaço no qual as coisas são diferentes, me permite falar com outras pessoas de forma direta ou indireta, me permite continuar humano em tempos tão desumanos. Me permite saber que há outras pessoas que compartilham das minhas opiniões, dos meus sentimentos e dos meus medos, de forma diferente do que ocorre no Twitter ou em um bar. Me dá esperança que a bondade possa prevalecer, assim como pessoas racionais com o passar do tempo. Alguns leitores já compartilharam histórias de como eles foram afetados pessoalmente pelo meu trabalho e isso é maravilhoso, mas no fim das contas nós temos tão pouco controle das pessoas e instituições que arruinam o mundo. A arte alivia, mas não é a cura. A arte pode desafiar autoridades ou revelar a verdade sobre poderosos, mas não costuma salvar vidas, aprimorar opiniões ou mudar qualquer coisa. É uma atividade humana para a qual somos atraídos por fazer a vida mais fácil e por permitir nos conectarmos com outras pessoas, compartilhando sentimentos e informações. A arte fala dos nossos tempo. Ela raramente afeta os nossos tempos, eu acho. Quadrinhos e arte me ajudaram em períodos difíceis da vida, como um criador e um fã. Beasts of Burden é uma forma de difundir lealdade, coragem e amizades em detrimentos de maldade, ignorância e ódio em um mundinho no qual coisas ruins acontecem, mas há esperança, força e vitória no fim. Não é uma cura para nada, mas me faz feliz e faz os nossos leitores felizes. Nós fazemos o que podemos, dia depois de dia, do nosso jeitinho e seguimos em frente.

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A última! Você poderia recomendar algo que esteja lendo, assistindo ou ouvindo atualmente?

No momento estou lendo Cold Print do Ramsay Cambpell, coletânea de suas primeiras histórias inspiradas na mitologia de Cthulhu. Sou um grande fã de escritores como HP Lovecraft, MR James, Arthur Machen, Algernon Blackwood, William Hope Hodgson e etc, assim como todos os outros que os influenciaram e foram inspirados por eles. Por causa do meu trabalho em Beasts of Burden e em outros projetos como Calla Cthulhu – que escrevi com a minha esposa, Sarah Dyer – eu tenho tido overdoses constantes desse material há um tempo. Eu acabei de reler O Senhor dos Anéis, apenas por diversão, pela primeira vez desde a minha adolescência e fiquei surpreso como ainda gosto dos livros. Leio muito mangá, ultimamente coisas como Monster, Master Keaton, Bleach, The Book of Friends, Bakuman, Princess Jellyfish, Kitaro, Queen Emeraldas, One Punch Man. Não tenho sido de acompanhar muita televisão ultimamente, eu tento assistir filmes velhos e obscuros no YouTube quando tenho tempo, o que não é frequente. Estou em uma fase severa de horror desde os meus 50 anos, acho. Eu ouço a podcasts de horror e jogos enquanto desenho, como The Good Friends of Jackson Elias, A Warning to the Curious, Miskatonic University, HP Podcast, também escuto programas sobre folclore e dramas antigos de rádio, assim como audiolivros. Eu tenho várias playlists no Spotify e ouço de tudo que vá do punk ao rock progressivo e música clássica.

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Ramon Vitral

Meu nome é Ramon Vitral, sou jornalista e nasci em Juiz de Fora (MG). Edito o Vitralizado desde 2012 e sou autor do livro Vitralizado - HQs e o Mundo, publicado pela editora MMarte.

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