Entrevistei o quadrinista Fido Nesti para escrever sobre sua adaptação para quadrinhos do clássico 1984, do inglês George Orwell, recém-publicada pela editora Companhia das Letras. Transformei esse papo no texto da edição de dezembro de 2020 da minha coluna no site do Instituto Itaú Cultural. Reproduzo agora a íntegra da minha conversa com o autor.
Chamo atenção no meu texto para as paginações blocadas do álbum, enrijecidas como a realidade retratada na HQ, assim como a paleta de cores sombria e o grande volume de texto – resposta à exigência dos herdeiros de Orwell pela maior fidelidade possível aos escritos do autor. Recomendo a leitura da coluna e, depois, uma investida nessa conversa com o autor.
Nesti me contou sobre seus métodos e suas técnicas de trabalhos, lembrou de seu primeiro contato com o livro de Orwell, analisou alguns paralelos entre 1984 e o Brasil contemporâneo e apresentou as principais lições que leva desse projeto. Papo massa, saca só:
“Vou atrás do equilíbrio, imprimindo a minha assinatura e ao mesmo tempo tendo o cuidado de manter a essência da obra”
Queria começar perguntando sobre aquele que me parece o principal desafio de uma boa adaptação: como ser fiel ao texto que está sendo adaptado e ainda conseguir autonomia de existência em relação à obra original?
Nas adaptações que eu fiz procurei encontrar um ponto de equilíbrio entre o texto e as imagens. Edito o texto usando a menor intervenção possível, apenas mexendo uma vírgula aqui, usando uma conjunção ali, para fazer um bloco de palavras se encaixar no formato que a sequência de quadrinhos está pedindo em cada página. Busco então traduzir esse texto com os desenhos, e aí entra o que vou puxando da cabeça, misturando as referências que fiz na etapa de pesquisa com elementos mais pessoais, como impressões e memórias. E é aí que vou atrás do equilíbrio, imprimindo a minha assinatura e ao mesmo tempo tendo o cuidado de manter a essência da obra.
Você pode contar, por favor, como essa adaptação teve início?
Foi um convite do meu editor, Emilio Fraia. Eu estava trabalhando em outro projeto quando ele me ligou para dar as boas novas. Aceitei na mesma hora, 1984 sempre foi um dos meus livros favoritos e a chance de transformá-lo em quadrinhos me fez pular da cadeira.
Comecei a reler o livro imediatamente e em seguida fui definindo os personagens e criando cenas para montar algumas páginas de apresentação para os agentes literários. Além deles, tive a imensa honra de receber a aprovação também do próprio filho do Orwell, Richard Blair.
Você lembra do seu primeiro contato com 1984?
Foi exatamente em 1984, com um exemplar emprestado do meu irmão, que havia acabado de ler a obra como parte do currículo escolar. Eu tinha 13 anos e a ditadura ainda estava para acabar. O texto do Orwell soou como um alarme e me fez perceber com mais clareza o que se passava à minha volta.
“1984 continua a encontrar ecos cada vez mais fortes em nossos tempos, parece cada vez mais relevante“
Por que adaptar 1984 para quadrinhos?
Primeiro porque nunca havia sido feito antes, e lá se vão mais de setenta anos desde que foi publicado. Já foram produzidas adaptações para o rádio, teatro, televisão e cinema, nunca para os quadrinhos. E também porque, infelizmente, o livro continua a encontrar ecos cada vez mais fortes em nossos tempos, parece cada vez mais e mais relevante. Apresentar o texto nessa linguagem ainda inexplorada pode ajudar a espalhar ainda mais a mensagem de Orwell, e fazer com que novos leitores busquem depois a leitura do original e se interessar por outras obras do autor.
Você pode contar um pouco sobre as técnicas e os materiais utilizados durante a produção deste trabalho?
Depois de algumas experimentações, escolhi usar um papel Canson Bristol, 80g., tamanho A3, para desenhar. Para os esboços eu uso uma lapiseira com grafite 0,7mm – 4B; um pincel para a finalização com nanquim e, depois de escaneados, coloco as cores no Photoshop. Pela primeira vez, usei alguns brushes digitais, na última etapa, para algumas fumaças, fogs e ferrugens. Todos os letterings que aparecem nos cenários e onomatopeias foram feitos com pincel e a fonte usada nos recordatórios foi criada de maneira randomizada, a partir da minha caligrafia.
“O maior desafio foi sintetizar um grande volume de texto sem deixar apagar a sua alma”
Aliás, você pode contar um pouco, por favor, sobre esse processo de adaptação? Você chegou a finalizar um roteiro antes de dar início às ilustrações? Como foi esse processo?
Tudo começa com a leitura, num primeiro momento sem fazer qualquer anotação, apenas absorvendo a essência da história. E como se tratava de uma releitura, depois de quase quarenta anos, foi interessante ver o que a memória ia puxando sobre as primeiras impressões.
Nas leituras seguintes fui anotando e roterizando capítulo por capítulo, sem deixar nenhum de fora – todos os vinte e quatro capítulos estão na adaptação. E o maior desafio foi esse, sintetizar um grande volume de texto sem deixar apagar a sua alma.
Você poderia falar um pouco, por favor, sobre esse processo de adaptação e transformação de texto no combo texto+desenhos? Como foi o desenvolvimento desse projeto?
Para mim essa etapa é bem intuitiva, o que escolher para mostrar com palavras e imagens, e o que mostrar apenas com imagens. Como a cabeça de Winston Smith está sempre funcionando, mesmo que na terceira pessoa, foi aí que achei mais liberdade para criar a minha própria visão do que estava acontecendo.
“O tempo cinzento de Londres, os tons dos tijolos das casas vitorianas, alguns exemplos de arquitetura Brutalista, tudo isso ajudou na escolha das cores”
As cores do livro impactaram bastante a minha leitura da história. Você pode falar um pouco, por favor, sobre a sua opção pela paleta com a qual trabalhou nessa HQ?
O tempo cinzento de Londres, os tons dos tijolos das casas vitorianas, alguns exemplos de arquitetura Brutalista, tudo isso ajudou na escolha das cores. Usei nanquim aguado para reforçar esses tons e criar volumes e sombras. O vermelho usado em certas passagens, praticamente monocromáticas, representa o estado de espírito de Winston Smith. Sensações que procurei transferir para o leitor; de angústia, desespero, terror.
Me chamou atenção no livro a sua fidelidade ao texto original. Você sempre esteve decidido a reproduzir ao máximo o texto do Orwell? Por que a sua escolha por essa manutenção do texto original?
A única exigência dos herdeiros do Orwell foi que eu mantivesse a fidelidade do texto, ainda que adaptando para o formato dos quadrinhos: sintetizando aqui e ali, mostrando só com imagens trechos onde seria redundante mostrar também com as palavras e etc. E mesmo sem essa condição eu teria escolhido preservar ao máximo o original. O texto é muito poderoso e cheio de passagens que eu considero como clássicas, intocáveis.
Você morou em Londres, certo? Quando foi isso? Como essa experiência influenciou o desenvolvimento do quadrinho?
Foi entre 2000 e 2001, por um ano exato. Certamente o contato diário com o povo inglês e minhas intermináveis caminhadas pela cidade tiveram influência no modo como desenhei os personagens, figurantes e cenários, de alguma forma. Acumulei muitos tijolos, chaminés e postes de ferro fundido nas gavetas da memória.
“Tipos curiosos estão saindo dos porões, gente que não acredita na ciência, nas vacinas, engolem tudo o que o novo governo fala e juram que estão pisando em uma terra plana”
1984 foi adaptado duas vezes para o cinema, sendo o filme de 1984 dirigido pelo Michael Radford com o John Hurt no papel principal uma obra bastante icônica. Qual é a sua relação com esses filmes? Eles impactaram de alguma forma o desenvolvimento da sua HQ?
Me lembro de ter gostado muito da versão de Michael Radford, que devo ter assistido em 1985. John Hurt estava brilhante como Winston e isso certamente fica na memória. Então achei importante me afastar, durante a etapa de pesquisa, de qualquer referência sobre o filme, para não sofrer influências. Agora que terminei a adaptação estou curioso para revê-lo, depois de tantos anos.
Venho também descobrindo detalhes interessantes, como o patrocínio secreto da CIA para o filme de Michael Anderson, de 1956; Peter Cushing fazendo o Winston na versão da BBC, de 1954; e a existência de uma versão ainda mais antiga, também para a TV, da americana Studio One. David Bowie, que era um grande fã do livro, e compôs as músicas 1984, Big Brother e We are the dead, teve os planos de uma adaptação para um musical frustrados pela recusa dos herdeiros, nos anos 70.
Quanto tempo levou a produção da obra até o seu lançamento?
Levou um ano e oito meses, entre leituras, anotações, pesquisa, roteiros, esboços, finalizações com nanquim, cores, lettering, etc. Durante esse tempo, com exceção da Folha de S. Paulo, para quem colaboro mensalmente, recusei qualquer outro trabalho, me dedicando inteiramente à adaptação.
O livro do George Orwell foi escrito durante a Segunda Guerra Mundial, em um contexto de conflitos bélicos e ideológicos aflorados. Como 1984 ainda se faz relevante nos dias de hoje? Você vê alguma relação do quadrinho com a realidade brasileira atual?
Guerras e conflitos armados raramente saem de moda, e há tempos que o mundo não se via tão polarizado, com regimes totalitários ganhando espaço e gente perdendo o apreço pela democracia. Fora isso a principal potência mundial deve mudar de mãos em breve e as tensões criam uma nova guerra fria. Por aqui foi engatada uma forte marcha à ré e tipos curiosos estão saindo dos porões, gente que não acredita na Ciência, nas vacinas, engolem tudo o que o novo governo fala e juram que estão pisando em uma terra plana. Eu gostaria de acreditar que na verdade eles pensam de modo diferente e estão apenas exercitando “duplipensamentos”.
Durante o trabalho me vi envolto em pelo menos três distopias: o próprio 1984, a pandemia e o governo brasileiro. Seria uma “tristopia”? Nos “tristes trópicos”.
“1984 mostra quanto podemos perder se continuarmos a fechar os olhos para o que já está na nossa frente”
O 1984 é ambientado em um futuro distópico imaginado por George Orwell no final da década de 1940. Você teve alguma preocupação em particular em enfatizar algum paralelo desses trabalhos com o nosso mundo de hoje?
Os paralelos são bem evidentes e quem estiver lendo pela primeira vez vai se surpreender com eles, presentes a todo momento. Escolhi seguir aquilo que imaginei como sendo a visão de Orwell para o então longínquo ano de 1984. Tive a oportunidade de viver os anos 80 e o curioso é que alguns aspectos foram ganhando mais semelhança e força em tempos mais recentes. Por exemplo, em 84 não éramos vigiados pelas onipresentes câmeras de segurança e não havia celular ou internet. Hoje estão de olho em cada passo que damos, e ainda te avisam: “sorria, você está sendo filmado”. O que diabos querem dizer com isso? Vamos todos virar zumbis, robôs? E ainda por cima sorridentes? Como o 1984 de Orwell é um 1984 distópico eu achei mais interessante ser fiel a essa perspectiva mais atrasada, sem querer mostrar câmeras de vigilância ou computadores modernos. Vejo aquele 1984 como um ano ainda carregado de fumaça, que saem das chaminés das fábricas e dos lampiões a querosene das minas de carvão; de aparatos tecnológicos com uma cara ainda primitiva, trambolhos pesados e rudimentares. Uma etapa que gostei muito de fazer foi imaginar estes aparelhos, como o ditógrafo e as “teletelas”, assim como os “buracos da memória” e o emaranhado infinito de tubos pneumáticos do Ministério da Verdade.
Desse período seu de envolvimento com o livro do Orwell, quais as principais conclusões e lições que você tirou da obra? Quais você considera as principais possíveis contribuições do livro dele pra nossa sociedade?
Uma das frases mais marcantes, para mim, saíram da boca do Winston, lá pelo meio do livro: “Se conseguir sentir que vale a pena continuar humano, mesmo que isso não tenha a menor utilidade, você os venceu”. Eu acho que os governos totalitários e sua vigilância cada vez mais presente e manipuladora têm a missão de nos deixar menos humanos. As “teletelas” estão agora em nossas mãos, o tempo todo, em forma de celulares, nos observado. A privacidade foi pro espaço. A Oceânia é aqui. Eu acho que 1984 serve como um poderoso alerta, mostrando o quanto podemos perder se continuarmos a fechar os olhos para o que já está na nossa frente.
“Viver exclusivamente da nona arte representou por muito tempo uma meta a ser alcançada“
Qual a memória mais antiga que você tem de quadrinhos na sua vida?
Eu devia ter apenas uns quatro anos, mas é impossível esquecer do primeiro contato com as histórias delirantes de Little Nemo, de Winsor McCay, e o violento Spirit, de Will Eisner, numa revista de formato enorme (tabloide, 38cmx28cm) que meu pai comprou nos anos 70. Era o Almanaque do Gibi – Nostalgia, da editora Rio Gráfica. Na mesma época, não sei bem dizer se um pouco antes ou depois, eu era colocado para dormir sob a leitura das cruéis desventuras de Juca e Chico, ou Max und Moritz, de Wilhelm Busch, considerado um dos fundadores da linguagem que viria a ser os quadrinhos.
Também sobre a sua relação com quadrinhos: o que são quadrinhos, hoje, para você?
Os quadrinhos sempre foram uma obsessão na minha vida, se tornou um vício mesmo antes de aprender a ler. Viver exclusivamente da nona arte representou por muito tempo uma meta a ser alcançada – para lá de hercúlea, pensando em nossa realidade. Trabalhar com ilustração, tanto em livros como em jornais ou revistas, criação de capas ou outros meios, também me dá um grande prazer. A balança está sempre pesando mais para um ou outro lado, quadrinhos e ilustração. No momento eu já estou pensando nos próximos quadrinhos.