Escrevi na 11ª edição da Sarjeta, minha coluna sobre histórias em quadrinhos no site do Instituto Itaú Cultural, sobre Reanimator, obra do quadrinista Juscelino Neco livremente inspirada tanto no conto Herbert West-Reanimator, de H.P. Lovecraft (1890-1937), quanto no longa Re-Animator: A Hora dos Mortos-Vivos (1985), do diretor Stuart Gordon.
Neco é um dos meus quadrinistas preferidos. Autor da surtada Parafusos, Zumbis e Monstros do Espaço (2013), da intensa Matadouro de Unicórnios (2016) e da tensa Cadeado (2017), ele tem em Reanimator seu trabalho mais bruto e brusco.
Recomendo a leitura da Sarjeta, feita a partir de uma entrevista com Juscelino Neco, para você saber um pouco mais sobre os bastidores e o desenvolvimento de Reanimator. Também recomendo que você não deixe passar a HQ. Depois, volte aqui e leia a íntegra da minha entrevista com o quadrinista. Papo bom, saca só:
“Acredito que consegui levar a coisa toda para um novo nível de infâmia”
Queria começar sabendo como você está. Como andam as coisas por aí? Como a pandemia afetou a sua rotina?
No geral, está tudo bem. Na normalidade que o apocalipse permite. Como sou professor, boa parte das minhas atividades estão paralisadas. Tem um lado bom, já que estou conseguindo colocar a leitura em dia. Mas sinto falta da rotina e, nunca pensei que diria isso, dos alunos também. Fora isso, não perdi nenhum amigo ou familiar. Nesses dias que correm, isso é um grande luxo.
Você pode contar um pouco, por favor, sobre a sua relação com Lovecraft? Você lembra da primeira vez que assistiu ao filme Re-Animator? Quando você viu o filme, já sabia quem era Lovecraft?
Como eu sempre gosto de lembrar, os anos 90 eram tempos selvagens. Passava filmes como Fome Animal e O Último Americano Virgem no meio da tarde. Foi numa dessas que assisti o Re-Animator. Devia ter coisa de 8, 9 anos. Não tinha a menor ideia de quem era o Lovecraft, embora já conhecesse outros filmes com elementos das suas obras: Enigma do Outro Mundo, Uma Noite Alucinante… Bons tempos!
“Quem não leu o conto Herbert West – Re-Animator não perdeu porra nenhuma”
E qual foi o impacto tanto do filme quanto do conto na sua formação?
O filme teve um grande impacto, o conto eu li já adulto e não achei grandes coisas. Adoro a mistura de terror e humor que esse filme tem. Os efeitos são ótimos! A violência é maravilhosa. Até a continuação, A Noiva do Re-Animator, dirigido pelo Brian Yuzna, é sensacional. Tem muito a cara do terror dos anos 80, aquele mistura de transgressão, criatividade, baixo-orçamento e picaretagem. Fome Animal e Evil Dead, que tem uma pegada similar, também tiveram muito impacto sobre minha formação.
Já li que o Lovecraft criou Reanimator a partir do Frankenstein, da Mary Shelley. Eu nunca li o livro do Lovecraft, mas Frankenstein é um dos livros de terror mais impactantes que já li. O que mais te interessa em obras de terror? O que você considera mais fundamental para uma boa história de terror?
Quem não leu o conto Herbert West – Re-Animator não perdeu nada, nem porra nenhuma. É uma história bem boba e mal escrita, até pros padrões do Lovecraft. Claramente é inspirado no Frankenstein e até os personagens, aqueles médicos idealistas que querem vencer a morte, se parecem. Mas a história da Mary Shelley é bem mais sofisticada, tem aquela coisa de vingança, de embate, aquelas paixões e ódios intenso, uma coisa maravilhosa. O conto do Lovecraft é um pastiche safado, coisa de começo de carreira. Até o Lovecraft achar seu ‘estilo’, vamos chamar assim na falta de uma palavra melhor, ele fazia muito pastiche de outros escritores, principalmente Edgar Allan Poe. Agora, finalmente, respondendo a sua pergunta, muitas coisas me interessam numa história de terror, a depender da mídia. Tenho muita dificuldade em me engajar em literatura de terror. Gosto de pouquíssima coisa, mas gosto de tudo que li Clive Barker. É muito interessante quando o escritor consegue tratar de uma temática sobrenatural com um estilo limpo e direto. No cinema, me interesso por muitos aspectos, principalmente a atmosfera do filme, essa impressão de estranheza que filmes como Hereditário conseguem passar. Mas sou capaz de assistir um filme de terror só pra ver os efeitos de maquiagem e a criatividade com que as pessoas são assassinadas. Assisto Sexta-Feira 13 apenas pra isso. E o que eu considero essencial para que uma história de terror funcione é a capacidade do autor em criar um conceito novo que trabalhe os medos da mente humana. O medo é uma emoção processada pela parte mais primitiva do nosso cérebro e compartilhada pelo humano de todos os tempos. É universal. Se considerarmos os primeiros rituais fúnebres, dá pra perceber que temos medo dos mortos desde sempre. Por isso que histórias de vampiros e mortos-vivos têm tanto apelo e sempre se renovam.
“Todos os meus quadrinhos trabalham com essa mistura que os estadunidenses chamam de horror-comedy. Em bom português, terrir”
Você vê alguma desafio particular para terror funcionar como HQ?
Existe um desafio fundamental em fazer um quadrinho de terror porque boa parte do poder de sugestão da literatura é eliminado. Cada pessoa imagina o Drácula, por exemplo, de uma forma especifica. As cenas de horror que o Lovecraft descreve são sempre melhores na imaginação do leitor do que em qualquer imagem, por mais talentoso que seja o desenhista. Da mesma forma, os quadrinhos carecem dos processos de imersão e realismo que o dispositivo do cinema consegue proporcionar. Você vê um filme de terror e logo percebe que a música tem um papel central. O diretor consegue manipular as emoções da audiência com um jump scare, as cenas de violência conseguem chocar de forma convincente, a atuação funciona como um índice de reconhecimento para que espectador se engaje. Enfim, nada disso funciona nos quadrinhos. Considero que o terror nos quadrinhos são um processo muito mais cerebral, que causa um desconforto quando o leitor reflete acerca da natureza do que está sendo narrado.
Qual foi o ponto de partida desse quadrinho novo? Por que adaptar Reanimator? Aliás, você vê esse quadrinho mais como uma adaptação do livro do Lovecraft ou do filme do Stuart Gordon?
O filme do Gordon sempre foi uma grande influência no meu trabalho, já que mistura elementos de terror e humor. Todos os meus quadrinhos trabalham com essa mistura que os estadunidenses chamam de horror-comedy. Em bom português, terrir. Sendo bem sincero eu acho esse conto do Lovecraft uma merda. Foi publicado originalmente em 1922, então é uma história de quase 100 anos que envelheceu tão bem quando um viciado em heroína. É interessante porque é uma das primeiras histórias de zumbis. Fora isso, não vejo muito valor… Há quem diga que esse conto tem um certo tom de paródia. Não consigo enxergar isso. Não consigo enxergar Lovecraft fazendo qualquer coisa que tenha o menor traço de humor ou jocosidade. Ele tinha uma grande imaginação, mas não acredito que tenha contado uma piada em toda a sua vida…Quanto à adaptação, acho que ela se aproxima mais do filme, já que tem muito sexo e violência. Mas acredito que consegui levar a coisa toda para um novo nível de infâmia.
“Lovecraft virou uma bolha gigante“
Eu tenho a impressão de uma comoção recente em torno da obra do Lovecraft. Você também nota isso? Você vê algum motivo em particular para esse interesse crescente em torno do trabalho dele?
Certamente. Lovecraft virou uma bolha gigante. Vejo edições luxuosas do trabalho dele, adaptações para quadrinhos, cinema. Acho que boa parte desse sucesso se deve ao fato de que as obras do Lovecraft caíram em domínio publico, então todo mundo quer tirar uma lasquinha. Outro aspecto é o Lovecraft criou uma metanarrativa que funciona bem. É quase que como o Tolkien, tudo é amarradinho, aquela coisa dos grandes antigos, terror cósmico, mitos do Cthulhu. A impressão que eu tenho é que o jovem artista lê aquilo e quer fazer uma coisa dentro daquele universo. É quase como criar uma aventura de RPG dentro de um sistema. Como eu gosto de falar mal dos colegas não perco a oportunidade: os resultados são sofríveis.
Você tem alguma adaptação ou reinterpretação preferida para o trabalho do Lovrecraft?
Sim, um filme do John Carpenter chamado À Beira da Loucura (In The Mouth of Madness, 1994). É a história de um escritor que vai parar numa cidadezinha onde tem de tudo de ruim e Lovecraftiano. Não é a adaptação de nenhuma história, mas tem muitos elementos das narrativas daquela racista safado.
Acho que um mérito desse seu Reanimator é funcionar sozinho e não depender da obra do Lovecraft para ser compreendido e divertir. Você teve alguma preocupação em particular para ser mais ou menos fiel ao filme e ao livro?
Nenhuma. Peguei só a premissa, que é mais simples que fazer um ‘o’ com uma quenga: um cientista inventa um soro que ressuscita os mortos e se mete em altas confusões. O resto eu inventei.
“Gosto de pensar que faço um tipo de quadrinhos muito simples, direto, sem firula”
Por que a opção pelo antropomorfismo na HQ? Acho que o caso mais famoso de antropomorfismo em quadrinhos é Maus e ali tá bem explícito como foi um artifício para ressaltar a relação entre oprimidos e opressores. No caso desse seu Re-Animator, fiquei pensando no aspecto animalesco e selvagem das ações dos personagens. Era essa a sua intenção?
Na verdade, não. Eu acho que desenhar quadrinhos é uma atividade muito entediante, então começo a inventar coisa pra me divertir um pouco. Meus quadrinhos também tem um elemento de autoreferencialidade muito presente. Gosto de pensar que faço um tipo de quadrinhos muito simples, direto, sem firula. Como os quadrinhos antigos. Então minha intenção foi buscar dentro da tradição dos quadrinhos um estilo que se adequasse ao tipo de história que eu queria contar. Achei que a desconstrução do gênero dos funny animals, perpetrado por autores como Robert Crumb e Mattioli, seria um bom caminho. Além disso, acho que esse quadrinhos tem as cenas mais grotescas que eu já desenhei. Se não fosse o antropomorfismo, essas imagens teriam outro sentido, se afastando muito do tom de humor negro que eu quis imprimir.
Falando em Maus, como você avalia essa opção do Art Spiegelman pelo antropomorfismo? Você já leu essa carta que o Harvey Pekar publicou em uma edição do Comics Journal questionado essa escolha? Ele diz ser uma metáfora “rasa e óbvia, sem sentido”.
Concordo com o Pekar: a história curta que antecede Maus funciona melhor num nível simbólico. Essa história é uma fábula, os animais encarnam tipos ao estilo do La Fontaine. Já o Maus que saiu em formato de livro se insere na tradição dos funny animals. Enquanto processo metafórico é realmente um pouco raso, mas acho que funciona muito bem como índice de reconhecimento dos personagens. Ele facilita o processo de leitura a partir da simplificação das formas e permite que a ação seja encenada de forma mais clara. Em sua essência, Maus é um quadrinhos clássico: simples, limpo, de fácil leitura. Se um dia você você estiver lendo um quadrinho e tiver a mínima dificuldade de entender a ação que está sendo encenada, jogue-o fora. Esse é um quadrinho bosta.
“Reanimator foi feito à moda antiga, com muito nanquim em papel Canson A3”
Fiquei com a impressão desse trabalho seu estar mais “sujo”, ter mais hachuras, ser mais preto e branco e ter menos espaço para cinzas do que o Matadouro e o Parafusos. Faz sentido?
Sim. Em Matadouro e Parafusos eu utilizei tons de cinza para estabelecer um pouco os volumes dos desenhos, nesse eu utilizei apenas hachuras. É bem decupado do estilo que o Crumb fazia em Fritz – The Cat.
Quais materiais você utilizou na produção desse trabalho novo? É tudo papel e tinta ou tem algum aspecto digital?
Recentemente migrei para o digital, mas Reanimator foi feito à moda antiga, com muito nanquim em papel Canson A3.
“A produção de Reanimator realmente foi meu Vietnã”
Você pode contar um pouco sobre a produção dessa HQ? Foi quanto tempo entre o início desse projeto e o lançamento? Você chegou a finalizar um roteiro antes de dar início às ilustrações?
O roteiro de Reanimator foi finalizado no final de 2016 e, descontando uma pequena alteração na sequência final, se manteve o mesmo até agora. Eu só consigo começar a desenhar depois que o roteiro está finalizado… A produção de Reanimator realmente foi meu Vietnã. Descartei umas duas versões iniciais e, durante todo o processo, muitas vezes tive certeza de que não ia conseguir terminar. Ou melhor, me sentia incapaz de terminar esse quadrinho. Foi um inferno. Ano passado pensei até em queimar tudo e deixar isso pra lá. Felizmente fui dissuadido dessa ideia pelos meus amiguinhos, os astros se alinharam e conseguir finalizar o quadrinho. Fico feliz por deixar o mundo mais estranho.
Houve alguma mudança em particular dos seus métodos de produção dos seus álbuns prévios para essa HQ nova?
Normalmente eu produzo meus quadrinhos num processo de guerrilha, reservo uns dois, três meses, e fico trabalhando 10 horas por dia. Desde que comecei a fazer o Reanimator minha atividades acadêmicas se intensificaram muito e eu não consigo mais tirar esse tempo de folga. Então tenho desenhando quando aparece um tempo. Férias, carnaval, essas coisas. Por isso demorou tanto. Eu não tenho disciplina pra trabalhar na HQ todo dia um pouquinho. Tenho que pensar como resolver isso, porque já estou com o roteiro da minha próxima história e não quero que demore quatro anos pra sair…
“Utilizei muita referência fotográfica da Nova York suja e perigosa do começo dos anos 80”
Acho esse Reanimator o seu trabalho mais bruto. Os personagens não tem muitas nuances, a história é bastante linear e é tudo voltado para expor absurdo e violência. Como foi a experiência de conceber e desenvolver esse livro? Que balanço você faz da criação dessa HQ?
Em Reanimator eu tentei revisitar o estilo e a estrutura de quadrinhos clássicos, onde os personagens não tem muita complexidade. Tudo é estruturado em função da trama e o ritmo é muito acelerado. Em termos de narrativa, eu tentei estabelecer uma trama que vai escalonando a bizarrice a níveis cada vez mais absurdos. Não posso negar que me diverti bastante desenhando as cenas, apesar dos percalços da produção. Em termos de narrativa visual, acho que é meu melhor trabalho. Utilizei muita referência fotográfica da Nova York suja e perigosa do começo dos anos 80 e fiquei bem feliz com o resultado. É quase como se o quadrinho se passasse no universo dos filmes que eu curtia quando criança, como The Warriors e O Assassino da Furadeira.
Você recentemente publicou um quadrinho com uma mensagem esperançosa em relação ao nosso futuro, apesar de todos os pesares que estamos vivendo. Você se considera uma pessoa otimista?
Eu sou uma pessoa que acredita que o universo é um lugar completamente sem sentido e todas as coisas da vida são sem importância. Mas, como vou ser pai daqui uns meses, tento não nutrir esses pensamentos.
“Ultimamente tenho desenhado num iPad, o que tem deixado minha vida mais fácil”
Você pode me falar como é seu ambiente de trabalho? Você poderia descrever o local no qual Reanimator foi criado?
Eu não tenho estúdio. Meu apartamento inteiro é um amontoado de livros e gibis. Tenho uma mesinha que uso pra tocar meu trabalho de professor e, quando vou desenhar, coloco as pilhas de livros e papeis no chão, limpo a mesa e coloco uma pranchetinha portátil. Ultimamente tenho desenhado num iPad, o que tem deixado minha vida mais fácil e permitido que eu desenhe no sofá. Espero conseguir acelerar o processo de produção dos quadrinhos com esse novo gadget.
Você poderia recomendar algo que esteja lendo, ouvindo ou assistindo no momento?
Do que li recentemente, recomendo O Mestre e a Margarida, do Mikahail Bulgákov. Uma das histórias mais inventivas, interessantes e absurdas que vi na vida. Colocar o diabo e sua trupe chegando na Moscou dos anos 1930 é coisa de gênio.