Conversei com a quadrinista Helô D’Angelo sobre Isolamento, série que acompanha a rotina dos moradores de um prédio desde o início da pandemia do novo coroanvírus. A obra é publicada no Instagram e no Twitter da autora desde os primeiros meses de 2020 e está atualmente em campanha de financiamento coletivo para lançamento de sua versão impressa. Transformei essa entrevista com a artista no tema da edição de abril da Sarjeta, minha coluna mensal sobre histórias em quadrinhos no site do Instituto Itaú Cultural. Você lê meu texto clicando aqui.
Reproduzo agora a íntegra do meu papo com Helô D’Angelo. Ela me falou sobre as inspirações por trás da HQ, contou sobre seus hábitos de observação, expôs as técnicas usadas por ela na produção da série e refletiu sobre o impacto da realidade sócio-econômica-pandêmica brasileira em seus trabalhos. Recomendo o seguinte: leia Isolamento, depois invista na minha coluna no site do Itaú Cultural e, em seguida, retorne aqui para ler a entrevista. Conversa bem boa, saca só:
“As fofocas que ouvimos por aí são inspiradoras e material para criarmos histórias mais verossímeis”
Tenho perguntando para todo mundo que entrevisto desde o início do ano passado: como estão as coisas aí? Como você está lidando com a pandemia? Ela afetou de alguma forma a sua produção e a sua rotina diária?
Pergunta super pertinente! Por aqui, as coisas estão como num grande Dia da Marmota: mesma rotina, mesmas aflições, mesmas angústias dia após dia. No começo da pandemia, eu estava com bastante energia acumulada – muita raiva, impotência, ansiedade. Então, produzia sem parar, trabalhei demais… e isso me rendeu um burnout com pitadas de noites insones. Então, no final do ano passado, reduzi minha carga de trabalho, inseri na rotina umas caminhadas na praça e tenho tentado não ler tanto as notícias. Agora estou totalmente focada em Isolamento, que inclusive é um projeto que tem me dado bastante amparo sentimental nesses tempos obscuros.
Quero saber sobre o ponto de partida de Isolamento. Houve algum momento em particular que bateu a ideia de transformar a pandemia e o isolamento social em trama de um quadrinho?
Bom, eu me mudei para o apartamento onde moro agora poucas semanas antes do início do isolamento brasileiro. O apartamento fica no topo de uma elevação, um pequeno morro, e é no primeiro andar, de modo que a minha janela se tornou, na prática, o camarote de um anfiteatro. Ouço e observo praticamente TUDO que as pessoas dizem e fazem pelas janelas. Particularmente uma vizinha nossa, que morava numa casa bem abaixo da nossa janela, era bem irritante: ela falava, berrava e cantava de madrugada, dava festas, ridicularizava nossos pedidos de silêncio, era um inferno. Outros vizinhos não faziam barulho, mas reclamavam da gente (denunciaram nossas plantas na janela à síndica… coisas assim). No começo, eu ficava muito irritada com a situação, porque sou dessas que curtem um silêncio, mas quando vi que não tinha jeito (e que a pandemia ia longe), decidi fazer uma tirinha da situação, meio que pra tirar o peso da coisa. Criei, então, esse prédio imaginário, com 12 apartamentos, e personagens que eram amálgamas de todas as pessoas reais que eu ouvia, de forma adaptada. A tirinha seria só isso mesmo, uma tirinha, se não tivesse feito tanto sucesso. Experimentei fazer uma segunda tira – sobre os panelaços – e aí, mais inspirada, comecei a seriar a HQ. Hoje, já temos duas temporadas do predinho.
Você já disse que as histórias de isolamento são parcialmente inspiradas nas suas observações dos seus vizinhos. Uma vez eu entrevistei o Adrian Tomine e ele ressaltou a importância da observação para a criação dos personagens e desenvolvimento das histórias dele. Você tem algum hábito ou rotina em particular de observação do mundo ao seu redor?
Sim, eu concordo demais com Tomine. Eu sempre digo que, para ser um bom quadrinista, a pessoa precisa ter apenas uma característica: ser uma boa fofoqueira. Porque as fofocas que ouvimos por aí são inspiradoras e material para criarmos histórias mais verossímeis. E eu sempre tive ouvidos atentos: gosto muito de ouvir os bafafás na rua, no ônibus, e especialmente de vizinhos. Fico imaginando o que aconteceu ali e frustrada por saber que nunca vou descobrir de fato. Então, nesse sentido, acho que para além da inspiração eu gosto de tecer finais para essas histórias que ouvimos pela metade. Outro hábito que tenho é o de desenhar estranhos: estou sempre com meu caderninho, pra lá e pra cá, tentando conhecer aquela pessoa pelo traço e a observação. Acho que muitas dessas pessoas e seus desenhos ficam gravados na memória, num baú de referências, e reaparecem quando preciso delas.
“Sem minha experiência jornalística eu jamais teria chegado a Isolamento porque não saberia como ouvir e ver de verdade”
E você fala da sua observação dos seus vizinhos como inspiração, mas cada uma daquelas varandas ali também me soa como uma conta de rede social. Os seus vizinhos de rede também são inspiração para o desenrolar de Isolamento?
Que boa pergunta! Com certeza, muito da inspiração para a HQ vem de outras fontes que não os vizinhos em si. E como passamos muito tempo pendurados nessas “janelas” das redes sociais, acredito que muito das histórias vindas das redes se derrama para Isolamento. Principalmente as histórias mais gerais, como o sentimento das pessoas naquele momento específico – um período de muitos panelaços, ou um período de recorde de mortes, por exemplo -, e algumas específicas, como a de uma blogueira que, ao ser cancelada, começa um caminho de autocuidado e terapia. Pra citar Drummond, acho que são vários sentimentos do mundo que eu desenho na HQ, e como o mundo está restrito às janelas (reais ou virtuais), acabo usando o material que chega para mim.
Ainda sobre seus hábitos de observação: o quanto você acha que a sua formação em jornalismo contribui para os seus registros e suas assimilação do mundo à sua volta e para o desenvolvimento de Isolamento?
Olha, quando eu estava na faculdade de jornalismo, achava que estava perdendo tempo da minha vida com algo que eu não queria fazer. Mas a verdade é que aprender a entrevistar e a escutar (uma escuta real, que às vezes acho que a gente só alcança na análise ou numa boa entrevista) moldou os meus quadrinhos. Acho que, quando a gente faz uma boa entrevista, é como se um véu se abrisse naquele momento; um véu que separa você da outra pessoa. De repente, você pode ver a pessoa com mais clareza. pode acessar pontos que antes estavam ocultos ou protegidos. E é uma satisfação imensa quando a gente chega lá, e algo como um pacto se cria entre jornalista e fonte. Eu gosto de tirar o véu dos meus personagens para quem lê, e acho que os leitores atentos podem descobrir coisas muito interessantes sobre esses personagens, se prestarem atenção e estiverem dispostos a ouvir de verdade. E isso pode, assim como uma boa entrevista, ensinar ao leitor coisas sobre si mesmo. Então, acho que sem minha experiência jornalística eu jamais teria chegado a Isolamento porque não saberia como ouvir e ver de verdade.
E eu imagino que parar para observar o mundo, pensar uma história deve ser uma experiência bastante terapêutica. Ao mesmo tempo, imagino que possa não ser tão agradável assim criar em torno da pandemia e retratar pessoas com posições ideológicas extremas à sua… Enfim, como tá sendo a sua experiência de trabalhar na série?
Eu acho que é uma experiência bem terapêutica, sim, no sentido de que eu tenho um espaço para encarar de uma forma segura as pessoas que me incomodam. Um dos meus personagens favoritos, ironicamente, é um senhor idoso, eleitor de Bolsonaro, seu Oswaldo. Gosto dele porque é um poço de profundidade, com um monte de interpretações possíveis: é um bolsonarista, mas também é um idoso solitário, e também um pai triste por ter rompido com a filha, e ao mesmo tempo um homem com suas sensibilidades, que curte tricotar e ver novela, mas que foi podado emocionalmente por tanto tempo que já não se lembra como acessar emoções. É uma sensação boa poder desenhar essas faces de seu Oswaldo, me faz entender que as pessoas todas são assim, multifacetadas. Isso me faz sentir um pouco mais de calma sobre a situação geral do mundo. Por mais que eu ainda sinta bastante raiva de pessoas como ele, rs. E isso se repete com muitos moradores do predinho. A coisa se torna uma espécie de meditação sobre aquilo que não posso mudar e a preciosidade que existe, ainda assim, no mundo.
“Estou criando conforme a realidade avança, e algumas coisas eu mudo ao longo do caminho”
Aliás, fico curioso, por mais que você possa ter planos para cada um dos seus personagens, eles me parecem meio à mercê da realidade… Como é para você criar enquanto o pano de fundo da série tá em curso?
Na primeira temporada, eu desenhei 24 episódios direto, adiantados. E era isso. Ia postando aos poucos e a realidade não estava se movendo com tanta rapidez, então deu tudo certo. Quando cheguei à segunda temporada, comecei a desenhar furiosamente e meu namorado, Luis, disse “Xi… agora, você vai ter que prever o futuro”. Eu ri, mas de fato me deparei com o problema da realidade estar mudando a cada semana. Eu não podia, então, adiantar tantas semanas da HQ porque, de uma semana para a outra, saía uma vacina. Ou começava um BBB e as dinâmicas relacionadas ao programa, começavam panelaços, enfim, coisas que eu não podia ignorar. Então, fiz um roteiro-base bem simples para cada janelinha e adiantei o que era possível. O resto estou criando conforme a realidade avança, e algumas coisas eu mudo ao longo do caminho: desenhei a vovó, que mora com o neto, sendo vacinada; contaminei o Marcelo, morador da cobertura que não para de dar festas na pandemia; desenhei o esperado parto de uma das personagens… Pra mim, é uma forma nova de fazer HQ: em geral, tenho um roteiro pronto e faço poucas mudanças ao longo das postagens. Tem sido estranhamente libertador.
Imagino que você tenha preferências por um ou outro personagem em particular, prefira desenvolver mais esse ou aquele e se sinta mais distante de alguns… Acho que quero perguntar é: é difícil não se livrar dos bolsonaristas do prédio?
Hahaha, acho que já respondi um pouquinho na pergunta sobre a HQ ser terapêutica, mas a resposta é não. Embora eu sinta um ódio gigante quando penso na situação do país e nas pessoas que elegeram Bolsonaro, e mais ainda nas que seguem apoiando o governo, eu realmente gosto dos meus personagens. Me fazem lembrar, por exemplo, da minha relação com meu pai – um homem muito simples, muito amedrontado pela mudança dos tempos, pela alteração de um mundo que ele foi criado para achar que era seu reino. Ele não sabe mais como funcionam as relações e às vezes ergue um muro de fúria e machismo em torno de si mesmo. Passei muitos meses sem conversar com ele, logo após as eleições de 2018. Agora, voltamos a nos falar, com um pouco mais de abertura e compreensão. Eu me sinto um pouco conversando com meu pai quando desenho esses personagens; me vejo tentando compreender que tipos de extremos levam uma pessoa a apoiar um genocida no meio da maior crise sanitária e humanitária das últimas décadas. Acho que é mesmo um lugar de muito medo, o dessas pessoas. E eu gosto de tentar desvendar isso e de, talvez, nutrir esperanças por uma mudança de pensamento, como tem rolado com meu pai. Mas, lógico, tem momentos em que eu gostaria muito de jogar esses personagens pela janela…
O quanto você já tem elaborado da série? Até onde você já tem definido em relação aos destinos de cada personagem?
Teoricamente, a HQ está roteirizada inteira, até o fim. Mas eu posso vir a fazer algumas mudanças, como contei antes, por causa das novidades da vida real: o início da vacinação de uma determinada faixa etária, aumento do número de mortos, coisas assim. Outros detalhes eu também preciso alterar porque percebo que alguma coisa não ficou clara, ou que precisa ser mais desenvolvida – às vezes eu só percebo isso ao postar o episódio e reler ao mesmo tempo que os leitores. São coisas como um flerte entre personagens que evoluiu rápido ou lento demais, a gravidez de uma personagem que precisa acabar e não previ isso, uma personagem que raspou o cabelo e agora ele está crescendo de novo. Mas a linha geral das histórias, o começo, meio e fim, já estão definidos.
“Minha previsão do projeto é que ele termine no episódio 40 da segunda temporada”
Você já tem um final em vista para a série? Caso não tenha, até onde você acha que ela pode ir?
Hoje, minha previsão do projeto é que ele termine no episódio 40 da segunda temporada, sem contar várias HQs extra, ilustrações e conteúdos assim. Mas… como a pandemia não parece estar nem perto de acabar, pode ser que eu continue por mais algum tempo. O mais provável é que eu foque em alguma das janelas e desenvolva histórias mais longas de alguns dos personagens do prédio. Fortes candidatos são Catarina e seu cachorro falante, por exemplo. Outra ideia é narrar coisas que aconteceram fora do prédio, com personagens que não aparecem ali. Ou, talvez um novo prédio… Por enquanto, são só ideias!
Acho que são propostas muito diferentes, mas o Aqui, do Richard McGuire também se propõe a narrar sob um único ponto de vista, com saltos temporais e informações vagas sobre a vida de cada personagem. Essa obra te influenciou de alguma forma durante a produção de Isolamento? Teve alguma outra obra (seja HQ, filme, livro, música, série ou o que for), que impactou de alguma forma o seu trabalho em Isolamento?
Eu li o Aqui bem no começo da pandemia e, sim, ele me influenciou bastante nesse sentido, de uma visão poética de um mesmo ponto de vista. Tive outras referências também, como Jimmy Corrigan, o menino mais esperto do mundo, de Chris Ware, uma HQ que me marcou muito pelo cuidado com os mais minúsculos detalhes, algo que eu gostaria de incorporar nesta HQ (claro que não tenho a pretensão de ir até a nota de rodapé da nota de rodapé, mas adorei os cenários detalhados pequeninos). Os filmes Janela indiscreta, do Hitchcock, e Delicatessen, de Jean-Pierre Jeunet, foram dois que assisti no começo do isolamento e também me inspiraram bastante – o primeiro, obviamente, pelo formato, e o segundo pela diversidade de pessoas convivendo num mesmo espaço e produzindo alguma doçura no meio de canibalismo e alguma praga ambiental pós-apocalíptica. E um álbum que me deixou bastante inspirada enquanto fazia a HQ foi Fetch the Bolt Cutters, da Fiona Apple: ela lançou durante a pandemia e, ao fundo, ouvimos vários sons de sua casa, incluindo seus cachorros.
Você pode, por favor, falar um pouco sobre as suas técnicas em Isolamento? Dora e a Gata foi todo com tinta, né? E agora? Você está trabalhando com papel ou no digital? Quais foram os seus critérios para a escolha dos materiais que está usando nesse projeto?
Dora e a gata foi totalmente feito em aquarela, e Isolamento é 100% digital, feito no Photoshop. Essa mudança se deu um pouco por sorte: eu recebi, de uma marca chinesa chamada Huion, um display para desenho digital que me permitiu finalmente desenhar direto na tela (Huion Kamvas 12 pro). Uma das minhas birras com desenho digital é que a maioria dos tablets é como se fosse um mouse, você desenha nele mas olha para a tela do computador, o que me atrapalha muito. Então poder desenhar olhando para a tela foi uma grande melhora e uma porta de entrada para o desenho digital. E isso mudou minha relação com o tempo de trabalho: agilizou tudo. Cortou a necessidade de escanear e tratar meus desenhos, o que leva horas, e permitiu que eu criasse, por exemplo, o layout da HQ Isolamento, e me focasse apenas nos personagens, sem precisar voltar a desenhar todas as janelas a cada nova página, algo que eu precisaria fazer se trabalhasse em aquarela. Também me deixou mais livre para experimentar, porque, afinal, aquarela é uma mídia caríssima, e o digital te permite erros infinitos sem custos adicionais. Então, essa mudança de mídia foi mais por comodidade, economia e praticidade do que estética. Mas tem sido bem divertido também. Menos pressão, acho!
“Produzir esta HQ, prestando atenção ao mundo que me cerca, me colocou em contato com esperanças de várias formas”
E me fala um pouco sobre a sua rotina de produção, por favor? Você tem algum hábito em particular em relação a horários, ambientes e contextos preferidos para a produção de Isolamento?
Tenho organizado minha rotina de uma forma cada vez mais certinha pra estruturar um pouco esses dias da marmota. Então, começo o dia com uma caminhada numa praça aqui perto, onde sento e tomo um solzinho por uns minutos. Organizo a cabeça pros trabalhos do dia. Aí, volto, tomo banho, me alongo, trabalho um pouquinho em esboços e coisas assim para trampos mais urgentes, almoço, e daí sento para desenhar Isolamento, geralmente com trilhas sonoras de musicais. Quando acontece alguma coisa específica – recorde de mortos, vacina aprovada pela Anvisa -, eu inverto, porque a urgência é maior, e desenho logo a página de Isolamento. Nas páginas em si, a coisa é bem mecânica: uso um mesmo arquivo do Photoshop com as partes do layout (portas, janelas, grades das varandas) separadas em camadas, e já tenho uma paleta definida. Eu faço o traço, depois a cor e a sombra, e por último adiciono os balões, exporto o arquivo e é isso – leva aí umas 3h para finalizar cada episódio. Às vezes, paro, tomo um café olhando pela janela, à espera de alguma fofoca nova que eu possa usar. Trabalho até por volta das 20h, depois faço uma yoga, jogo um pouco algum game, leio ou vejo uma série e tento dormir. E é basicamente isso. Agora, durante o Catarse, tenho feito lives semanais finalizando as páginas, mostrando algumas das partes do processo e trocando ideia com os seguidores, tem sido bem bacana.
Gêneros literários acabam sendo meio bestas, sendo estabelecidos principalmente para ajudar na escolha das prateleiras de livrarias, mas fico curioso: você tem um gênero definido para Isolamento? Pergunto isso porque fico com a impressão de que cada varanda parece estar contando uma história de um gênero distinto.
Nossa, essa é uma leitura bem bacana – cada janela é um gênero. Posso usar na sinopse? rsrs
Mas, falando sério, eu não pensei muito em gênero. Gosto de misturar gêneros: num dia uma janela está triste, no outro, está alegre; há algum romance rolando entre varandas que, semanas depois, passam a brigar; o prédio inteiro um dia está comemorando a noite de São João e, no outro, entediado… Eu acho que a vida é um pouco isso, essa mistura de gêneros. Mas provavelmente uma livraria me colocaria em “ficção realista” ou algo assim (ignoremos o cachorro falante na última varanda abaixo, rs).
Você é bastante ativa nas redes sociais e tá publicando Isolamento via Twitter e Instagram. Quando conversamos sobre a produção de Dora e a Gata você falou que não se deixava influenciar pelo retorno dos seus leitores enquanto desenvolvia a história. Você segue assim com Isolamento? O retorno que você tem dos seus leitores já impactou de alguma forma o desenvolvimento desse trabalho atual?
Eu não gosto de ceder às pressões das pessoas porque detesto a sensação de que sou um braço desenhando o que outros me pedem. Acho bacana quando as pessoas gostam, ou quando eu já tinha planejado algo e as pessoas, por coincidência, pedem aquilo, mas gostaria de fazer coisas um pouco menos esperadas, menos confortáveis. Nem acho que consiga na maior parte das vezes, mas gosto de tentar. Com Dora, eu tentava resistir a essa pressão e muitas vezes era julgada por isso, e o resultado, às vezes, eram personagens um pouco mais rasos e engessados, como o vilão da história, Caio, o namorado abusivo sem nenhum lado “bom”; presos entre o que eu queria fazer e as expectativas que eu não queria seguir. Em Isolamento, recebi muitos pedidos e observei muitas frustrações. Em especial porque, como o conceito da HQ é “você está observando o prédio à frente”, muitas informações ficam de fora: se um personagem se muda do prédio, nunca mais saberemos o que houve com ele, por exemplo. E as pessoas ficam bravas com isso! Pra contar uma história engraçada: uma das janelas na primeira temporada tinha um casal, e um dos namorados, que era médico, pegou COVID. Eventualmente, ele para de aparecer; o outro namorado fica triste e, então, vemos uma placa de “aluga-se” na varanda. Fui bastante xingada por ter “matado” o personagem, até vieram me dizer que eu estava “alimentando estereótipos de relacionamentos homossexuais tristes”, mas eu respondia que nós não sabemos o que aconteceu com eles de verdade. Só podemos supor! E eu tenho gostado dessa “justificativa” para poder quebrar expectativas dos leitores: são pessoas “reais”, eu não tenho controle sobre elas, lide com suas expectativas. O resultado são personagens um pouco mais ricos, como o velho bolsonarista que também quer se reconectar com a filha, a blogueira cancelada que começa a se autoconhecer, a menina que conversa com seu cachorro (ou consigo mesma?), um casal de pessoas com visões políticas opostas, mas que de algum jeito ainda se amam…
Quando te entrevistei pela primeira vez, em julho de 2019, você disse que se considerava otimista apesar de Bolsonaro e tudo mais que já estava por aí… Quase dois anos depois, Bolsonaro + pandemia + tudo muito pior: você mantém o seu otimismo em relação ao nosso futuro?
Eu estava otimista, né? Hahaha! Bom, não vou mentir, a minha esperança está bem pequenina nos últimos meses. De Dora para cá, vi um lado das pessoas que eu jamais imaginava que fosse tão forte: um lado egoísta, de “eu primeiro”, de se aglomerar enquanto morrem 3 mil, 4 mil pessoas por dia. Mas, ao mesmo tempo, produzir esta HQ, prestando atenção ao mundo que me cerca, me colocou em contato com esperanças de várias formas. Uma festa de São João isolada, com uma “quadrilha vertical”, aconteceu de verdade em um prédio próximo ao meu. Vejo amigos criando esquemas de cozinhas comunitárias para pessoas que passam fome. Observo colegas e pessoas que admiro organizadas politicamente, lutando por direitos que vão desde o auxílio emergencial até as vacinas. E, claro, o fato da minha campanha de Catarse estar sendo bem sucedida me mostra que as pessoas têm fé em mim e nas pessoas que desenho. Tudo isso me dá, se não otimismo, algum ânimo para encarar o que vem por aí.
Última! Você pode recomendar algo que esteja lendo, assistindo ou ouvindo no momento?
Eu estou lendo e jogando duas narrativas muito interessantes. A leitura é uma trilogia divertidíssima chamada The Locked Tomb, de Tamsyn Muir, sobre necromantes espaciais, e tem sido ótima para me tirar deste mundo maluco em que estamos. É tipo uma mistura entre Blade Runner e algo como Game of Thrones, mas mais gótico e bem pastelão, como se a autora não ligasse muito para a minha opinião. E o jogo, que eu vejo muito como narrativa também, é Disco Elysium, em que você é um policial alcoólatra que acorda com amnésia e precisa solucionar um assassinato. Ao mesmo tempo, você vai (re)descobrindo o mundo ao seu redor, em ruínas após uma revolução, mas bonito em sua decadência. O mundo fala com você através das coisas – você troca ideia com sua gravata, com sua empatia, com as pessoas. Eu também tenho ouvido muito o musical Cats, a versão de 1983. Por algum motivo eu adoro essa peça estranhíssima – talvez seja porque ela é tão insana que faz a realidade parecer mais tolerável -, e muitas das páginas de Isolamento foram finalizadas ao som de Memory.