A segunda edição da revista Cavalo de Teta será lançada amanhã (3/11), no primeiro dia da Feira Des.Gráfica 2018, realizada no Museu da Imagem e do Som de São Paulo. A publicação é editada pelo quadrinista João Pinheiro e conta com HQs de autoria dele e outros quatro artistas: Alves, Diego Gerlach, MZK e Schiavon. Autor de obras como Keuroac, Burroughs e Carolina (em parceria com Sirlene Barbosa) e idealizador da Cavalo de Teta, João Pinheiro respondeu a algumas perguntas enviadas a ele sobre o desenvolvimento desse segundo número da revista e alguns dos temas abordados na publicação. A conversa ainda conta com a contribuição de Gerlach para duas perguntas.
Na entrevista, os artistas justificam o subtítulo ‘Edição Pós-Brasil’ na capa da revista, analisam causas e consequências da vitória de um presidente de extrema-direita nas eleições presidenciais brasileiras de 2018, cogitam possibilidades para o futuro da revista e refletem sobre o papel potencial das histórias em quadrinhos em tempos de reacionarismo aflorado. “A arte tem papel fundamental em tempos difíceis, tradicionalmente é quando o público mais corre atrás de entretenimento e reflexão em torno do caos cotidiano”, diz Gerlach. Saca só:
“Os 350 anos de escravidão deixaram traumas profundos na nossa alma e problemas estruturais na sociedade”
Vocês chamaram esse segundo número da Cavalo de Teta de ‘Edição pós-Brasil’. O que vocês querem dizer com esse subtítulo?
João Pinheiro: Quer dizer que venderam o Brasil. Que o Brasil, como nós conhecíamos, acabou de fato. Depois que a casa grande surtou e botou seus capatazes pra correr com os ‘escravizados’ de volta pra senzala à força, uma pá de ideia furada sobre o brasileiro foi pro saco (só pra quem ainda não sabia, claro): ‘Somos um povo miscigenado que convive harmoniosamente e não há racismo ou preconceito social’. Mentira. A maioria dos brasileiros não conhece cidadania e os 350 anos de escravidão deixaram traumas profundos na nossa alma e problemas estruturais na sociedade. Tivemos a oportunidade de olhar no espelho e o reflexo assustou muita gente. E depois, saímos da condição de país soberano e ‘democrático’ para uma nova colônia em apenas dois anos, pois pra a classe dominante, que tomou o poder à força em 2016, foda-se esse lance de soberania popular. Brasil? Pátria? Piada. Estão pouco se lixando pro povo. Na verdade, odeiam o povo. Se acham donos do país, são um punhado de gente, e são desde sempre entreguistas e predadores vorazes, escravagistas e mafiosos. Voltamos a ser a Terra de Vera Cruz, mas agora sob o julgo do imperialismo norte americano. Por isso pós-Brasil.
Você poderia me contar um pouco sobre a produção desse segundo número? Como foi a dinâmica do seu trabalho com o Alves, o Gerlach, o MZK e o Schiavon? Foi muito diferente do processo do primeiro número?
João Pinheiro: Mantemos um grupo de mensagens onde trocamos ideias e informações, mas cada um tem total liberdade para criar a partir do tema sugerido. Nosso papo é muito informal e no final das contas meu único trabalho e encher o saco dos manos com prazos e coordenar a finalização da revista. Nesse sentido, a Cavalo de Teta acaba sendo resultado de uma criação coletiva de fato. Preciso dizer que esses caras, meus cupinchas, são gênios da HQ nacional que admiro fanaticamente e a quem hoje tenho orgulho de chamar de amigos, e eles não dão ponto sem nó.
“A imagem da capa é uma extensão dessa ‘festa nacional’ que reúne os cidadãos de bem fascistas, membros do poder judiciário, batedores de panela com suas camisas da CBF, o sapo da Fiesp, a representação da justiça embriagada dançando no centro furando o boneco do ex-presidente Lula com sua espada enquanto tucanos voam livres ao redor de um Sérgio Moro gigante com chapéu de tio Sam”
Eu gostei muito da capa da revista. Me fale sobre ela, por favor? O que você quis retratar nessa arte?
João Pinheiro: A ideia da capa pintou quando vi as fotos de uma festa organizada pelo dono do Bahamas, Oscar Maroni, em comemoração ao decreto de prisão de Luiz Inácio Lula da Silva. Na foto, divulgada fartamente nas redes na época, o tipo, vestido de irmão metralha, subjuga uma mulher nua tapando sua boca com uma das mãos num gesto extremamente agressivo, em cima de um palco rodeado por marmanjos em êxtase engolindo suas bebida grátis (segundo a imprensa foram distribuídas 9.000 latas de cerveja); Acima dele, no palco montado em frente ao Bahamas, uma espécie de altar exibia as fotos dos juízes Cármen Lúcia, do STF, e Sérgio Moro, responsável pela Lava Jato. Toda aquela encenação me pareceu a iconografia do horror e um instantâneo do proto-fascismo que levantou o pescoço desde 2013 nos espaços públicos e que finalmente, hoje já sabemos, saiu vitorioso de todo esse processo fraudulento ‘elegendo’ um candidato abertamente fascista. A imagem da capa é uma extensão dessa ‘festa nacional’ que reúne os cidadãos de bem fascistas, membros do poder judiciário, batedores de panela com suas camisas da CBF, o sapo da Fiesp, a representação da justiça embriagada dançando no centro furando o boneco do ex-presidente Lula com sua espada enquanto tucanos voam livres ao redor de um Sérgio Moro gigante (estilo boneco de Olinda) com chapéu de tio Sam. Muita bebida, talheres chiques, milionários e um representante da fé ali no meio da muvuca. Obviamente a capa é muito mais suave e chega a ser ingênua perto da cena distópica do horror que a inspirou.
Algumas das HQs da Cavalo de Teta #2 tratam de possíveis causas e desdobramentos do contexto político em que estamos inseridos. Você vê algum ponto de origem fundamental pra essa nossa realidade atual? E o que você imagina para o nosso futuro?
João Pinheiro: É complexo, mas acredito na tese de que a guinada à extrema direita no Brasil, mas que também está ocorrendo em vários outros países, segue a agenda imposta pelo sistema financeiro global centrado em Wall Street – que domina virtualmente o Ocidente inteiro – e não podia simplesmente aceitar a soberania nacional, em sua completa expressão, de um ator regional da importância do Brasil. Segundo essa tese, a ofensiva começa a ser posta em prática já em 2006 e se acentua a partir da crise financeira internacional de 2008 que arrasou a economia mundial. Como dizem: siga o dinheiro. Daí, para implementar as tais reformas (fiscal e tributária) exigidas pelo mercado foi preciso destruir a nossa já falha democracia com o auxílio de agentes internos que pudessem ser corrompidos, começando pelo sistema judiciário e legislativo aliados aos barões da mídia – que incapazes de apresentar um projeto para o país, haviam sido derrotados em quatro eleições consecutivas. Estamos no meio de uma guerra com o imperialismo e até agora estamos levando um cacete daqueles.
Ninguém consegue prever ao certo o que vai acontecer, mas acho que a possibilidade de um golpe militar aberto não pode ser descartada. Além disso, alguns economistas preveem uma nova crise financeira mundial a estourar a partir do ano que vem e parece que a tomada das riquezas naturais brasileiras (petróleo, Aquífero Guarani, Amazônia, minério e etc) são fundamentais no fechamento das contas do dito mercado e principalmente para salvar a economia norte americana.
Diego Gerlach: O começo do nosso fundo do poço foi em Junho de 2013, quando a insatisfação com a crise econômica que se anunciava explodiu, usando o reajuste dos preços das passagens de ônibus como fagulha, o que iniciou uma série de protestos violentos que, além de explicitarem uma insatisfação até então não-articulada, geraram um efeito dominó de equívocos, que enfraqueceu a base do governo e abriu espaço amplo para o populismo de direita. No Brasil, a bomba caiu no colo do PT (envolvido numa série de escândalos de corrupção que receberam incessante cobertura midiática), mas o bom-senso indica que poderia ter sido qualquer outro partido. Junho de 2013 começou a terminar quando foi divulgado o resultado das eleições de domingo passado.
A minha HQ pra CdT2 se situa num hipotético futuro pós-apocalíptico no Planalto Central. No meu caso, a eleição do Bolsonaro figura como detalhe quase incidental na história (o foco principal da HQ é meu asco em relação a religiões organizadas), era algo que já estava no ar fazia algum tempo, mesmo que eu (e quase metade dos eleitores do Brasil) tenhamos feito o possível pra evitar que isso acontecesse. Brexit me surpreendeu (e olha que vivi na Inglaterra por quase três anos na década passada). Já a eleição de Trump nem tanto. E isso porque pouco antes das eleições americanas de 2016 assisti Hypernormalization, documentário político do inglês Adam Curtis, que parecia também já ter captado as cataclísmicas mudanças em andamento e deixava no ar a provável eleição do POTUS twitteiro. Acho Hypernormalization e também o livro Capitalist Realism, de Mark Fischer, fundamentais pra entender o momento atual do ocidente. Em comum, as duas obras explicam onde as esquerdas se perderam (e onde podem se reinventar), e o imenso preço que o capitalismo avançado (onde corporações são mais poderosas que qualquer estadista, e líderes só se veem capazes de inspirar as massas ao propor mudanças radicais e em grande medida irrealizáveis) cobra da nossa psique e do tecido social como um todo, nos conduzindo aos atuais momentos de crise.
E, no momento, não há consenso na esquerda. Dentro da própria CdT2, tivemos discussões muito interessantes, mas que não apontavam necessariamente para uma concordância plena, apenas um apaziguamento em torno de objetivos imediatos (impedir o avanço do fascismo).
Qual você acredita ser o potencial das histórias em quadrinhos dentro desse contexto de conservadorismo aflorado em que estamos afundando?
João Pinheiro: Vejo como potencial pólo de resistência cultural, mas infelizmente ainda com muito pouco alcance. Por outro lado, os chargistas, na minha opinião, são o que há de melhor da crítica política feita nesse último período.
Diego Gerlach: A arte tem papel fundamental em tempos difíceis, tradicionalmente é quando o público mais corre atrás de entretenimento e reflexão em torno do caos cotidiano. Só espero que reste alguém disposto a ler, e a que as ameaças de censura que pairam no ar não se confirmem. Porque se elas se confirmarem, nós vamos ter que intensificar o foco ainda mais, rir ainda mais do meme perigoso que nosso país optou por eleger.
Qual é o futuro da Cavalo de Teta? Vocês já têm planos para uma terceira edição?
João Pinheiro: Sim, temos e se possível gostaria de ampliar a revista convidando outros autores a participar. Porque o Brasil pode acabar, mas os quadrinhos não.