Fugir – O Relato de Um Refém é o mais recente trabalho do quadrinista canadense Guy Delisle publicado em português. Eu escrevi sobre a obra lançada por aqui pela Zarabatana Books para o portal UOL. No texto eu apresento algumas aspas da minha entrevista com o autor, tratando principalmente do processo de adaptação para quadrinhos do relato do trabalhador humanitário francês Christophe André sobre seus 111 dias como refém de uma milícia no Cáucaso no ano de 1997. Com 432 páginas, o livro oferece uma experiência de leitura angustiante, sempre propondo ao leitor possíveis questionamentos em relação a quais escolhas ele faria no lugar do protagonista da HQ.
Quinto livro de Delisle publicado no Brasil, Fugir é o primeiro não protagonizado pelo autor. Ao contrário dos diários de viagem Shenzhen – Uma Viagem à China, Pyongyang – Uma Viagem à Coreia do Norte, Crônicas Birmanesas, Crônicas de Jerusalém e do bem-humorado Guia de Um Pai Sem Noção, Delisle se faz presente apenas na primeira página de Fugir, entrevistando Christophe André. Ainda assim, após ambientar seus trabalhos mais conhecidos em locais com governos ditatoriais ou conhecidos pelas restrições impostas aos seus cidadãos, Fugir soa como o mais recente capítulo de uma série sobre pessoas em contextos de falta de liberdade – tópico obrigatório para um Brasil em meio a uma disputa presidencial protagonizada por um candidato militarista, pró-tortura, fascista, misógino, machista, xenófobo, homofóbico e racista.
Recomendo demais a leitura de Fugir – O Relato de Um Refém e da minha matéria sobre o quadrinho para o UOL. Depois volte aqui e leia a íntegra da minha entrevista com Delisle, conversa muito interessante sobre a construção de sua HQ mais recente, a dinâmica de seu trabalho com Christophe André e as reflexões que vieram à mente dele enquanto desenvolvia o álbum. Com vocês, papo com Guy Delisle:
[A entrevista a seguir foi traduzida pelo jornalista, crítico, pesquisador e tradutor Érico Assis. Valeu pela ajuda, Érico!]
“Tínhamos que transformar isso em história em quadrinhos. E ele falou: ‘Claro, por que não?'”
Você lembra do momento em que teve a ideia de contar a história do Christophe André em HQ? Aliás, você lembra como a mídia francesa noticiou essa história?
Eu tinha lido o diário de Christophe no jornal e depois tive oportunidade de encontrá-lo num dia que ele estava com amigos da Médicos Sem Fronteiras, que me avisaram: ‘Ele vem almoçar conosco.’ Como eu já conhecia a história, comecei a fazer perguntas, mas pensei que uma pessoa que tivesse passado por uma experiência daquelas não ia gostar de contar. Fui pensando: que trauma, ele não vai falar muita coisa. Só que, na verdade, ele foi muito aberto. Contou a história inteira a todos nós, com detalhes, e aquilo foi tão fascinante que eu pensei: Uau, tínhamos que transformar isso em história em quadrinhos. E ele falou: ‘Claro, por que não?’ Levei bastante tempo, mas desde ali, desde o princípio, eu percebi que embora a maioria das pessoas que é sequestrada não goste de contar a experiência, esse cara era diferente porque ele tinha fugido. Como ele mesmo disse: ‘Fugir é a melhor terapia’. Por isso ele não se sentia vítima nem nada do tipo. Se sentia inclusive mais forte que antes do sequestro. Por isso que não tinha problema em contar.
Você poderia falar um pouco da dinâmica do seu trabalho com o Christophe André? Como ele recebeu a sua proposta de transformar a história dele em quadrinho?
Passamos só um dia juntos, mas ficamos em contato durante os 15 anos que eu levei para fazer o álbum. Ficamos muito amigos porque temos muito em comum. Acho que é por isso que o quadrinho está aí, pois de outro modo acho que teríamos perdido o contato. A partir da gravação eu fiz várias anotações, coloquei em ordem e comecei a trabalhar. Eu enviava as páginas pra ele, pois foi a primeira vez que coloquei palavras na boca de alguém e no começo achei muito difícil. Ficava pensando: o Christophe vai ter que ler isso aqui. Se não eu vou ficar num bloqueio constante. Então eu fazia 10 ou 15 páginas, enviava pra ele, ele me dava um retorno e eu seguia adiante. Eu não queria que ele tivesse surpresas negativas no final, quando recebesse o livro. Queria que ele soubesse o que estava no livro e concordasse com tudo.
“Um amigo tirou fotos minhas seminu na cama e no chão, que na época deu uma sensação muito esquisita, mas ajudou bastante porque optei por um desenho mais realista que o meu normal”
Uma grande diferença entre o Hostage e os seus livros de viagens é que você não teve a experiência de estar presente no local em que a sua história é ambientada. O processo de criação desse livro foi muito diferente desses outros? Você usou muitas referências fotográficas? Como decidiu o que desenhar?
Bom, a maior parte do livro se passa em uma sala onde não tem nada, e isso é bem fácil de desenhar. No resto, tirei fotos de mim mesmo amarrado a um radiador no meu estúdio. Tenho algemas que comprei porque sabia que era uma coisa que ia desenhar por 400 páginas. Um amigo tirou fotos minhas seminu na cama e no chão, que na época deu uma sensação muito esquisita, mas ajudou bastante porque optei por um desenho mais realista que o meu normal. Foram boas referências. Depois disso, quando ele foge e estamos na Chechênia, procurei imagens vilarejos na Inguchétia e na Geórgia porque na internet, quando se procura Chechênia, só se encontra lugares fechados, nada externo.
Você poderia falar um pouco das suas técnicas?
Desenho tudo no papel e depois escaneio. Eu desenhava em folhas avulsas em vez de ter uma prancha final, porque queria chegar no aspecto de rabisco. Não apagava nada. Saía desenhando e ficava com o que me deixasse satisfeito, e no fim do dia escaneava tudo e deixava a montagem da página para depois, no computador. Sombreamento e tons de cinza também foram no computador. Ou seja, metade do dia era desenhar e escrever, isso pela manhã. Aí no fim do dia eu escaneava e montava. Em um dia normal de trabalho, costumo fazer uma página.
“Christophe dizia: ‘Com uma pressão dessas, você vira uma pessoa bem diferente.'”
Mesmo não tendo tantas variações de cores, Hostage é o seu livro mais colorido, certo? Como você chegou nessa paleta específica de tons azulados e cinzas?
O desenho é simples, as cores são simples. Ele me dizia que ficou numa penumbra cinzenta. Não havia luz total no quarto. Era sempre meia luz, o tempo todo. Então resolvi mostrar isso com variações de cinza e um tom de azul. Foi isso.
Eu acho que o maior mérito do livro está em colocar na cabeça do leitor a dúvida do que ele faria no lugar do seu personagem. Você costuma especular sobre o que teria feito no lugar do seu protagonista?
Não sei. Christophe dizia: ‘Com uma pressão dessas, você vira uma pessoa bem diferente.’ Ele é um cara bem tranquilo e, quando pensa no que fez, é uma coisa que vai quase além da imaginação. Mas ele fez. E, como ele diz, você não é mais o mesmo. Você vira outra pessoa. Ou seja, você não sabe o que faria em uma situação tensa que nem aquela.
O quadrinho saiu em inglês como Hostage e em francês como S’Enfuir. Você que decidiu as duas versões do título? Aliás, foi difícil determinar qual seria o título?
Só escolhi o título em francês e deixei os outros a cargo de cada tradutor.
Os seus livros tratam principalmente de liberdade e de locais nos quais ela tem alguma restrição. O mundo está cada mais conservador e hostil em relação a liberdades individuais. O que você pensa sobre isso? Você é pessimista ou otimista em relação ao nosso futuro?
Depende do dia.