Papo com Juscelino Neco, autor de Em Perfeito Estado: “Sempre dou um jeito de transformar minhas obsessões em um gibi”

Entrevistei o quadrinista Juscelino Neco para escrever a quinta edição da minha coluna para o blog da editora Veneta. O foco do papo foi em Em Perfeito Estado, novo álbum de Neco, o primeiro desde Reanimator (2020). Como o próprio autor me disse na nossa conversa, Em Perfeito Estado é o trabalho mais experimental dele até hoje – e também o mais erótico. A HQ mostra o envolvimento do dono de um antiquário com a obsessão de um cliente por obras pornográficas. Leia o meu texto aqui.

Compartilho agora a íntegra da minha entrevista com Juscelino Neco. Conversamos sobre a proposta experimental do álbum, o uso de técnicas digitais de ilustração, a relação entre texto e imagem e muito mais. Papo massa. Saca só:



Arte de Em Perfeito Estado, de Juscelino Neco (divulgação)

Você é ou já foi colecionador em algum momento da sua vida? Qual é a sua relação com coleções? Sebos e antiquários, são ambientes familiares para você?

Eu já colecionei muita coisa, principalmente gibi, discos, brinquedos, revistas e videogames antigos. Ainda tenho uma boa coleção, mas a questão de espaço tem me feito repensar algumas coisas. Recentemente me desfiz dos meus discos, por exemplo. Mas os sebos continuam sendo uma segunda casa pra mim. Adoro essa coisa do garimpo, da bagunça, de descobrir novidades antigas. Faço o circuito dos sebos em Natal pelo menos uma vez por semana e sempre consigo encontrar algo bacana. Meu último achado foi Realistic Illustration in Japan, que comprei pela bagatela de 25 reais. É impossível não gostar de sebo.

O protagonista do livro diz no começo: “o colecionador típico é uma mistura de partes iguais de avareza e ganância”. Ele também classifica colecionadores como “as criaturas mais perturbadas e desagradáveis que a seleção natural criou”. Você tá no mundo dos quadrinhos há alguns anos, um meio marcado pela presença de grandes colecionadores. Quais as suas impressões sobre esse público específico de leitores de quadrinhos?

É meio perturbador os rumos que o mercado está tomando. Eu chego a achar engraçado o tratamento luxuoso e as edições caríssimas que tem saído de uns materiais bem meia boca. Eu nunca tive uma relação com quadrinhos nesse sentido de coleção, de complecionista. Acho que as únicas coleções que tenho completas são das revistas Animal e Chiclete com Banana, que já usei em pesquisas acadêmicas. De resto, eu só mantenho em casa os gibis que pretendo revisitar algum dia… Quanto ao colecionador típico, meu amigo Guilherme Luiz (da camisetaria As Baratas) tem uma interpretação interessante: como nossa geração está fadada a não adquirir bens duráveis, como imóveis e veículos, colecionar porcaria se torna uma das poucas opções para se inserir no mercado de consumo. Acho que é por aí.

O Ciro Marcondes diz no prefácio do livro que “erotismo é o gênero mais difícil de se fazer em quadrinhos”. Você concorda?

Erotismo e terror são certamente os gêneros mais difíceis de trabalhar na linguagem dos quadrinhos. A literatura, quando aborda esses gêneros, se concentra no grande poder de sugestão da linguagem. Na capacidade do leitor de completar a obra e criar uma coisa que funcione pra ele. O cinema tem óbvios recursos que os quadrinhos não conseguem emular. Acredito que os quadrinhos que trabalham bem esses gêneros conseguem emular quase que um pacto fantasmagórico, onde as palavras e as imagens constroem uma ausência, um elemento que nunca está verdadeiramente presente nos elementos materiais da narrativa. Acho que é isso que torna os quadrinhos tão interessantes, é uma linguagem consolidada mas que a todo momento se renova e, não raramente, parece se converter em seu oposto. Falando especificamente de Em Perfeito Estado, considero que é uma obra erótica num sentido muito batailleano, na articulação dos impulsos sexuais com algo muito destrutivo.

“Tem me interessado muito esse conceito de contar histórias com elementos inanimados”

Página de Em Perfeito Estado, de Juscelino Neco (divulgação)

Você pode contar, por favor, um pouco sobre as origens de Em Perfeito Estado? Houve algum ponto de partida em particular para esse trabalho?

Ainda na pandemia eu comecei a migrar pro digital e sempre fazia exercícios de desenho utilizando fotografias antigas. Pouco a pouco meu interesse foi se concentrando em pornografia vintage, que eu sempre colecionei. O garimpo dessas revista e publicações foi o estopim da ideia do livro. Isso e meu interesse por misticismo. Acho que eu sempre dou um jeito de transformar minhas obsessões em um gibi. Todos os meus livros tem essa toada: filmes B, serial killers, Lovecraft… Em termos de referências para essa obra em específico, acho que é muito marcada por Suehiro Maruo e Clive Barker. 

Também é um livro que destoa bastante dos seus trabalhos prévios em termos estéticos. Talvez o maior diálogo dele seja com seu Ugrito. Como você chegou nesse formato/nessa linguagem de Em Perfeito Estado?

Depois do Reanimator eu comecei a trabalhar num roteiro de um quadrinho mais convencional e percebi que eu estava me repetindo. Não sei se dá pra falar propriamente em estilo, mas eu certamente criei uma fórmula e já estava muito confortável dentro dela. Fazia um tempo em que eu queria fazer um quadrinho “experimental”, seja lá o que isso signifique. Ao mesmo tempo eu me impus o desafio de criar um quadrinho que fosse experimental na forma mas que contasse uma história tradicional e que fosse interessante para o público (ou pelo menos pra mim). De alguma forma é uma espécie de desenvolvimento do tipo de história que eu contei no meu Ugrito, mas com aspectos mais radicais, com a eliminação das personagens. Tem me interessado muito esse conceito de contar histórias com elementos inanimados. Tenho outros projetos nesse sentido.

Página de Em Perfeito Estado, de Juscelino Neco (divulgação)

E você pode contar um pouco sobre a sua dinâmica de trabalho? Você chegou a fechar o texto inteiro antes de começar a desenhar?

Eu sempre escrevo todo o roteiro antes de começar. Como eu tinha passado muito tempo pensando no tipo de narrativa que queria fazer, escrevi tudo em pouco mais de um mês. Acho que a única coisa no meu método de trabalho que diferiu um pouco do habitual é que eu fiz um trabalho de campo. Lembrei que sou jornalista e fui no Mercado de Petrópolis conversar e visitar uns antiquários. Isso influenciou muito na construção do protagonista. Esse pessoal de antiquário é bem curioso, pra falar o mínimo. Esse também é um trabalho muito inserido na cidade de Natal, os lugares citados e as referências são todas reais.

Ao contrário da arte cheia de hachuras do Reanimator, dessa vez você investiu em desenhos muito mais limpos. Por que essa opção? E com quais materiais você trabalhou?

Como eu trabalhei decupando fotografias, achei que uma síntese de um desenho mais limpo, com linhas finas e tons de cinza funcionaria melhor. Acho que combina também com as ilustrações eróticas, porque remete a um certo estilo de desenho mais antigo, dos anos 50, pin-ups e coisa do tipo. Esse foi o primeiro gibi que eu fiz digitalmente.

Por que migrar para o digital?

A única vantagem do analógico é que o artista produz uma arte original que pode ser comercializada. Fora isso, o digital é um processo muito mais rápido, prático e, por incrível que pareça, barato. Acho que a melhor analogia para entender a diferença na produção analógica e digital é pensar nas diferenças entre a velha máquina de escrever e um software de processamento de texto. Um monte de trabalho chato é eliminado. Se eu pensar, por exemplo, na carga de trabalho que eu tenho como professor, certamente não teria conseguido conciliar a produção desse livro com minhas atividades acadêmicas. Ou teria demorado ainda mais tempo pra sair um livro novo. E olhe que faz quatro anos que o Reanimator foi lançado…

“Tento fazer o texto mais simples possível”

Página de Em Perfeito Estado, de Juscelino Neco (divulgação)

Você também pode falar sobre sua relação com o texto? Achei ele particularmente inspirado nesse livro. Como foi a sua dinâmica com o texto na produção de Em Perfeito Estado?

Tento fazer o texto mais simples possível, acho que as imagens devem ser o mais importante em um gibi. Também é fácil cair naquela cilada do pleonasmo, de falar a mesma coisa com as imagens e o texto. Mas nesse caso específico a relação entre as imagens e o texto acontecem em outro nível, elas se relacionam em uma relação de complementaridade que é muito mais livre. Então eu me senti mais livre para burilar melhor o texto e suscitar, com as palavras, imagens diversas das que estão representadas. Em Em Perfeito Estado o texto e as imagens trabalham numa relação de complementaridade mas também de contradição.

Lá em 2020, você me disse que seus trabalhos em Reanimator foi uma espécie de Vietnã pessoal. E como foi a produção de Em Perfeito Estado? Foi de alguma forma mais tranquila que Reanimator?

Em Perfeito Estado teve uma concepção um pouco diferente. Normalmente eu consigo bolar a história com relativa facilidade e depois o trabalho mesmo é desenhar tudo aqui. Nessa HQ foi um pouco um inverso, eu passei muito tempo patinando, buscando um formato, uma estrutura, enfim, um de contar essa história da forma como eu queria. Uma vez que eu resolvi isso, tudo ocorreu surpreendentemente bem. Acho que não demorei nem um ano entre a escrita do roteiro e a finalização do gibi.

Eu gostei muito dos seus desenhos, achei seu texto incrível, mas considero o maior mérito do livro a condução da história. Acho a costura que você criou brilhante, ela conduz para um final… Épico? Enfim, você sempre soube onde queria chegar com esse livro? O final sempre esteve resolvido na sua cabeça?

Como eu falei antes, eu tenho muito interesse em misticismo. Aliás, falando em termos claros, eu me interesso por magia. Thelema, Magia do Caos, Umbanda, Tarot, Cabala, gosto muito de tudo isso. Então eu concebi essa história muito como uma espécie de relato de uma iniciação. Em certos sentidos, Em Perfeito Estado tem até mesmo uma pegada gnóstica, já que o mundo cotidiano e a própria percepção da realidade se mostra falsa e enganosa quando essa outra realidade se desvela.

Página de Em Perfeito Estado, de Juscelino Neco (divulgação)

É engraçado, Em Perfeito Estado talvez seja o seu trabalho mais explícito, principalmente em relação a sexo. Ao mesmo tempo, também não deixa de ser seu trabalho mais implícito, não vemos os rostos dos personagens, por exemplo. Enfim, como foi para você essa administração do que mostrar e do que deixar oculto? 

É estranho isso, né? Um livro que tem imagens de pornografia explicita contar uma história que, no fim das contas, não está presente nessas imagens. Acho que isso nos lembra que os quadrinhos são infinitos em suas possibilidades formais… Nesse jogo de mostrar e esconder, eu tentei ilustrar a deterioração mental do protagonista. No fim das contas não sei nem explicar como deu certo. É um mistério.

Na nossa última entrevista, em 2020, te perguntei se você era otimista. Você me respondeu dizendo que acreditava “que o universo é um lugar completamente sem sentido e todas as coisas da vida são sem importância”. Mas, como você estava para ser pai, disse que tentava não nutrir esses pensamentos. Quatro anos e dois filhos depois, você segue com a mesma crença?

Os filhos realmente mudam a gente, mas acho que nunca da forma que esperamos. Parece que a gente vive tudo de novo com eles, mas não tenho lá muita certeza se quero viver minha vida novamente. Enfim, a repetição eterna é uma das definições clássicas do que é o inferno, né? O que resta é tentar imaginar Sísifo feliz.

Você pode recomendar algo que tenha visto, lido ou ouvido recentemente?

Li Saboroso Cadáver esses dias. Não curto muito literatura de terror, mas esse me impressionou bastante. Basicamente é uma distopia onde seres humanos são criados como gado. Canibalismo também é uma dessas minhas obsessões.

Capa de Em Perfeito Estado, de Juscelino Neco (divulgação)
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Ramon Vitral

Meu nome é Ramon Vitral, sou jornalista e nasci em Juiz de Fora (MG). Edito o Vitralizado desde 2012 e sou autor do livro Vitralizado - HQs e o Mundo, publicado pela editora MMarte.

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