Há dois eventos marcados para o lançamento da coletânea Cápsula – Uma Antologia em Homenagem a Akira. O primeiro, em Belo Horizonte, rola amanhã (12/12), a partir das 18h, na Polvilho Edições (Avenida Olegário Maciel, Centro). O segundo está marcado para a próxima sexta-feira (13/12), em São Paulo, a partir das 19h, na Casa Plana (R. Fradique Coutinho, 1139).
Editada pela quadrinista Ing Lee e pela designer Larissa Kamei, Cápsula é a primeira publicação do selo O Quiabo e teve como ponto de partida para sua criação a chegada de 2019, mesmo ano no qual é ambientado o clássico Akira.
A coletânea reúne HQs de nove autores (Amanda Miranda, Fernanda Garcia, Grazi Fonseca, Ing Lee, Marco Sem S, Monge Han, Nicholas Steinmetz, Paula Puipo e Taís Koshino), todas tendo como inspiração a trama, os temas e os personagens concebidos por Katsuhiro Otomo em sua obra-prima.
“Tendo em vista a importância da obra de Katsuhiro, o meu desejo de criar um tributo à ela já existia antes mesmo de 2019 chegar e ter sido o ano que foi – intenso e instável, seja micro ou macro-politicamente”, conta Ing Lee em papo por email com o blog.
Na conversa a seguir, Ing Lee e Larissa Kamei falam sobre o impacto de Akira em suas vidas, os principais atributos da obra de Katsuhiro Otomo, o diálogo entre o quadrinho e a nossa realidade cada vez mais distópica, o desenvolvimento de Cápsula e os planos futuros para selo O Quiabo. Papo massa, saca só:
“Enquanto no ocidente a radioatividade faz surgir super-heróis – a narrativa do vencedor -, em Akira surgem monstros e bombas que destroem cidades inteiras”
Vocês lembram da primeira vez que leram Akira? Vocês lembram das suas primeiras impressões sobre o quadrinho? O que mais impactou vocês nessa primeira leitura?
Ing Lee: Mesmo tendo sido uma cria da cultura pop japonesa, tendo acesso aos seus produtos culturais desde minha infância, que se passou nos anos 90 e início dos anos 2000, demorei muito a de fato ler/assistir Akira. Primeiro, vi a animação de Akira, provavelmente em 2014. Só depois em 2017 que peguei pra ler o mangá, aproveitando que tinha um e-reader que tinha uma leitura mais confortável, assim devorei ele inteiro em poucos dias. A minha primeira impressão foi a de como achei incrível perceber como a obra influenciou diversas outras que eu tinha visto/lido anteriormente e eram referências para mim, como Tekkonkinkreet, Neon Genesis Evangelion, Matrix e Blade Runner. Então, fiquei com essa sensação de ter finalmente acessado o cerne de todas essas coisas, o que me trouxe uma compreensão maior também do porquê Akira ser considerado um divisor de águas na história da cultura pop mundialmente. Isso certamente me instigou posteriormente a buscar entender melhor os desdobramentos de sua influência e toda a simbologia que carrega.
Larissa Kamei: Com certeza nos meados da minha adolescência, e lembro de ter lido a versão impressa (claro). Ainda acho uma das melhores referências visuais já criadas e de influência imensa.
Qual vocês consideram o maior mérito do Katsuhiro Otomo em Akira?
Ing Lee: Akira não apenas escancara as feridas do trauma da bomba atômica de uma forma distópica, executando uma repetição de uma história que aterroriza a sociedade japonesa, como também traz a possibilidade de reconstrução, mesmo após a destruição completa – tal qual a sequência após a derrota da 2ª Guerra Mundial, que levou o Japão a se reconstruir por meio desses escombros. Desta forma, Katsuhiro consegue sintetizar um inconsciente coletivo do Japão pós-guerra, com seus destroços e sequelas sociais, políticas e econômicas; que para além de uma representação daquele período, levanta questionamentos que só ganham ainda mais relevância com o passar dos anos.
“A ideia era que cada um produzisse uma HQ experimental, tendo Akira como inspiração, mas não sendo necessariamente no mesmo universo”
Qual o impacto de Akira na sua vida como autora/editora de quadrinhos?
Ing Lee: Como uma quadrinista que se propõe a criar histórias urbanas, a construção dos cenários de Akira sem dúvidas me influencia bastante, com seus recursos de iluminação e movimento. Gosto da ambiguidade presente na narrativa de Akira, como forças do “bem versus mal” são imprecisas e variáveis, não há um herói que salva o dia nem a demarcação de um vilão propriamente dito, mas sim inúmeras zonas cinzas, camadas de complexidade na construção de cada personagem e as situações que seguem fora de seu controle – imersos no presente de um futuro incerto.
Como editora, busco trazer histórias que precisam ser contadas antes que o mundo acabe. Acredito que há muita potência na produção de jovens artistas independentes que estão surgindo e quero proporcionar um espaço para que seja possível compartilhar visões dissidentes, tal como Katsuhiro faz em Akira ao trazer o sentimento nacional de uma sociedade fragmentada e que teme a radiação. Pois, enquanto no ocidente a radioatividade faz surgir super-heróis – a narrativa do vencedor -, em Akira surgem monstros e bombas que destroem cidades inteiras. Quero mostrar o que é estar do outro lado, à margem, e quais produções podem surgir a partir disso, sem necessariamente ser um panfleto político, mas simplesmente pelo ato de ocupar e disseminar os nossos trabalhos, com novos pontos de vista e maneiras de olhar o mundo, como um gesto de anúncio emancipatório e contra-hegemônico.
Larissa Kamei: O maior impacto certamente sempre foi a construção visual narrativa da história. Acho uma referência incrível para várias áreas e que tem uma influência significante.
Como surge a ideia da coletânea Cápsula?
Ing Lee: A coletânea surgiu com a premissa de pegar o timing do ano de 2019, que é justamente o ano em que se passa a história de Akira. Tendo em vista a importância da obra de Katsuhiro, o meu desejo de criar um tributo à ela já existia antes mesmo de 2019 chegar e ter sido o ano que foi – intenso e instável, seja micro ou macro-politicamente. Unindo isso à outra vontade de tocar novos projetos junto com a Kamei, criamos juntas O Quiabo e fizemos do Cápsula a nossa estréia enquanto selo editorial.
Larissa Kamei: Principalmente devido ao ano; não somente a data, acredito, mas todo o contexto que cada vez mais estamos experienciando como um todo e como podemos traçar um paralelo com Akira.
“Fiquei realmente surpresa em como foi possível estabelecer uma narrativa ligando pontos em comum, mesmo tendo premissas e vindo de lugares bem distintos”
Como vocês chegaram aos nomes dos autores que compõem a coletânea Cápsula?
Ing Lee: Reunimos nomes de artistas que têm em seus trabalhos a influência de Akira e que também gostaríamos de trabalhar com – ou já havíamos trabalhado junto previamente. A seleção foi feita por meio de convites. Daí chegamos ao número de 10 artistas, só que no fim o Jão acabou tendo imprevistos e não conseguiu dar conta, e aí ficamos com nove autores, sendo eles: Amanda Miranda, Fernanda Garcia, Grazi Fonseca, Ing Lee (eu, hehe), marco sem s, Monge Han, Nicholas Steinmetz, Puiupo e Taís Koshino.
Vocês conseguem fazer um comparativo entre o que imaginavam que essa obra poderia ser e a versão que acabou sendo impressa?
Ing Lee: Em nossa proposta editorial, demos bastante liberdade criativa para os artistas e enfatizamos a individualidade de cada um. A ideia era que cada um produzisse uma HQ experimental, tendo Akira como inspiração, mas não sendo necessariamente no mesmo universo, com os mesmos personagens ou uma mera extensão daquilo. As limitações eram basicamente de cores (preto e vermelho) e páginas. Perguntamos pra cada um a quantidade de páginas que dariam conta de fazer durante o período de produção, fechando numa variação de 4, 6, 8 e 10 páginas para cada história. Eu e Kamei acompanhamos os artistas, uns mais e outros menos, tentando intervir o mínimo possível em seu processo criativo e respeitando o ritmo próprio de cada um dentro do prazo estabelecido.
Creio que por toda essa abertura, ficou meio vago sobre o que poderia ser. A ideia de experimentação foi realmente levada a sério nisso, hahaha. E os resultados finais me agradaram bastante, então posso dizer que foram experimentos de sucesso!
Larissa Kamei: Sempre existem expectativas em relação como será a narrativa, mas acredito que as narrativas dos artistas cumpriram com todas essas e me surpreenderam também muitas vezes. O projeto gráfico em si sofreu muitas poucas alterações do que esperei ser o resultado final, o que também enxergo como ponto positivo da HQ.
“A abordagem de ciclos e transformação, de destruir para assim reconstruir, foi algo que permeou em todas as narrativas”
O que mais surpreendeu cada uma de vocês ao ver todos os trabalhos da Cápsula reunidos? Houve algum aspecto dessa coletânea que chamou mais atenção de vocês?
Ing Lee: Eu e Kamei decidimos que a ordem das histórias se daria pela forma que elas comunicavam entre si. Essa tarefa de “curadoria” ficou por minha conta e fiquei realmente surpresa em como foi possível estabelecer uma narrativa ligando pontos em comum, mesmo tendo premissas e vindo de lugares bem distintos, ainda foi possível criar uma comunicação harmônica entre elas. Quis começar pela história do Monge, “Energia Pura”, justamente pelo tom de abertura que ela possui. Aí depois fui conectando os pontos: seguindo pela Fernanda com o “Cápsulas Espertas”, de uma sociedade movida pela produtividade, que se liga com a narrativa dos personagens cabeça de cápsula de “Planos”, da Puiupo, e se desconstrói nas histórias de Grazi e marco, “2019” e “Sankofa” respectivamente, que têm um tom mais abstrato e solto. Tais explosões que se reintegram no “Labirinto” do Nicholas, retomando uma narrativa mais figurativa e trazendo os personagens de Akira. E na sequência final, vem Taís Koshino com “Para além da forma”, sobre fluxos e recomeços, que prossegue amanhecendo em “Que se exploda”, a minha HQ, e fechamos com o trágico fim de “Vertigem” de Amanda Miranda.
Gostei muito do que foi produzido e perceber a individualidade de cada um dos autores contida em suas respectivas histórias. Achei interessante como a abordagem de ciclos e transformação, de destruir para assim reconstruir, foi algo que permeou em todas as narrativas.
Larissa Kamei: A forma como todos autores encaram a obra de Katsuhiro Otomo da sua ótica. Acho fascinante ver o processo de cada um, suas similaridades, diferenças e ao mesmo tempo como conseguem adequar uma visão e uma inspiração para seu estilo de narrativa.
Eu gosto muito do texto de introdução para a coletânea, principalmente dos paralelos que a Ing Lee aponta entre a obra do Katsuhiro Otomo e o nosso presente. Até onde você veem esses paralelos indo? Digo, vocês são otimistas ou pessimistas? Vocês acham que podemos chegar em uma realidade tão trágica quanto aquela apresentada na HQ?
Ing Lee: Recentemente, apresentei algumas palestras e oficinas tendo como temática a cultura pop japonesa e suas origens, durante o festival Katsudo Shashin, que trazia as primeiras animações do Japão. Creio que acabou que muito do que foi estudado a respeito se ligava bastante com Akira, que é um sintoma cultural de todo esse contexto onde é inserido. Por isso, é essencial a compreensão da complexidade do pós-guerra e seus desdobramentos na sociedade nipônica. E para além de uma leitura dentro desse recorte, a distopia de Neo-Tokyo em Akira ainda traz convergências globais: civilizações em estado de crise, com o aumento da violência urbana e da força do discurso progressista pós-humano, seguidos de protestos e repressão militar… Questões que estão explodindo diante de nossos olhos neste ano de 2019. Às vezes, durante este ano, eu sinceramente me senti vivendo em diversos universos distópicos unidos juntos – e Akira é um deles. Fica difícil permanecer otimista diante de tudo isso, mas creio que não temos muita escolha a não ser resistir. Não há muita volta depois do estrago já feito, mas é preciso sempre termos um olhar para o passado, justamente pra entendermos o presente e sermos capazes de construir novos futuros.
Larissa Kamei: Vejo muitos paralelos com o nosso presente, porém tento me manter otimista. Acho que sempre é de suma importância a consciência da atualidade, porém não encará-la como fatídico.
“Acho que ainda existe uma certa carência no mercado gráfico de encarar os projetos com uma experiência gráfica, e que seja necessário acatar mais riscos”
O que vocês podem falar sobre o O Quiabo? Como o selo surge? Vocês já têm algum próximo projeto em vista?
Ing Lee: O Quiabo surge primeiramente da imensa compatibilidade e complementariedade dos nossos trabalhos, hahaha. Somos opostas como yin yang, embora tenhamos ritmos de trabalho similares – somos igualmente fritas! Porque a Kamei tem essa atuação mais técnica, da produção gráfica e design, enquanto eu não consigo nem fazer linhas retas… Brincadeiras à parte (hehe), acho que nossas linhas de trabalho se completam bastante. Ao unir o útil ao agradável, pela nossa amizade e o desejo de continuar trabalhando juntas (a Kamei é também produtora gráfica do Selo Pólvora), criamos O Quiabo. A nossa proposta enquanto dupla n’O Quiabo não se limita somente ao campo editorial, mas sim como um eixo de experimentação gráfica. Temos já alguns planos, mas ainda nada fechado e definido que possamos anunciar agora. Estamos tentando digerir a experiência do Cápsula antes de partir pra próxima, porque se não a gente acaba emendando direto em outro trabalho e precisamos de um respiro pra fechar todos esses ciclos que 2019 nos proporcionou. Porém, posso afirmar com toda certeza de que estamos nos programando pra lançar uma publicação nova pro FIQ 2020! Fiquem de olho 🙂
Larissa Kamei: O selo surge de uma vontade imensa de produzir, principalmente num viés mais experimental. Acho que ainda existe uma certa carência no mercado gráfico de encarar os projetos com uma experiência gráfica, e que seja necessário acatar mais riscos. Temos projetos em vista, principalmente pensando em formas editoriais que proponham ainda mais nossos objetivos.
Para encerrar: o que vocês veem de mais interessante sendo feito hoje no formato de histórias em quadrinhos?
Ing Lee: Acho que a experimentação gráfica por meio dos quadrinhos anda sendo muito interessante. A busca por formatos para além do usual, seja no próprio conteúdo, dos desenhos e histórias, como também as próprias publicações impressas, com outros métodos de impressão, encadernação e suportes, certamente é algo que me deixa muito empolgada. E tenho a impressão de que a cena quadrinística está se ampliando e sendo ocupada por uma gama diversa de pessoas, o que confere uma pluralidade de temáticas e estilos que tiram a gente da mesmice daquelas narrativas monopolizadas pelo mesmo tipo de gente (homens brancos cis e heterossexuais de classe média/alta). Acho que as próprias feiras gráficas têm tido um forte papel nisso, de não apenas selecionar artistas fora desse status quo, como também trazer propostas que acolhem diretamente essas produções vindas de corpos que estavam à margem dessa cena. Além disso, claro, os novos projetos editoriais que andam pipocando também vão ganhando espaço. Isso tudo se retroalimenta e vai oxigenando essa vanguarda dos quadrinhos, que tá efervescendo e desafiando essas distopias onde nos encontramos.
Larissa Kamei: Na minha opinião, gosto muito de ler narrativas pessoais, ou pelo menos que contenham o cunho do artista dentro de seus quadrinhos. Apesar de entender que é impossível produzir sem deixar rastros de pessoalidade, aprecio muito projetos que se aprofundam nisso. Entendo que a história em quadrinhos seja uma das formas mais pessoais de se contar uma narrativa por esse motivo, por isso minha imensa apreciação pelo gênero.