O quadrinista Gabriel Dantas diz que chegou a jurar que nunca mais faria uma série em quadrinhos. Ele estava cansado das cobranças de alguns leitores e incomodado com a ansiedade gerada pelas demandas impostas por uma história periódica. Veio a pandemia do novo coronavírus, ele passou a compartilhar alguns rascunhos nas redes sociais e criou uma rotina de passar horas desenhando e compartilhando seus trabalhos. No fim de 2021 ele começou a trabalhar com um Ipad e seus primeiros desenhos foram de um pato amarelo gigante e sua amiga adolescente Letícia.
A série Pato Gigante foi compartilhada no Instagram de Dantas entre novembro de 2020 e dezembro de 2021, em 173 posts/páginas. Agora, a obra ganha versão impressa pela Ugra Press, com 208 páginas, 25 delas inéditas.
“Estou muito feliz com essa versão impressa. Para mim só assim meu trabalho está finalizado mesmo”, me diz Dantas, dono de uma conta com mais de 179 mil seguidores no Instagram e outra com mais de 121 mil no Twitter.
Ele completa: “Eu preciso ver no papel. Acho que tem uma dinâmica diferente, dá pra dar mais atenção para a história, pros detalhes, ler no papel é outra história. Muito melhor. A tela te pede uma urgência, o Instagram pede uma urgência, de ler voando. Ainda tem as notificações do celular. Sei lá, um saco. Fora isso, o livro tem uma beleza, um cuidado, que imortaliza mesmo a parada”.
O uso das redes sociais como principal plataforma de disseminação de seus trabalhos, o ritmo frenético de seus posts, as várias reviravoltas de suas histórias e a honestidade de seus desenhos e suas tramas me fazem ver Dantas como uma espécie de Simon Hanselmann brasileiro. Mas uma versão fofa do autor das HQs protagonizadas por Megg, Mogg, Coruja e Lobisomem Jones – presentes nos álbuns Mau Caminho e Zona de Crise.
Pato Gigante mostra a criatura que dá nome à obra em uma jornada de amadurecimento e desencontros pessoais e amorosos protagonizados por sua amiga Letícia. Conversei com Dantas sobre o desenvolvimento da série, suas rotinas e seus métodos de trabalho. Na entrevista a seguir ele me falou sobre a produção da HQ, a relação com seus leitores, a produção da belíssima capa da versão impressa do quadrinho e outros temas. Papo massa, saca só:
“Tinha até jurado nunca mais fazer uma série…”
Sempre fico curioso em relação ao ponto de partida das histórias. Você lembra do instante em que começou a desenvolver Pato Gigante? O que você pode contar sobre a origem dessa série e dos personagens presentes nela?
Bom, quando eu comecei não era uma série ainda. E nem planejava que fosse. Tinha até jurado nunca mais fazer uma pois não curtia muito a cobrança que me faziam das continuações das histórias e tals. Me deixava um pouco ansioso. Haha! O Pato Gigante veio de um hábito que eu tinha lá no Twitter de postar os meus rascunhos. As postagens estavam alcançando um número legal de pessoas e eu estava intimidado com isso, então para contornar a situação e não parar de atualizar meu perfil, eu fazia esses rabiscos. Basicamente era assim: depois de eu jantar, ligava o computador e ficava horas desenhando e postando, desenhando e postando, desenhando e postando as primeiras coisas que vinham na minha mente. Coisa de doido mesmo. Tinha dias que saía umas 20 e poucas postagens numa só noite. É algo que eu sempre fiz, mas nos meus cadernos de desenho. Aí teve um dia que saiu o Pato Gigante e a Letícia. Achei maneiro a dinâmica, mas não continuei. Estava tentando dar uma cortada em mim mesmo para não virar uma série. Então, mais pro final daquele ano, passei a usar um Ipad para trabalhar junto do programa Procreate (antes eu usava notebook, mesa digital e um programa gratuito chamado Medibang), e as primeiras coisas que desenhei foram o Pato Gigante e a Letícia. A primeira tira que fiz foi deles e postei no mesmo segundo. Deu no que deu.
Li em uma coluna do Érico Assis você comentando que tem dias que faz de “seis a 12 tiras, cinco páginas”. Você pode falar um pouco sobre a sua rotina de trabalho? Você tem algum hábito ou algum método de trabalho? Você teve alguma rotina em particular durante a produção de Pato Gigante?
É, eu não produzo mais dessa maneira, pois hoje reescrevo bastante a maioria das minhas tiras. Antes era tudo muito no improviso, desenhando direto e hoje tô tentando ser um pouco mais cuidadoso. Penso um pouco mais na cor e isso me toma tempo, e por aí vai. Mas todos os dias ainda saio com alguma coisa nova. Eu acordo desenhando e durmo desenhando, mas não que eu passe o dia todo em frente ao ipad, é só que o tempo todo tô pensando em algo novo e fico agoniado se não começar a rabiscar logo. O hábito de desenhar todos os dias é para mim a mesma coisa que almoçar todos os dias, escovar os dentes todos os dias, tomar banho e por aí vai. Meio que tem que ter. Haha. O Pato Gigante começou no improviso, mas teve um momento que eu fiquei mais interessado em fazer uns quadrinhos maiores com eles, com mais quadros e a partir de um momento que já não lembro mais eu comecei a desenhá-lo no papel primeiro e ficava reescrevendo as falas, mudando umas coisas antes de ir para o digital. E no digital eu ainda refazia do zero. Não sei bem o motivo, só gostava de fazer assim. Pra ter certeza que estava satisfeito. Os últimos quadrinhos mesmo do Pato Gigante (Isa ajudando o amigo a invadir a casa do pai para buscar um exemplar de Dragon Ball, o garoto se declarando pra Letícia e ferrando a amizade, a carta de até logo do Pato…), esses aí eu tava levando umas duas semanas para terminar cada um. Sei que é um tempo razoável para a maioria, mas para mim é uma eternidade. haha. Mesmo assim, valeu cada segundo.
“Não sei se eu teria feito essa história dessa forma se não fossem os meus leitores”
E você pode falar um pouco, por favor, sobre as suas técnicas? Quais materiais você usa?
Hoje tô totalmente no Ipad com o aplicativo Procreate. Curto demais. Até tentei umas semanas atrás começar um zine novo utilizando papel e nanquim como fazia antes, mas fiquei imaginando a trabalheira que daria escanear, tratar, redesenhar o que eu errava, fazer a revisão, comprar as canetinhas nanquins novas quando essas que tenho começassem a falhar… e bléh. Voltei pro Ipad.
Pato Gigante foi publicada no seu Instagram entre novembro de 2020 e dezembro de 2021. O quanto você tinha definido dessa história quando começou a publicá-la? Quando você deu início a Pato Gigante já tinha em mente o final da história e o desfecho para cada um de seus personagens?
Foi super no improviso a maior parte dele. Enquanto produzia, vieram vários finais, mas nunca fechei esse final na minha cabeça até chegar o momento de produzir de fato o final.
“O que o Instagram e seu algoritmo pedem, na real mesmo, impede a produção saudável de bons quadrinhos”
Você tem muitos seguidores no Instagram e seus posts costumam estar cheios de comentários. Você presta atenção na repercussão de cada post ? Se sim, esse retorno dos leitores afetou a história de Pato Gigante em algum momento?
Eu gosto muito de que as pessoas comentem nos meus posts, conversem entre si, desabafem e falem que gostam dos meus personagens e que se importam com eles. Mas evito ler a maioria dos comentários. Na internet tem muita negatividade e maldade e sei que isso pode me afetar. Como eu tô quase sempre desenhando, ler um comentário que me deixe de mau humor pode acabar me fazendo perder alguma ideia maneira, pois só vou ficar pensando naquela pessoa que fez um comentário maldoso e em como eu gostaria que ela se mudasse para outra galáxia. Haha. Dito isso, acho que o amor pelas pessoas pelos meus personagens e vê-las compartilhando e recomendando pros amigos com certeza me incentivou a continuar sem perder o gás. Não sei se eu teria feito essa história dessa forma se não fossem os meus leitores da internet.
Aliás, falando sobre o Instagram, tenho visto muitas reclamações por parte de artistas em relação ao alcance cada vez menor de cada post. Isso também tem acontecido com você? Se sim, isso impacta de alguma forma a sua produção?
Eu nunca me importei muito com isso, pois já faz um tempo que eu não posto a quantidade certa para o algoritmo me ajudar a enviar para as pessoas. Acho que tem algo assim. Deve ser bom você postar frequentemente, numa hora certa. Se passar umas semanas sumido, ferra um pouco teu alcance. E é justamente isso que faço, dou uma sumida. Conto com os meus leitores fiéis, que vão parar um pouco seu tempo para ler com calma meus quadrinhos, ver o que tenho a dizer. Não conto com aqueles que veem na velocidade da luz e partem para o post seguinte já esquecendo automaticamente do que fiz. É massa ter atenção das pessoas, claro, mas o que o Instagram e seu algoritmo pedem, na real mesmo impede a produção saudável de bons quadrinhos.
Em um papo rápido pelo Facebook, uma vez você comentou comigo que não é muito habituado à leitura de quadrinhos digitais. Por que não? E o que Pato Gigante ganha em sua versão impressa? O que significa para você ver esse trabalho saindo no papel?
Ainda sou assim. Não curto quadrinhos digitais, nem livros digitais, nem nada do tipo. Não criei esse hábito e pra mim, ficar vidrado numa tela só se for pra fazer meus quadrinhos mesmo. Não consigo nem ver filme aqui no meu quarto, fico meio agoniado, pausando direto. Sei lá, doidera. É por isso que estou muito feliz com a versão impressa do Pato, para mim só assim meu trabalho tá finalizado mesmo. Eu preciso ver no papel. Acho que tem uma dinâmica diferente, dá pra dar mais atenção para a história, pros detalhes, ler no papel é outra história. Muito melhor. A tela te pede uma urgência, o Instagram pede uma urgência, de ler voando. Ainda tem as notificações do celular. Sei lá, um saco. Fora isso, o livro tem uma beleza, um cuidado, ali que se imortaliza mesmo a parada. Eu vou atualizando o meu perfil com mais quadrinhos, mais tirinhas, e a saga que me deu anos de trabalho vai ficando lá embaixo, lá embaixo mesmo, caindo no esquecimento da galera, dos novos leitores… o livro impede isso. E para os que acompanharam no Insta, ainda tem uma conteúdo inédito.
Você pode me contar um pouco por favor sobre a capa do livro [confira a capa no fim do post]? É um bordado, certo? Por que essa opção? Como vocês chegaram nessa arte?
Sim, é um bordado feito pela Dona Darcy Cantuária, também conhecida como mãe da Dani [Utescher, sócia da Ugra Press] e sogra do Douglas [Utescher, sócio da Ugra Press]. Haha. Quando o livro foi fechado, tentei pensar em várias capas para ele, mas não conseguia tirar da cabeça essa ideia de que deveria ser um bordado. Meio inspirado pelos jogos da Nintendo, principalmente o Yoshi’s Crafted World. Quando falei que queria algo assim para o Douglas, já esperava receber um não pela possível dificuldade em fazer isso acontecer, mas na real ele se animou muito e topou no mesmo segundo. Fiquei sem acreditar, haha. Depois disso, desenhei a capa como um desenho normal já com as dimensões que viria ser capa, lombada e quarta capa juntas. Douglas passou esse desenho para um tecido que serviria de guia para que Dona Darcy bordasse, e após ela bordar perfeitamente, foram feitos uns testes. Se ficaria melhor escaneando ou fotografando o bordado, e preferimos ir pelo caminho da foto pois destacava muito mais o relevo. Aí deu umas tratadinhas no photoshop e deu no que deu. Estamos todos muito orgulhosos.
Você já me disse que se interessa por quadrinhos “que se comuniquem bem com os leitores”. Vejo como um de seus principais méritos a clareza das histórias que você se propõe a contar, do seu traço e das falas dos seus personagens – e imagino que isso facilite a sua comunicação com seus leitores. Esse diálogo com seus leitores também é uma prioridade da sua produção?
Totalmente. Eu quero que todos consigam ler os meus quadrinhos e entendam o que estou querendo dizer, o que estou transmitindo. Nunca quis mirar apenas em leitores de quadrinhos, naquelas pessoas que leem gibis antes mesmo do surgimento do Planeta Terra. Gosto de pensar que qualquer um pode pegar o Pato Gigante, por exemplo, e achar maneiro.
“O Pato foi feito durante a pandemia, então foi um misto de muita coisa que já não lembro muito bem”
Já vi você elogiando o Simon Hanselmann nas redes sociais. Vejo em comum em vocês o ritmo de produção, essa clareza no que vocês se propõe a fazer e as plataformas que usam para divulgar seus trabalhos. Ele é uma influência para você?
Totalmente. Piro muito no trabalho do Simon. Fico relendo os livros dele direto. São meus xodós aqui da minha coleção
Aliás, o que você gosta de ler, ver e ouvir? O que você estava lendo, vendo e ouvindo durante a produção de Pato Gigante? Tem algum autor ou alguma obra que impactaram em maior grau essa série?
Eu tento ler, ver e ouvir de tudo um pouco. Quadrinhos da Fantagraphics, Veneta, livros da Todavia, mangás, zines, reassisto muito os filmes do Paul Thomas Anderson, Wes Anderson, Edgar Wright e Scorsese. Escuto muito Jonathan Bree, Bombay Bicyble Club e The Killers. Também cheguei na fase que não tem mais onde colocar os gibis e tá virando aquelas pilhas totalmente desorganizadas uma em cima da outra. Mas tudo bem. Como o Pato foi feito durante a pandemia, então foi um misto de muita coisa que já não lembro muito bem. Sei que li uma quantidade muito absurda de mangás, não sei o quanto isso teve ter me influenciado. Mas acompanhei Banana Fish, Ao no Flag, Gigant, Spy X Family, Sunny, Paradise Kiss… e por aí vai. Com certeza o Simon Hanselmann tá no meio disso. No meio não, no topo. Te amo, Simon. Se um dia vier pro Brasil, ou melhor, pro Rio Grande do Norte… Cola aqui em casa.