As 84 páginas aquareladas do álbum Castanha do Pará consistem no primeiro trabalho do artista Gidalti Jr. em quadrinhos. A HQ foi produzida ao longo de três anos e adapta o conto Adolescente Solar do escritor e poeta Luizan Pinheiro, sobre a rotina de um menino de rua no mercado Ver-o-Peso de Belém. No gibi, Gidalti batizou seu protagonista de Castanha e o transformou em uma figura antropomórfica com cabeça de urubu. As outras crianças presentes na obra também são representadas com feições de animais em detrimento aos adultos humanizados. Bancado via financiamento coletivo no Catarse no final do ano passado e lançado na Comic Con Experience 2016, Castanha do Pará terá uma sessão de autógrafos com o autor na tarde de amanhã (25/2), a partir das 16h, na Ugra em São Paulo.
Fiz uma entrevista por email com Gidalti Jr e conversamos sobre alguns dos principais aspectos de seu trabalho. Grandioso e tecnicamente impressionante, ainda mais levando-se em conta fato de ser o primeiro quadrinho do autor, Castanha do Pará tem diálogo explícito com alguns dos principais aspectos de trabalhos do quadrinista Marcello Quintalha – principalmente no que diz respeito à oralidade de seus diálogos e à ambientação urbana da obra. Conversei com o autor sobre as origens do projeto, os métodos de produção do quadrinho e a repercussão dessa sua primeira HQ. Bem massa, dá uma lida:
“Hoje, tenho uma relação melhor com o tempo e aprendi que o importante é trabalhar respeitando sua arte e manter uma disciplina para que as coisas se tornem realidade. Afinal, o tempo passa, a obra fica”
Você lembra do instante em que teve a ideia da HQ? Do momento em que percebeu que tinha uma história e que ela poderia virar um livro?
A ideia de fazer uma história em quadrinhos surgiu em momentos fracionados. A primeira ocorrência foi em uma faculdade em que eu lecionava. Lá, propus aos meus alunos de criatividade um exercício que consistia em ler um conto e criar um design para o personagem principal. Esse conto era o Adolescendo Solar, de Luizan Pinheiro, que narrava a história do menino que vivia perambulando pelo mercado do Ver-o-Peso, em Belém. Foi aí que eu criei o visual do personagem. Depois, já morando em São Paulo, estudei quadrinhos na Quanta, onde dei início ao enredo da história e o aperfeiçoamento da estética do álbum.
Essa é sua primeira HQ longa, certo? Como tinham sido suas experiências prévias com produção de quadrinhos? Como funciona o seu método de produção e como funcionou especificamente em relação ao Castanha do Pará? Você investiu três anos de produção no livro, certo?
Sim! essa é minha primeira HQ. Praticamente não tive uma experiência prévia relevante em quadrinhos antes de publicar esse álbum. Sempre trabalhei no mercado de publicidade e educação, então acabei não publicando fanzines ou ensaios na área. Fiz muita coisa pra mim mesmo, histórias de heróis e aventuras. É um material enorme em quantidade e feito só por diversão. Nunca havia publicado nada antes do Castanha.
Meu método de trabalho é bem caótico e ainda está em processo de amadurecimento, uma vez que só produzi um álbum. No caso do Castanha, tinha uma vaga idéia do contexto da história, mas não tinha o começo, o meio e fim bem definidos, muito menos os diálogos. Fui resolvendo isso aos poucos, às vezes em paralelo com a própria arte. Não tive uma estrutura muito lógica e aprendi muito errando. Após um tempo nessa bagunça, organizei meu processo para garantir que o álbum fosse sair e eu não ficasse perdido em preciosismos do processo criativo. Poderia resumir da seguinte forma: estruturo o roteiro e ilustro ele com desenhos bem simplificados. Realizo uma pesquisa iconografia e produzo imagens para usar como referência. No caso do Castanha, por exemplo, usei muito o meu irmão e o Neymar nas cenas de ação, pois suas poses são dinâmicas e ele é magrinho como o Castanha. Fiz aproximadamente cinco páginas finalizadas para definir a estética geral. Essas páginas não entraram no livro, foram páginas piloto. Definida a linha estética, parto para a realização de todos os lápis e depois a finalização, uso aquarela e outras mídias auxiliares na colonização. Esse processo não é completamente fechado, sempre retorno algumas etapas do processo para aperfeiçoar algo, especialmente os diálogos. Às vezes uma página está pronta, mas ouço na rua uma expressão interessante que poderia ser utilizada em determinada sequência, vou lá e coloco. Mesmo depois do livro impresso dá vontade de mexer em detalhes.
Todo o processo de produção do Castanha demorou aproximadamente três anos. Como foi meu primeiro álbum, muito desse tempo foi gasto em erros e acertos. Diria que o tempo foi de maturação, não de produção. Penso que é muito importante respeitar o tempo da obra. Passei por momentos de muita ansiedade, querendo apressar as coisas e ver resultado antes de ter investido suficiente no projeto. Hoje, tenho uma relação melhor com o tempo e aprendi que o importante é trabalhar respeitando sua arte e manter uma disciplina para que as coisas se tornem realidade. Afinal, o tempo passa, a obra fica.
Eu gosto muito que a HQ seja ambientada no início dos anos 90. Imagino que 1994 seja um ano muito marcante na vida de muita gente. O Brasil foi tetra campeão, o Senna morreu, o Real passou a circular, tínhamos um novo presidente. É um cenário que pode mexer com o imaginário de muita gente, inclusive de crianças. Isso tudo pesou na definição desse contexto?
O livro é ambientado na década de 90 por que foi a época em que eu era criança e pude viver na pele o contexto do moleque de rua. Não que eu tenha passado por situações parecidas com a do Castanha, mas pude conviver com uma garotada mais humilde que vivia no bairro em que cresci ou na escola que estudei, que na época era muito heterogênea em relação a níveis sociais. Ficou na minha lembrança a forma como a molecada da época brincava e se relacionava. Existia também uma sagacidade muito peculiar nessa galerinha. Tive amigos dessa época que acabaram entrando no mundo das drogas, outros começaram a roubar som de carro. Houve casos de morte por atropelamento e outros misteriosos de desaparecimentos. O contexto dessa década fez parte do meu imaginário, portanto, me sinto a vontade para falar da perspectiva de um jovem dessa época.
Queria falar da sua opção por tratar as crianças como criaturas antropomórficas e os adultos como humanos reais. Não quero que você estrague a piada, acho que é interessante deixar aberto para cada pessoa interpretar como achar melhor, mas queria saber: que tipo de reação você espera tirar do leitor ao fazer uso desse conceito?
Penso que cada um vai estabelecer uma relação. Há algumas associações bem óbvias, como o fato do Castanha ser um urubu, um bicho muito presente no mercado do Ver-o-Peso. O personagem Pupunha, é torcedor do Paysandu, time de futebol de Belém. O Paysandu é associado pela torcida rival à mucura, que é o nome popular que o gambá recebe na Amazônia. Portanto, ele tem cabeça de rato. Outros animais são usados para caracterizar esses meninos, como o porco, o cachorro vira lata e o macaco. Quero muito deixar certas camadas da obra nas mãos do leitor, pois muitas metáforas vem de relações muito íntimas da minha experiência pessoal com o Norte do Brasil, e explicá-las seria empobrecê-las. Sou despretensioso em relação ao que o leitor deve esperar da obra. Espero que goste, divirta-se e fique emocionado, mas primeiramente tento eu mesmo me apaixonar pelo trabalho. O compromisso com leitor existe e é algo que pode tirar o sono do autor, então tento não pensar muito nisso e fazer acima de tudo algo verdadeiro e que me emocione. Sendo assim, acho que acabo sensibilizando o público.
Vejo um diálogo entre esse seu trabalho e as obras do Marcello Quintanilha. Não só em relação a alguns desenhos e paginações, mas também nessa busca de oralidade no discurso e na fala dos personagens. Ele foi uma inspiração pra você? Quais outras obras, sejam elas de quadrinhos ou não, você consumiu e teve como referência enquanto criava o Castanha do Pará?
Como passei a fazer quadrinhos de forma profissional muito recentemente, não conhecia o trabalho de muita gente fundamental nos quadrinhos. Somente conheci o trabalho do Quintanilha em 2014 e justamente por comparações. Minhas primeiras páginas tinham muitas cenas urbanas de Belém, e exploram a estética de uma cidade bem brasileira. Fios de postes, trânsitos, a vestimenta das pessoas e etc. Muita gente via o Brasil e a realidade do Norte no meu trabalho e na hora fazia referência ao Marcello. Hoje, acompanho seu trabalho e posso dizer que definitivamente é uma referência e fico honrado com a associação, pois admiro muito sua obra.
A oralidade do Norte é muito particular e trago isso ao meu trabalho. Temos expressões muito particulares e tratamos a língua portuguesa de maneira muito próxima ao português original, como por exemplo o uso do pronome “tu” e as conjugações. O uso de expressões afrancesadas e a naturalidade como se fala nas ruas me atrai. O mesmo faço em relação as locações. Belém é muito particular em sua arquitetura, clima e formação histórica, uma potencialidade para ser explorada em narrativas, assim como todo o Norte. Milton Hatoum é um exemplo de como explorar bem esse contexto, assim como escritores da região, como Salomão Larêdo, Dalcídio Jurandir, Edyr Augusto Proença. Também cito outras influências como Machado, Franz Kafka, Mia Couto e Ariano Suassuna. No que se refere a parte gráfica e de narrativa, curto muito o trabalho de Jon J. Muth, Enki Bilal, Shiko, Sergio Toppi, Greg Tocchini, Juanjo Guarnido, Pablo Echevarria e meu professor Carcamo. Estou sempre acompanhando como o Brasil é retratado no cinema. Me atrai o olhar de Walter Salles em Central do Brasil e Abril Despedaçado, Fernando Meirelles em Cidade de Deus, Anna Muylaert em Que Horas Ela Volta, Kléber Mendonça Filho em O Som ao Redor, José Padilha em Tropa de Elite e muitos outros. Tenho muitas referências nas artes plásticas e em especial na pintura. Para não me alongar, citaria o Anders Zorn, Sargent e Sorolla.
Outro mérito do quadrinho é como ele trata de futebol. Temos poucas obras de ficção, não só quadrinhos, tendo o esporte como tema. O Castanha do Pará não é sobre futebol, mas tem o esporte como pano de fundo e o retrata de forma muito interessante no imaginário infantil. Eu imagino que você goste de futebol. Você vê algum motivo pra essa dificuldade do esporte ser retratado em obras de ficção? Foi desafiador de alguma forma colocar esse tema no quadrinho?
Na verdade não gosto e não entendo de futebol, mas sendo um autor que explora o Brasil, é impossível ficar indiferente em relação a como esse esporte influência nossa sociedade. Primeiramente, muitos garotos de periferia querem ser jogador profissional um dia, pois enxergam no esporte a opção mais real de sucesso e realização. Segundo, a mídia tradicional brasileira praticamente obriga o público geral a acompanhar esse esporte por meio de inúmeras notícias, programas, transmissões e publicidade. Somos bombardeados o tempo todo por informações relativas ao futebol, e a criança praticamente não tem meios de escapar dessa influência. Conheço obras que exploram esse tema, mas concordo que é algo que precisa ser muito bem inserido nas narrativas. A grande maioria trabalha o assunto de maneira óbvia, como a vivência fantasiosa e heróica do jogo. Creio que minha abordagem não seja o objeto futebol em si, mas a paixão por este, e por isso creio que foi retratado de maneira convincente.
O Castanha do Pará chama muita atenção pelo projeto gráfico do livro. É um álbum grande, com capa dura. Como vc chegou nesse formato? Você vê uma demanda do público por produtos editoriais desse tipo?
A ideia do formato do livro surgiu a partir do momento em que o conteúdo foi ganhando um aspecto mais voltado para o mercado europeu. Fui assessorado pelo editor S.Lobo, que emprestou seu olhar clínico para a obra e contribuiu de forma excepcional para as questões de edição. O Stêvz fez o design do livro e compôs a cena da capa aberta, além de criar a tipografia. A ideia é atingir os apaixonados por graphic novels, gente que gosta de histórias fechadas. Eu, particularmente, gosto de ler quadrinhos que tenham histórias robustas e de ter acesso à totalidade da obra. Não tenho paciência para ler 30 páginas e esperar mais 30 dias para dar continuidade, sinto que saio da ficção e perco o interesse.
Muito se fala de um suposto momento de exceção e excelência da cena brasileira de quadrinhos. Você mora em São Paulo, mas passou grande parte da vida em Belém. Apesar de trabalhar com ilustração, Castanha do Pará é seu primeiro trabalho grande em formato de HQ. Ele vem atendendo às suas expectativas em relação a repercussão com o público? O quão receptiva você sentiu essa cena brasileira de quadrinhos ao seu trabalho?
Ainda é muito cedo para avaliar. Mas a princípio, posso afirmar que estou muito satisfeito com o resultado. Primeiramente por ter objeto 100% de êxito no financiamento coletivo. Lancei um proposta de quadrinhos com custos mais elevados que a média realizada no Catarse e tive retorno excepcional. O lançamento no Comic Con Experience 2016 foi incrível. Vendi praticamente todo o material disponível para o evento. Lancei o em Belém na livraria Fox e foi surreal. Tivemos fila das 18h às 22h, fiquei extremamente lisonjeado. Durante toda a campanha no Catarse e o lançamento, a imprensa de modo geral deu muito o apoio para a divulgação, seja via internet, rádio, televisão ou jornal impresso. Estou bem contente com os acontecimento pós lançamento e penso que isso é só o começo, afinal, o livro ainda não alcançou todo o público esperado.