Em 2020 o quadrinista Fábio Vermelho fugiu de seu cenário habitual. Ele deixou os Estados Unidos da década de 1950 para ambientar seu 400 Morcegos no Brasil do fim dos anos 1960. Sem os elementos fantásticos costumeiramente presentes nas histórias do autor, o título publicado pela Escória Comix talvez seja a obra mais violenta do artista até aqui, mostrando as ações de jovens crentes em rituais satânicos que têm como alvo um casal de atores de sucesso.
Já o primeiro trabalho de Vermelho em 2021 retorna à ambientação costumeira de suas HQs. Originalmente publicada entre as edições #3 e #10 da Weird Comix, revista pessoal do autor, Eu Fui um Garoto Gorila agora é reunida em um único volume pela editora Veneta. O álbum narra a história de um adolescente da cidade de West Moss, nos EUA dos anos 1950, que se transforma em um gorila gigante assassino.
O meu primeiro contato com os trabalhos de Vermelho foi em uma HQ de duas páginas na primeira edição da Revista Pé-de-Cabra, publicada em março de 2018. Depois fui atrás de todos os números da Weird Comix e, em seguida, li o violento Assassino na Casa (Ugrito #20) e o doentio O Deplorável Caso do Dr. Milton (Escória Comix). Além de seu traço hachurado, das tramas surtadas e do humor bizarro, me impressiona nos quadrinhos dele a tensão constante de suas histórias.
Dois anos após a minha primeira entrevista com Fábio Vermelho, voltei a conversar com o autor. Focamos esse novo papo em Eu Fui um Garoto Gorila e 400 Morcegos. Ele me falou sobre suas parcerias com as editoras Veneta e Escória Comix, refletiu sobre os temas e as propostas de cada um desses trabalhos, adiantou um pouco sobre a ainda inédita 11ª edição da Weird Comix e comentou a influência dos quadrinhos de Marcello Quintanilha em suas HQs. Saca só:
“Não faz o menor sentido desenhar um gibi com serial killers, assassinato, flagelação e coisas do gênero e não mostrar absolutamente nada”
Tenho perguntando para todo mundo que entrevisto desde o início do ano passado: como estão as coisas aí? Como você está lidando com a pandemia? Ela afetou de alguma forma a sua produção e a sua rotina diária?
Está sendo uma montanha russa de emoções. No começo, quando o negócio estourou no mundo todo, fiquei extremamente neurado, então foquei total nos meus desenhos para tentar esquecer. Quando eu terminei de desenhar Morcegos já estava menos neurado, mas ainda estou isolado e hoje em dia só consigo sentir um misto de choque com decepção de ver todo mundo vivendo normalmente por aí, como se nada estivesse acontecendo. Não as pessoas que precisam trabalhar, óbvio, mas as que estão em praias, shows e bares.
Em 2020 você lançou o 400 Morcegos pela Escória e nesse início de 2021 está publicando o Eu Fui Um Garoto Gorila pela Veneta. Você pode falar um pouco sobre as origens de cada um desses trabalhos? Houve alguma inspiração ou ponto de partida em particular para cada uma dessas histórias?
A centelha inicial de 400 Morcegos veio enquanto ainda fazia O Deplorável Caso do Dr. Milton. Falei com o Lobo [Ramirez, editor da Escória Comix] que queria fazer o próximo gibi mais curto e que tivesse algo de satã e sacrifícios, coisas assim. Foi logo aí que bolei a frase da contra-capa (Sangue, Sexo, Satã), que era o que eu queria que tivesse no enredo. E aí, enquanto eu ia terminando o Dr. Milton, fui desenvolvendo a história. Percebi que para fazer um gibi curto não rolava fazer toda a história de um culto grande e tal, então resolvi reduzir para duas pessoas, que acabaram sendo o Walter Victor e a Helô. Um dia, ouvindo Mutantes, me veio a ideia de que o Walter poderia ter toda uma epifania ouvindo a música Trem Fantasma, e que isso tinha que acontecer nos anos 1960, qual década melhor para algum drogado ter epifanias assassinas? Olha o Charles Manson aí que não me deixa mentir. A partir daí, já tendo a ideia inicial, comecei a desenhar. Enquanto ia desenhando esse começo ia pensando no resto, embora eu já tivesse umas e outras cenas que eu queria que estivessem no gibi. Só me faltava encaixar tudo, mas isso vai acontecendo conforme desenvolvo a história.
Já o Gorila foi um processo diferente. Apesar de eu não ter escrito roteiro também, pude ir desenvolvendo a história durante cinco anos. A ideia inicial veio de fazer uma mistura estranha de filmes B dos anos 1950, como I Was a Teenage Frankenstein e I Was a Teenage Werewolf, uma pitada de King Kong e bastante true crime, serial killers, investigadores de polícia e coisas assim. E como fui desenvolvendo ao longo dos anos, desenhei ao mesmo tempo quadrinhos curtos para a Weird Comix, como Goo-Goo Muck, que se passa nessa mesma cidade do Garoto Gorila, West Moss, com alguns personagens recorrentes. É por isso que essa história está no mesmo livro do Gorila.
“Ainda quero fazer HQs com vampiros, zumbis e canibais”
Aliás, você começou a sua história como quadrinista como autor independente, publicando a Weird Comix por conta própria. Como é a experiência de publicar dois trabalhos seguidos por editoras? O que mais te surpreendeu dessa experiência com editoras?
Está sendo uma ótima experiência, gosto muito das duas editoras, e cada uma das ideias que o Lobo e o Rogério [de Campos, editor da Veneta] dão. Fico feliz porque são duas editoras que gosto de verdade, então é muito massa ter meus quadrinhos publicados por elas, acho que estão em boas mãos! O que me surpreendeu de verdade foi ver que consigo trabalhar com outras pessoas, ao invés de sozinho. Até então eu fazia tudo só, então se meu gibi fosse um fracasso eu só devia satisfações a mim. Quando comecei a publicar por editoras comecei a me perguntar ‘Mas e se acharem esse gibi uma bosta? E se ninguém comprar e eu falir a editora? Vai ser tudo culpa minha!’. Todo lançamento de gibi é uma nova taquicardia!
O que você pode adiantar sobre essa edição de Garoto Gorila pela Veneta? Ela tem alguma diferença do trabalho que você publicou originalmente nas Weird Comix?
Não tem diferença na história em si, que está integralmente lá, sem tirar nem pôr. Mas para o livro eu acrescentei, como disse antes, uma HQ curta e também, por sugestão do Rogério, inseri umas ilustrações como respiro entre alguns capítulos, Algumas são ilustrações que saíram nas Weird Comix, outras fiz especialmente para o livro. Também para o livro fiz um desenho que usei de abertura para a história principal do livro, a Garoto Gorila.
Ah, e claro, tem a minha tradução para o português também, já que tudo foi originalmente pensado e escrito em inglês [todas as edições da Weird Comix são escritas em inglês].
Você já me falou uma vez por seu interesse em subverter essa aura de ingenuidade dos anos 50 e essa é uma das características de Garoto Gorila. Mas eu queria saber: tem um ponto de partida esse seu interesse pelos Estados Unidos dos anos 50? Quais obras dessa época você mais gosta e mais contribuíram para a formação do seu imaginário dessa época?
O interesse começou pela música. Primeiro, com o neo-rockabilly dos anos 1980 e em seguida pelo rockabilly original dos anos 1950. Para criar esse imaginário que uso nas minhas histórias, foi uma mistura de um monte de coisa. Tanto filmes clichês e bobos como Grease e American Graffiti, quanto umas coisas mais trashs que saíram na época, como os filmes B que rolavam nos drive-in, e, claro, os quadrinhos da EC Comics que saiam antes do Código. Lendo também livros como O Apanhador no Campo de Centeio, On The Road, Os Subterrâneos, Queer, Almoço Nu, percebi também o óbvio: desajustados existem desde sempre, inclusive nos anos 1950. Os jovens podiam sim se envolver em crimes, usar drogas, desrespeitar as autoridades, matar e morrer. E por que não mostrar tudo acontecendo em uma cidade normal, mas onde coisas esquisitas como monstros, gorilas gigantes e aliens existem?
Li também livros sobre a origem do rock’n’roll, suas raízes e seu público alvo, os jovens. Li livros também sobre os Teddy Boys, uma subcultura jovem britânica que eu acho super interessante, que explodiu nos anos 1950, baseada no rock’n’roll americano e em vestimentas com estilo da Era Eduardiana.
Provavelmente parte dessa vontade veio de ver como os Cramps subvertem inúmeras músicas dos anos 1960 para trás e as transformam em algo completamente a cara deles. É tudo uma coisa só, um monte de livro, filmes e músicas que acabam se misturando e saindo em forma de quadrinhos de uma forma que nem sei explicar direito.
“Ouvindo Mutantes me veio a ideia de que tinha que acontecer nos anos 1960. Qual década melhor para epifanias assassinas?”
Uma das surpresas do 400 Morcegos foi a ambientação no Brasil dos fim dos anos 60. Como foi a experiência de trabalhar nesse outro cenário e nessa outra época?
Foi demais! Eu sempre desenhei ilustrações e até um quadrinho curto que se passa nos anos 1960, mas nunca tinha feito algo no Brasil.
E essa devia ser uma época bem esquisita no nosso país, toda aquela parada hippie no mundo e aqui rolando uma ditadura. Tentei botar um pouco desse clima meio calor, praia, música, mas ao mesmo tempo policiais sendo truculentos na rua e pessoas aleatórias xingando os outros de comunista. Na verdade parece bastante como Brasil de hoje, olha só, que bosta.
Ainda sobre essa ambientação dos 400 Morcegos, quais tipos de referência você tem do Brasil dessa época? Quais músicas, filmes e outras obras desse período estão mais presentes no seu imaginário e você usou de referência para a construção da HQ?
Essa parte é divertida! Gosto de procurar referências! Muita coisa peguei de filmes, propagandas da época, revistas de moda, etc. Tem um monte de detalhezinho! Aquela parte em que o avião chega no Rio de Janeiro, por exemplo, fiquei procurando propagandas de companhias aéreas da época para ver como eram os aviões e tal. Acho até que a fala da aeromoça foi copiada de alguma propaganda ou trecho de filme… [ver imagem acima]. Os cartazes dos bares, ou coisas grudadas nas paredes, muitas delas procurei coisas da reais da época, apesar de saber que ninguém vai ligar pra isso.
Apesar de odiar desenhar automóveis, gosto de procurar os carros da época também. Mesmo não gostando de desenhá-los, os carros dos anos 1970 para trás são muito mais bonitos dos que o de hoje em dia. Gosto de procurar as roupas e penteados também, especialmente em filmes e fotos antigas. Eu perdi a conta de quantas fotos do Woodstock eu olhei durante esse tempo.
Uma outra referência para juntar tudo nesse gibi foram os filmes do Rogério Sganzerla, como O Bandido da Luz Vermelha e A Mulher de Todos. Queria que o gibi soasse como um filme feito naquela época. Não sei se consegui hahaha.
Qual tipo de terror você gosta mais, tanto de ler quanto de produzir: terror real ou com elementos de fantasia? Você vê muitas diferenças entre essas possibilidades do gênero?
A verdade é que não leio tanto terror. Gosto muito do Edgar Allan Poe, leio quase tudo que encontro dele, mas fora isso só um pouco de Stephen King e Lovecraft. Li os clássicos também, como Drácula e Franskentein, mas não passo muito disso. O que mais interessa no terror são os filmes: assisto tanto os bem antigos como os mais novos, que estão sendo lançados hoje em dia. Todos me interessam, seja de fantasma, possessão demoníaca, serial killers, gore, vampiros, o que seja. Acabo assistindo muita merda por causa disso, mas na maioria das vezes eu gosto, porque há possibilidades infinitas de histórias para se criar, justamente por causa das diferenças entre o terror real e o terror fantasioso. Já fiz quadrinhos com monstros, serial killers, experimentos científicos que deram errado, rituais satânicos, mas ainda quero fazer um quadrinhos com vampiros, zumbis e canibais (não todos juntos haha). O quadrinho com canibais anunciei numa live da Escória e já pretendo começar no meio do ano, só falta pensar melhor no enredo, amarrar umas pontas e tal, mas ainda há tempo. O quadrinho com vampiro também já tenho uma ideia, mas não pretendo começar por enquanto pois já estou fazendo muitos gibis ao mesmo tempo. Mas pretendo começar tão logo eu termine The Rise and Fall of George Pills e ir soltando aos poucos nas Weird Comix. Quadrinhos com fantasmas eu não sei como faria ainda. E nem com zumbis. Mas quem sabe um dia?
“Adoro os balões de fala do Quintanilha, admito que tentei copiá-los em 400 Morcegos”
As Weird Comix são compostas por várias histórias curtas, mas com algumas exceções mais longas, como é o caso de Garoto Gorila. Da mesma forma, você publicou a 400 Morcegos e a Dr. Milton. Você tem gostado dessa experiência de contar histórias mais longas? Tem algum elemento em particular da construção de uma HQ com mais páginas que te interessa?
Tenho gostado sim! Cada vez mais tenho interesse em fazer quadrinhos longos, como os que você mencionou e o outro que eu disse na pergunta anterior, The Rise and Fall of George Pills (que está na página 90 atualmente e nem está realmente no começo). Não sei bem explicar o porquê, mas acho que as histórias que ando criando estão ficando cada vez mais mirabolantes, não sei. Mas ainda tenho vontade de fazer histórias curtas sim, ainda mais essas que são baseadas em música. Fiz uma de quatro páginas chamada Green Door, que vai sair na Weird Comix 11, e tem outra que quero fazer depois também, chamada Swamp Gal, mas essa provavelmente só para a edição 12.
Você já me falou que não gosta de escrever uma história toda antes de desenhar, me contou que pensa geralmente em elementos básicos do início, do meio e do fim e vai construindo a história e os diálogos à medida que desenha a HQ. Esse foi o método de Garoto Gorila e 400 Morcegos?
Sim, foi o mesmíssimo método, com a diferença que tive que criar e desenhar 400 Morcegos durante fevereiro e julho de 2020, enquanto que o Garoto Gorila pude desenvolver de 2015 a janeiro de 2020, enquanto ia fazendo outras coisas ao mesmo tempo. E isso vem dando certo pra mim. Por exemplo, se eu estiver sem ideias de como juntar um ponto a outro de 400 Morcegos e já desenhei tudo que tinha pensado até então, posso dar uma pausa e voltar a desenhar George Pills. Faço mais uma ou duas páginas, desenho uma encomenda, faço algum desenho no sketchbook… Nesse meio tempo eu acabo tendo a idéia que eu precisava para o Morcegos e volto à produção dele. Parece meio caótico e dependente de sorte falando desse jeito hahaha Mas tem dado certo. Eu acho que não conseguiria sentar e escrever um quadrinho inteiro antes de começar a desenhá-lo. Só de pensar nisso já me dá dor de cabeça: ter todas as idéias do quadrinho, do início ao fim, de uma vez só. Acho que se algum dia eu fizesse isso, ia acabar mudando o roteiro no meio, enquanto desenho o negócio. Acho que me inspiro demais nas coisas que vejo e leio, então acabo tendo idéias o tempo todo (o que não quer dizer que sejam boas idéias, é só ver os quadrinhos que eu fiz).
Você também já me falou sobre a sua paixão por mangás quando era mais novo. Eu fiquei com a impressão de ver algumas referências a mangás no Garoto Gorila, principalmente na forma como você remete a movimentos em algumas sequências de ação, com alguns traços no fundo das cenas. As suas leituras de mangás foram referência para você nessas passagens?
Na verdade foram, sim, bastante! E o pior é que foi meio inconsciente, saca? Quero dizer… Eu lia muito mangá quando era mais jovem, foi o meu primeiro contato com quadrinhos, porque rolava aos montes nas bancas e na loja de gibis que eu frequentava (infelizmente a loja fechou ainda naquela época). Lia Dragon Ball Z, Rurouni Kenshin, Battle Royale, Fullmetal Alchemist, Shaman King… Mas com o tempo, muitos dos títulos que eu acompanhava, por alguma razão, sumiram das bancas, foram cancelados ou os que continuaram, pareciam que não iam terminar nunca, como One Piece. Então eu meio que acabei abandonando esse negócio de comprar mangás. Eu só fui voltar a comprá-los esses tempos, quando relançaram Uzumaki, que era um gibi que eu queria muito desde aquela época mas era super difícil de encontrar. Só recentemente pude encontrar também cópias usadas dos quadrinhos do Suehiro Maruo, que pra mim é o mais interessante de todos. Os mangás de terror são os únicos que me interessam hoje em dia, ou pelo menos mangás que sejam um livro só, e não esses que são uma coleção eterna.
Mas voltando ao assunto: acho que foi meio inconsciente, pois eu nunca parei para pensar em usar essas linhas de movimento e tal, eu só fiz. Acho que enquanto eu desenhava as páginas, só me pareceu extremamente natural utilizar esses recursos. Só fui me dar conta disso quando, na Bienal de Quadrinhos de Curitiba, em 2018, eu tava falando com o Rafa Coutinho (ele não deve se lembrar disso) e tava mostrando para ele a revista que eu tava lançando na época, a Weird Comix # 8, que tem o capítulo seis do Garoto Gorila, e enquanto ele folheava comentou algo como ‘muito legal, tem uma influência de mangá, né, essas linhas de movimento e tal’ hahahaha. Para ver como eu não penso muito nas coisas que faço…
“Acho importantíssimo que os personagens pareçam pessoas reais”
O Marcello Quintanilha assina a quarta capa do seu trabalho para a coleção Ugrito e já vi algumas obras dele na sua mesa em posts seus no Instagram. Ele é uma influência para você? Quais outros autores que você tem tido como referência e estão influenciando seus trabalhos mais recentes?
É até meio ridículo dizer isso, mas sim, é uma influência. Ridículo no sentido de que se alguém pega um gibi do Quintanilha e depois um meu, essa pessoa vai pensar ‘mas o que diabos esse idiota acha que se influencia no Quintanilha? Não há nem como comparar a arte de um com a do outro, coitado desse Fábio’. Mas é mais em algumas coisas pequenas. O caimento das roupas, por exemplo, eu acho magnífico. As roupas antigamente tinham um caimento característico que acho super importante e acho que o Quintanilha faz isso muitíssimo bem. Fora também os ângulos e as cenas de movimento, que acho impecáveis. Mas uma influência mais direta que posso mostrar foram os balões de fala. Eu adoro os balões de fala que ele desenha, e tenho que admitir que tentei copiá-los em determinados momentos de 400 Morcegos. Eu desenhei esse gibi inteiro com pincel e fiz as hachuras com as canetas, porque queria um traço mais fluido. E achei que a forma como ele desenha os balões, especialmente no Fealdade de Fabiano Gorila (olha que coincidência) se encaixaria perfeitamente na minha proposta. Obviamente os meus balões são feios e tortos em comparação com os dele, mas dá para ter mais ou menos a ideia..
As minhas influências mais recentes, e por conseguinte as usadas em 400 Morcegos, são basicamente Charles Burns, Guido Crepax, Suehiro Maruo… Venho usando cada vez mais o preto sólido também, desde que comecei o Dr. Milton, inspirado pelo Burns. O que é totalmente diferente das referências que usei no Garoto Gorila. Naquela época eu tava pirando demais numas paradas underground como o Crumb (que até hoje me influencia, claro, mas acho que naquela época era mais forte) e o Gilbert Shelton. O Matthias Schultheiss também, e claro, os quadrinhos da EC Comics, como o Tales from The Crypt, principalmente. Naquela época eu tinha no computador toda a coleção de várias dessas revistas de terror. Tudo isso resultou em um quadrinho extremamente hachurado e torto. Adoro isso hahahahha.
Ainda sobre o Quintanilha, algo muito característico dos trabalhos dele está na voz dos personagens, nos diálogos e na oralidade das falas. Eu vejo você dando muita atenção aos diálogos e às falas presentes nas suas HQs, principalmente por serem obras de época. Esse é um foco de atenção seu?
Com certeza! Eu acho importantíssimo que os personagens pareçam pessoas reais, para que o leitor possa se envolver o máximo possível com a história. As pessoas podem achar que meus gibis têm muito texto, mas é meu jeito de construir a história. Espero estar indo bem em relação a isso, mas só os leitores podem me responder.
E outro elemento muito característico do seu trabalho é a violência. Tem alguma origem em particular esse seu interesse por violência? O que você mais gosta ao representar a violência de forma tão gráfica como ela é apresentada nos seus trabalhos?
Eu represento a violência de forma gráfica porque é assim que ela é. Eu não sei os jornais de outros estados, mas no Pará rolavam uns jornais que na própria capa figurava um cadáver todo ensaguentado de algum coitado que foi morto pela polícia, e eu olhava pra isso na fila do balcão da padaria, saca? Como eu disse antes, quero que o leitor se envolva com a história, quero que ele sinta que está lá, quero que fique nervoso, enojado, envergonhado, amedrontado com tudo que acontece com os personagens. E isso inclui, às vezes, ver corpos desmembrados, estraçalhados, nus, deformados, decapitados e por aí vai. Muitos filmes gore mostram esse tipo de coisa, filmes que eu assistia na década 2000, como O Albergue, A Casa de Cera ou Jogos Mortais. Por que não mostrar esse tipo de coisa nos quadrinhos também? Ainda mais levando em conta que as possibilidades nos quadrinhos são infinitas, já que não preciso matar ninguém de verdade ou gastar grana com efeitos de maquiagem. Não faz o menor sentido para mim desenhar um gibi com serial killers, assassinato, flagelação e coisas do gênero e não mostrar absolutamente nada. Claro que depende do caso, óbvio, mas estou falando especificamente do que eu quero passar com meus quadrinhos. Não estou dizendo que todo mundo tem que fazer assim.
“Na Weird Comics eu publico tudo que eu quero sem interferência externa alguma”
Você já está trabalhando em um próximo número da Weird Comix? O que você pode adiantar sobre essa próxima edição?
Estou sim, na edição 11! Em primeiro lugar, posso adiantar que ao invés de duas por ano, vou lançar apenas uma edição por ano agora. De 2019 para trás eu me dedicava somente a elas, então o tempo era infinitamente maior. Agora que comecei a lançar gibis em português para editoras, as Weird Comix ficaram em segundo plano. Mas com certeza continuarei lançando, porque são basicamente onde eu publico tudo que eu quero sem interferência externa alguma, sejam meus quadrinhos curtos baseados em músicas, minhas ilustrações, minhas tiras, meus textos sobre aleatoriedades. Acho que todo mundo que quer publicar gibi e fica se sentindo desmotivado porque as editoras não lhes dão atenção, deveria se auto-publicar antes. É uma experiência muito legal, você se sente muito mais perto dos leitores e tem liberdade total.
Em segundo lugar, posso adiantar que vou continuar lançando The Rise and Fall of George Pills, o quadrinho longo que venho serializando na revista desde a edição 5; vai ter também uma história curta chamada Green Door, que falei antes, e é baseada em uma música que os Cramps fizeram cover; vai ter uma outra história curta, La Tentación, baseada em uma música homônima de uma banda punk chamada Kaka de Luxe, que saiu originalmente na coletânea Quadrinhos que Podem Desgraçar Sua Vida (Ou Não), em 2018.
Basicamente a mesma coisa de sempre, para quem tá acostumado com a revista. Acho que sai lá pelo meio do ano, depois que sair o Eu Fui um Garoto Gorila.
Depois dos seus trabalhos publicados pela Escória e pela Veneta, você já tem algum próximo título sendo desenvolvido para alguma editora?
No momento estou desenhando um gibi em parceria com o Yuri Moraes. Estamos criando a história juntos, mas ele escreve o roteiro e eu desenho. É a primeira vez que crio um gibi junto com alguém, está sendo uma experiência ótima. Não sabemos ainda como vamos publicar, mas estamos no começo, na página 50. Provavelmente vai ser bem longo, então esse está previsto para 2022 ou, quem sabe, 2023.
Também já tinha falado com o Lobo, enquanto desenhava o Morcegos, sobre lançar um gibi curtinho pela Escória, e eu queria que fosse sobre canibais. O título do gibi é Bebês Maníacos da Lagoinha, e está previsto para outubro. Já comecei a pensar no enredo, mas vou desenvolvendo com o tempo, enquanto desenho os meus outros gibis. Na teoria ele vai ter umas 80 páginas, mas vai saber. Ele pode acabar terminando com 100 ou 105, eu sempre dou essa margem de erro.
Você pode recomendar algo que esteja lendo/assistindo/ouvindo no momento?
No momento tô lendo um livro do Sartre, A Náusea, mas tô no comecinho, não posso indicar, não sei se vou gostar até chegar no fim hahaha. O livro anterior que li, Os Demônios de Loudun, era bem interessante, mas não recomendo para quem nunca leu nada do Aldous Huxley. Vou indicar então o Admirável Mundo Novo, que é do mesmo autor e apesar de ter sido lançado em 1932, é extremamente atual. De gibi vou recomendar Jeanine, do Matthias Picard, que li recentemente e eu adorei.
Esses tempos ando maratonando e reassistindo todas as temporadas de American Horror Story, uma atrás da outra. É uma série de terror do Ryan Murphy na qual sou viciado. Baixei também toda a temporada clássica de Twilight Zone, a que durou de 1959 à 1964, para reassistir os episódios que já vi e descobrir uns que devo ter perdido.
Quanto a música, estou sempre ouvindo tanta coisa ao mesmo tempo… vou recomendar o Leonard Cohen, algo que ando ouvindo muito ultimamente. E Cramps, é claro, sempre vou recomendar.