Segundo um censo da organização não governamental britânica Help Refugee, o campo de refugiados e migrantes da cidade francesa de Calais chegou a abrigar 8,143 pessoas com o objetivo de chegar ao Reino Unido via o porto do município francês ou pelo trajeto do túnel que percorre o Canal da Mancha. Desmantelado em outubro de 2016 e também conhecido como Selva de Calais, o campo é até hoje um dos principais símbolos da crise migratória mundial e foi classificado pela ONG internacional Human Rights Watch como “o inferno na terra”, por conta das condições precárias oferecidas aos seus moradores e dos abusos constantes por parte das autoridades francesas contra a população vivendo no local.
A quadrinista britânica Kate Evans narra em Refugiados – A Última Fronteira suas experiências como voluntária em Calais ao longo de três visitas feitas por ela ao campo entre outubro de 2015 e fevereiro de 2016. “Eu precisava mostrar às pessoas o que eu tinha visto”, conta a artista em entrevista ao blog sobre seu trabalho mais recente publicado em português – em 2017, a WMF Martins Fontes publicou Rosa Vermelha, projeto prévio da autora. A HQ recém-lançada no Brasil pela Darkside Books apresenta relatos colhidos por Evans durante suas idas ao campo e apresenta testemunhos de habitantes do local sobre seus dramas. As fontes da artista relatam as vidas que deixaram para trás e seus sonhos com uma possível nova vida em território britânico.
“O projeto neoliberal falhou e quando as pessoas se desesperam, o extremismo floresce”, diz Evans sobre suas interpretações em relação ao que teria dado errado na humanidade a ponto do surgimento de um ambiente como a Selva de Calais. Uma das vilãs do livro é inclusive a líder da extrema-direita francesa Marine Le Pen – aquela mesmo que criticou o candidato fascista à presidência brasileira Jair Bolsonaro, por dizer coisas “extremamente desagradáveis”. Refugiados é um livro necessário e didático. Um alerta em tempos de conservadorismo aflorado, de pouca empatia e de humanismo limitado. A seguir, papo com Kate Evans:
“Eu precisava mostrar às pessoas o que eu tinha visto”
Você lembra do momento em que teve a ideia de criar Refugiados?
Eu visitei Calais em outubro de 2015. Soube que iria fazer o quadrinho no minuto que eu visitei. Quando voltei para casa, tive que fazer. Eu precisava mostrar às pessoas o que eu tinha visto. Isso se tornou um post no meu blog, que depois se tornou o primeiro capítulo de Refugiados. Voltei ao acampamento mais duas vezes e percebi que tinha o suficiente para um livro.
Seu livro está sendo publicado no Brasil em um contexto de preconceitos aflorados contra minorias. Qual mensagem você espera que seus leitores tirem desse trabalho?
Que somos todos pessoas, que somos todos habitantes do mesmo planeta. Que não temos nada a temer, e temos tudo a ganhar com compaixão e cooperação. Que a construção de muros aprisiona todos nós.
Sobre esses mesmos preconceitos e essa crescente falta de empatia, o que você acha que está acontecendo com a humanidade? E por que agora?
O projeto neoliberal falhou. As mudanças climáticas estão começando a tornar partes do planeta inabitáveis. A riqueza está subindo em espiral para os bolsos do 1%. Quando as pessoas se desesperam, o extremismo floresce. Nas palavras de Rosa Luxemburgo, nos deparamos com uma escolha simples: ‘socialismo ou barbárie’.
Você é otimista em relação ao nosso futuro?
Eu estou sempre otimista. Tudo é político. Cada pequeno ato de bondade e união. Tudo conta.
Você considera seu trabalho em Refugiados como jornalismo de quadrinhos?
É reportagem em quadrinhos, que é um formato já consagrado. Eu não me considero jornalista, no entanto. Eu me considero um ativista, e minha primeira responsabilidade em uma situação de crise é tentar aliviá-la, participar dela, não ficar parado tentando ‘encontrar a história’. Jornalistas aspiram à objetividade, enquanto eu uso uma abordagem novelística para colocar em camadas eventos reais com representações emotivas, a fim de evocar sentimentos específicos no leitor. Eu também moldo o ritmo da narrativa ao longo do livro em um arco emocional mais amplo – conduzo o leitor em uma jornada. Então, nesses dois aspectos, meu trabalho está mais próximo de ser uma graphic novel do que um relato jornalístico. No entanto, é tudo verdade! Eu não inventei nada!
Você poderia me contar um pouco sobre como você definiu seu estilo em Refugiados? Seu outro livro publicado aqui no Brasil, Rosa Vermelha, apresenta uma arte muito diferente desse álbum mais recente, certo?
Eu acho que ele se definiu sozinho. Uma vez que descobri que Calais era uma cidade de rendeiras, eu tinha o ‘gancho’ visual para enquadrar o trabalho. Bordas de renda branca significavam que eu precisava de páginas coloridas e um efeito de colagem. Eu provavelmente sou mais inspirada pelo trabalho da Lynda Barry em One! Hundred! Demons!, bem como pelo trabalho de lápis colorido de Raymond Brigg.
Você poderia me contar um pouco sobre suas técnicas? Que tipo de material você usa?
Lápis de cor no papel. Todos os bordados eu incluí no Photoshop. Foi bom poder usar todos os meus enfeites de renda e pedaços de coisas de artesanato e em um trabalho pra valer, ao invés de coisinhas que faço para bebês com pedaços desses materiais.
“A hostilidade, o racismo e as visões reacionárias estão em ascensão, e em resposta, as pessoas sempre se levantam onde podem protestar, proteger e ajudar”
Você tem alguma curiosidade em relação à forma como o seu trabalho será lido e interpretado em um país tão diferente do seu, como o Brasil?
Eu fico interessada em saber o que as pessoas pensarão de mim, a narradora – na verdade, uma dona de casa inglesa de meia-idade com uma vida confortável que caiu no meio de uma catástrofe. Há uma distância crítica no livro em que me apresento como uma personagem um pouco ingênua. Você pode rir de mim por ser uma pessoa branca tola e privilegiada. Eu escrevi assim de propósito.
Há um elemento de Refugiados que é universal, em que todos nós estamos vendo migração, despossessão, desespero – em toda parte a hostilidade, o racismo e as visões reacionárias estão em ascensão, e em resposta, as pessoas sempre se levantam onde podem protestar, proteger e ajudar. E há uma mensagem forte em Refugiados com a qual todos podem se identificar, o poder do amor de uma mãe por seus filhos.