Entrevistar o lendário Gilbert Shelton já está entre os meus pontos altos de 2024. Conversei com ele para escrever sobre O Melhor dos Super-Heróis! Wonder Hart-Hog, álbum recém-lançado pela Veneta, com tradução de Jotapê Martins. O criador dos Fabulous Furry Freak Brothers pediu que eu enviasse as minhas perguntas por email e me retornou cerca de uma semana depois. As respostas de Shelton foram concisas, mas engraçadas e reveladoras. Transformei o nosso papo em texto publicado na oitava edição da minha coluna no blog da editora Veneta. Você lê abaixo a íntegra da minha conversa com o autor:
“Meu filósofo favorito é Schopenhauer, o pessimista”
Qual a memória mais antiga da presença de quadrinhos na sua vida?
Eu lia as tiras dos jornais diários de Houston, Texas, a partir de 1945. Meu favorito era o Dick Tracy.
Wonder Wart-Hog foi criado como uma paródia do Super-Homem e dos quadrinhos de super-heróis. Você vê algum motivo em particular para o gênero dos quadrinhos de super-heróis seguirem tão populares até os dias hoje?
Você terá que perguntar a um psicólogo sobre isso.
Gostaria de saber das suas memórias em relação à recepção inicial dos seus leitores ao Wonder Wart-Hog. Como foram as primeiras reações a esse seu trabalho?
Achei que tinha uma boa ideia com o Hog, mas a reação dos leitores foi melhor do que eu pensava quando a tira foi publicada pela primeira vez, na Bacchanal Magazine, em 1961.
Mais de 60 anos depois de seu lançamento, Wonder Wart-Hog segue sendo publicado. O que o você acha que faz essa sua obra tão popular? Te surpreende ver Wonder Wart-Hog sendo publicado em português, no Brasil, seis décadas depois de sua criação?
Os quadrinhos mainstream são tão estúpidos que há uma grande necessidade de um antídoto. Fico feliz em ver a série publicada em português, no Brasil, mas não surpreso. O Brasil é uma nação grande e moderna.
O escritor inglês Alan Moore tem uma teoria que relaciona a popularização crescente dos quadrinhos de super-heróis e a presença desse gênero em Hollywood à ascensão dos governos fascistas ao redor do mundo nos últimos anos. Ele vê no saudosismo intrínseco ao gênero o reflexo de um mundo imaturo e infantilizado. Você concorda com essa reflexão?
Sim. O Alan Moore é um cara brilhante. Eu fui seu primeiro editor nos Estados Unidos.
A sua geração ficou muito marcada pelo uso do preto e branco. O preto e branco obviamente barateia a impressão, mas também tem algo de identitário. Qual você considera a maior contribuição do preto e branco para os seus trabalhos?
Ser publicado em preto e branco foi uma escolha fortuita para editoras underground, tornando os comix identificavelmente distintos do mainstream, mas é claro que o motivo foi o baixo custo.
Você também poderia falar um pouco sobre suas técnicas de trabalho em Wonder Wart-Hog? Com quais materiais você trabalhava? Você chegava a fechar um roteiro antes de desenhar cada história? Enfim, como era uma rotina habitual de produção de uma HQ do Wonder Wart-Hog?
Ao longo dos anos, usei uma série de técnicas de desenho, mas acabei optando pelas canetas Rapidograph porque podia carregá-las no bolso. Na maioria das vezes eu ia trabalhar na [redação da] Rip Off Press, onde havia ótimas mesas de desenho e pessoas com quem conversar.
E qual você considera a maior contribuição dos autores da sua geração para o mundo dos quadrinhos? O que mais te orgulha em ter feito parte do movimento de quadrinhos underground dos anos 1960 e 1970?
O underground conscientizou as editoras do valor da obra de arte original, em vez de jogar o material no lixo.
Ainda sobre a sua geração, vocês são celebrados principalmente pela sua subversão, em relação à linguagem dos quadrinhos e aos costumes sociais da época. Fico curioso sobre a sua leitura do mundo hoje, com tantos governos reacionários e a difusão de tantas ideias conservadoras. O que você acha que aconteceu com o mundo, com a humanidade?
É um exemplo de tese, antítese, síntese, como o filósofo [Immanuel] Kant interpretou a história mundial.
E você é otimista? Com tanta guerra, com tanto preconceito, com tantas ideias reacionárias sendo difundidas ao redor do planeta, você vê alguma perspectiva de melhora para a humanidade?
Meu filósofo favorito é [Arthur] Schopenhauer, o pessimista.
O que mais te interessa hoje no uso da linguagem das histórias em quadrinhos?
Não leio muito histórias em quadrinhos. Sei que a linguagem evolui e que os quadrinhos são provavelmente a vanguarda, mas estou principalmente interessado em me fazer entender. Eu leio principalmente não-ficção.
Você também tem uma relação muito próxima com a música. O que você tem mais gostado de ouvir ultimamente?
Não acompanho música contemporânea. O que gosto de ouvir é a minha antiga coleção de jazz bebop dos anos cinquenta.