Papo com Guilherme Petreca, o autor do recém-lançado Ye, de Carnaval de Meus Demônios e Galho Seco

O traço de Guilherme Petreca é um dos mais belos e singulares dos quadrinhos brasileiros. A primeira obra em formato de HQ do autor foi o curtíssimo Galho Seco, trabalho independente lançado em 2014 e com apenas 12 páginas. No final de 2015 ele publicou Carnaval de Meus Demônios, pela Balão Editorial. Apesar da qualidade de ambas as obras, elas servem apenas como um cartão de visitas, as duas são curtas demais e apenas instigam os possíveis dotes de Petreca como autor de uma HQ. Recém-lançado pela editora Veneta, Ye é o passo seguinte e mais ousado do quadrinista.

As 176 páginas do álbum infantojuvenil de Petreca focam nos esforços do inocente Ye em busca de sua voz e identidade em uma jornada por um mundo habitado por bruxas, demônios e piratas. O inimigo do herói é um rei que abastece seus poderes com o medo de seus súditos. O título é explicitamente influenciado por romances/quadrinhos/filmes de formação, com um diálogo imenso com as animações de Hayao Miyazaki. Tudo isso dentro de uma estética única, que mescla ambientações urbanas que remetem a cidades da Europa Oriental a vestimentas e feições que parecem vindas da América do Sul.

Em produção desde 2014, quando foi anunciado como um dos projetos financiados pelo Proac, Ye talvez seja apenas curto demais. Apesar de ser o mais longo projeto de Petreca, ele pede mais páginas, para aprofundar principalmente as personalidades e nuances de seus coadjuvantes. Ainda assim, é um grande trabalho, com um preto e branco belíssimo e uma arte sem igual. Bati um papo por email com o quadrinista. Conversamos sobre suas inspirações em Ye, seus métodos de produção, suas experiências com as editoras com as quais trabalhou e também sobre seus próximos projeto. Conversa bem boa. Ó:

“O Ye é trapaceado, não tem voz, vive com medo. Diante do cenário político atual é como me sinto. A solução é matarmos os reis”

Como surgiu a ideia do Ye? Você passou mais de um ano produzindo o quadrinho, certo? Ao longo desse período, entre você bolar a história, ser selecionado pelo Proac e finalizar o quadrinho, a obra sempre esteve fechada na sua cabeça? Mudou muita coisa entre a concepção e a conclusão?

A ideia de fazer o quadrinho surgiu por volta de 2012/2013, fui maturando a passos lentos. Nasceu nos sketchbooks, o personagem foi aparecendo em vários esboços descompromissados que fazia geralmente a caminho do trabalho. A ideia inicial é algo bem simples e se manteve até o final: escrevi a HQ para poder desenhar elementos que me fascinam, que eu estava doido para colocar em uma narrativa: um vilarejo inspirado na América do Sul rural, Piratas, uma Bruxa, um Circo no Gelo com um Palhaço bêbado e solitário, um centro urbano inspirado nas ruas da Europa antiga e um balão. Queria bolar a trama mais simples possível para amarrar os elementos. Foi um desafio que me propus. A história não mudou quase nada desde a ideia original, ela sofreu alterações básicas, necessárias para melhorar o ritmo. Tive que limar muita coisa, caso contrário a HQ pularia facilmente para 300 páginas, mas seria impossível conciliar o volume de trabalho com o prazo do Proac. Gostaria de ter explorado mais a parte dos piratas, do circo e principalmente a parte com a bruxa Miranda. A princípio a história seria uma forma de explorar o cenário e personagens secundários, no final se voltou totalmente para o personagem principal.

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Li o Ye como um quadrinho de formação. Trata de um jovem em busca da própria voz, como os personagens de clássicos que vão de David Copperfield e O Apanhador no Campo de Centeio até trabalhos mais recentes como Persépolis e As Vantagens de Ser Invisível. Você gosta de obras desse gênero? Elas pesam de alguma forma na sua formação?

Com certeza, grande parte das obras que influenciam pesadamente meu trabalho tem esse perfil. Das obras que influenciaram diretamente Ye cito A Viagem de Chihiro, Tekkonkinkreet, Três Sombras e Estigmas. Por mais que em alguns dos casos a história não gire em torno do desenvolvimento dos personagens, a evolução deles é extremamente necessária para a conclusão da história. Ye é totalmente um quadrinho de formação, o personagem passa por uma transformação comportamental, social, espiritual e estética.

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E falando sobre essas influências, o que você gosta de ler/ver/ouvir? Quais são seus quadrinhos, livros, filmes e discos preferidos? Aliás, uma curiosidade minha: você gosta de ouvir música enquanto trabalha? Se sim, teve alguma canção ou álbum que você ouviu enquanto produzia o Ye?

Para escrever Ye, Manu Chao e Gogol Bordello foram cruciais. Se não tivesse contato com as músicas deles não existiria Ye (aproveitando, criei uma “trilha sonora” pro Ye que está no Spotify, quem tiver interesse em escutar, tá aqui o link)

O que gosto de ouvir no geral depende muito da época, não tenho banda ou estilo favorito, mas para a criação e produção do Ye escutei em loop Manu Chao, Gogol Bordello, Cinematic Orchestra, Onda Vaga, música folclórica latina e sul americana. Música instrumental, rock, blues, jazz, rap, de tudo um pouco. Gosto muito de música folclórica em geral: japonesa, mongol, irlandesa, francesa, cigana, cubana. Hoje em dia não toco mais, mas durante a adolescência sempre tive banda, só ouvida hardcore, punk, metal, rap. Ainda gosto mas ouço pouco, bandas como Suicidal Tendencies, Minor Threat, 25 ta Life. Enquanto trabalho gosto de ter barulho, geralmente não presto atenção, mas não consigo trabalhar em silêncio.

Geralmente deixo rolando algum filme, seriado, música ou podcast. Se fico em silêncio começo a divagar, se divago começo a desenhar mal, haha. Sobre a leitura, sem pestanejar é o Bukowski. Sem dúvida é o autor que mais tenho prazer lendo, ainda quero muito adaptar algum livro, mesmo acreditando que isso seja um pecado mortal. Também gosto muito do Mutarelli, Chuck Palahniuk, Neil Gaiman, Goethe. Atualmente estou lendo o segundo volume de Musashi, do Eiji Yoshikawa. Li o primeiro volume há uns 10 anos, só agora conseguiu o segundo livro e desde que comecei a ler não desgrudei dele, baita leitura. De cinema sou apaixonado pelo Almodóvar, Miyazaki, Iñarritu. Sendo extremamente genérico gosto muito do cinema argentino, mexicano e europeu. Nos quadrinhos sou apaixonado pelo Liniers, pelo Hellboy, Taiyo Matsumoto, Bastien Vivés, Crumb. Recentemente conheci o trabalho do Manuelle Fior, que tem um dos traços mais elegantes que já vi. Ardalén, do Miguelanxo Prado é a HQ que mais me emocionou na vida, terminei o livro chorando copiosamente. Gosto muito dos quadrinhos do Diego Sanchez, vira e mexe releio. Winsor McCay, que tenho um fascínio pela obra. O Mundo de Edena, apesar de ter um final que me deixou brochadasso foi uma leitura foda, inspiradora, faz repensar a vida. A Vida de Jonas do Magno Costa foi uma HQ que me pegou em cheio. Bulldogma do Wagner William que me deixou de queixo caído. Li há semanas e ainda tô digerindo, pra mim é a melhor HQ dos próximos 10 anos, fácil hahaha. Atualmente estou acompanhando Blade, do Hiroaki Samura. Achei que nunca mais iria me empolgar com um mangá mainstream, mas tô achando bom pra caramba! E esse lance de esperar o próximo volume ser lançado é legal pra caramba, a última vez que tive esse sentimento foi quando lia Shaman King, há uns 12 anos haha.

Acho que um dos temas principais do Ye é a necessidade de enfrentarmos os nossos medos e lidarmos com as nossas inseguranças. Hoje, o Brasil vive uma crise que vejo cada vez mais fundamentada em medo – medo sem justificativa e criado por interesses escusos que nem sempre conseguimos compreender. Você vê um diálogo entre os temores do Ye e do mundo no qual ele vive e a nossa realidade?

Percebo que coloquei no protagonista do Ye traços da minha personalidade, muito mais do que gostaria. A dificuldade dele em se expressar, a necessidade de encarar seu medo para amadurecer. Depois de um tempo, Ye foi um quadrinho que mais do que querer, eu precisava fazer. Não porquê eu ache que ele vá mudar a vida de alguém, que vá ser muito importante para alguma pessoa, mas eu sentia que para mim, como pessoa e autor, eu deveria fazer, ou isso me deixaria travado, incompleto. Pode soar hippie, piegas ou o que for, mas o processo de encarar o livro, produzir e finalizar, foi extremamente importante. Durante o processo superei uma porrada de medo, como o medo que tinha de dirigir, insegurança em me expressar, em tomar atitudes importantes sem depender de uma segunda opinião. O fato de fazer um livro com esse tema, me obrigou a refletir muito.

E sim, pode ser que o Ye seja um reflexo interessante do momento. O Ye é trapaceado, não tem voz, vive com medo. Diante do cenário político atual é como me sinto. A solução é matarmos os reis.

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Em comparação com o Galho Seco e o Carnaval, sendo a Ye sua primeira HQ longa, quais as principais lições que você tirou durante a produção desse trabalho mais recente?

Organização e paciência. A produção do Galho Seco e do Carnaval de Meus Demônios foi bem livre, não tinha uma rotina de trabalho. Ye seria impossível de ser produzida se eu não estabelecesse metas e horários. Isso foi muito bom, me profissionalizou como quadrinista, hoje entendo meu tempo, minhas vantagens, limitações. Também aprendi a ser menos ansioso com o resultado final. Cada trabalho traz um aprendizado, é como se o Galho Seco fosse um Ensino Fundamental, Carnaval um Ensino Médio e Ye uma Graduação.

As narrativas desses seus três trabalhos mais conhecidos até o momento são muito distintas. O Ye tem menos experimentações que os dois anteriores em termos de enquadramentos e designs de página. Foi uma opção sua criar essa estética mais rígida?

Sim, queria a experiência de produzir algo mais “clássico” tanto na questão do roteiro quanto na forma de narrar, nos layouts das páginas. A história é fechada, já no Carnaval e no Galho Seco são totalmente abertas. Foi um desafio fazer uma história sem ponta solta, com texto, vários personagens, ambientações.

No Galho Seco a ideia era mais abstrata, experimental, queria ilustrar o transporte do concreto para o sensorial. No Carnaval a ideia era fazer um quadrinho que se aproximasse da animação, por isso as ilustrações ocupam páginas inteiras, queria passar a sensação de assistir o quadrinho se formar, se desenrolar. Funciona quase como um storyboard.

E no Ye, a ideia era ser mais tradicional, queria que os personagens tivessem personalidades bem definidas, quis escrever uma história com início, meio, fim, desenvolver o personagem, explorar ambientes, etc. Isso faz com que o design seja menos experimental, ajuda a história a caminhar melhor. Poderia ter feito um quadrinho mudo, ou poderia ter feito uma ilustração por página, mas acho que isso tornaria a leitura maçante.

Apesar de lançado pela Veneta, o Ye é um projeto do Proac. Já o Galho Seco foi uma produção independente e o Carnaval lançado pela Balão. Como foi a experiência com cada obra? O que você tira de melhor e pior de cada uma?

Galho Seco foi muito importante, pois foi um pontapé inicial. Sempre encarei os quadrinhos com muita seriedade e apesar de sempre ter tido vontade de escrever uma HQ, nunca tive coragem, sempre encarei como algo “sagrado”. Fazer Galho Seco, mesmo sendo uma HQ tão curta foi uma revolução interna, me deu coragem para investir na produção de quadrinhos, fez com que me apaixonasse ainda mais pela mídia. Desde muito cedo soube que eu queria trabalhar com desenho. Daí que durante os anos experimentei de tudo (ou quase) que o desenho envolve: ilustração editorial, publicitária, concept art para animação e games, design gráfico, artes plásticas, etc. Apesar de ter experiências legais em cada uma dessas áreas, sempre me senti um pouco frustrado, por sentir que o que estava fazendo não tinha a minha voz. Sempre procrastinei com os quadrinhos, sempre levei muito a sério. Não queria investir nos quadrinhos até que eu sentisse que tinha algo que valesse a pena contar, mostrar. Produzir o Galho Seco me trouxe uma experiência nova com o desenho, com a arte. Me senti livre, como poucas vezes. Hoje, nos quadrinhos, consigo retratar e vivenciar coisas que seriam impossíveis, é como construir um sonho, ter controle dele e poder revisitá-lo e remoldá-lo quantas vezes eu quiser. No começo do ano pulei de paraquedas, você já pulou? Antes de abrir o paraquedas você tem alguns segundos de queda livre, é intenso e surreal, você não tem controle algum, sua mente fica vazia. Uma sensação completa de liberdade. Fazer quadrinhos pra mim é isso.

Carnaval de Meus Demônios e Ye são consequências disso, sigo em queda livre. Nisso, os três quadrinhos são iguais. O que difere bastante é a forma publicar.

Com Galho Seco tive o primeiro contato com gráfica, livraria, lançamento. Acho importante o primeiro trabalho ser independente, faz com que o autor ande com as próprias pernas, conheça os livreiros, conheça gráficas, vá atrás de eventos. É uma delícia fazer o trabalho todo sozinho, a poética em torno disso seduz, mas não é pra mim. Não gosto de ir no correio, não gosto de cobrar livraria. Ou faço isso ou produzo, não consigo conciliar. Admiro muito o Marcatti que além de produzir em grande volume, e com qualidade altíssima, se mantém independente. Pra mim ele é um ideal inalcançável.

Carnaval foi uma experiência legal, eu queria muito lançar alguma coisa com a Balão. A única coisa que me arrependo foi de ter lançado em meio a correria de finalizar o Ye. O lançamento do Carnaval foi um pouco apressado, eu deveria ter feito com mais calma para poder trabalhar melhor a divulgação, o pré e pós-lançamento. Mesmo assim é um trabalho que me orgulho de ter feito, foi uma delícia desenhar, ele tem um clima e personagens que quero voltar a trabalhar.

Já o Ye é a concretização de um sonho. Quando comecei a imaginar a história, não acreditava que a concluiria. Se não fosse o Proac nunca teria saído do papel. É legal trabalhar com a Veneta, eles são muito bons, deram um gás necessário pro livro. Produzir Ye foi um aprendizado enorme, não vejo a hora de começar os quadrinhos novos para pôr em prática o que desenvolvi escrevendo e desenhando Ye. Além de me permitir desenhar tudo que eu estava com vontade, tenho feito animações (que é minha segunda paixão) para divulgar o livro, só alegria.

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Você ainda tá investindo no lançamento do Ye, mas já tá pensando num próximo projeto? Quais são seus planos?

Sim, pensando em vários na verdade, hehe. Para o fim do ano quero produzir uma história curta de, no máximo, 30 páginas e para o ano que vem uma HQ com roteiro do meu amigo Jun Sugiyama – samurais, folclore e seres místicos japoneses, arte inspirada no ukiyo-e – o roteiro já está pronto, posso adiantar que o Jun destruiu, tô mega ansioso pra começar a desenhar. Sempre quis fazer uma HQ com samurais, não poderia ter roteiro melhor. Esse ano quero voltar a pintar telas, por lazer. Se possível descansar um pouco, mas disso não tenho muita esperança.

CapaYe!

PS: Ye terá lançamento amanhã, sábado (14/5), lá na loja da Ugra, aqui em São Paulo. Além de uma sessão de autógrafos com Petreca, o evento vai contar com uma exposição de artes originais do quadrinho, alguns esboços e uma instalação. Estarei por lá e recomendo o mesmo pra você.

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Ramon Vitral

Meu nome é Ramon Vitral, sou jornalista e nasci em Juiz de Fora (MG). Edito o Vitralizado desde 2012 e sou autor do livro Vitralizado - HQs e o Mundo, publicado pela editora MMarte.

3 comentários

  1. Talento ,perseverança , muito estudo , e busca constante pela perfeição e sobretudo amor à sua arte e a dos amigos que sempre prestigia compartilhando trabalhos ………..mais que merecido esta oportunidade ……Parabéns pela Veneta..

  2. Muito bacana o trabalho. Encontrei o “Ye” por acaso na Livraria Cultura e decidi buscar mais informações. O Vitralizando também é uma grata surpresa. A entrevista tem um nível mais profundo do que normalmente se vê. Parabéns a todos.

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