O álbum Damasco foi produzido ao longo de 10 anos pela dupla Lielson Zeni e Alexandre S. Lourenço. A obra recém-lançada pela editora Brasa é um dos quadrinhos mais inventivos e singulares publicados no Brasil em 2023. Conversei com os dois autores para escrever sobre o livro para o jornal Folha de S.Paulo. Você lê o meu texto clicando aqui. Compartilho agora a íntegra dessa conversa.
Zeni e Lourenço falaram sobre as origens e o desenvolvimento da HQ, o início da amizade dos dois na Universidade Federal do Paraná, a relação de ambos com religião, os interesses dos dois em relação à linguagem dos quadrinhos e muito mais. Papo massa, saca só:
“Depois de 10 anos bem espaçados, temos um livro”
Quero saber sobre o ponto de partida de Damasco. O livro da Brasa não é a primeira versão dessa história, certo? Qual a origem desse quadrinho? Quando vocês começaram a trabalhar nele?
LIELSON ZENI: Acho que o começo foi uma notícia que eu li, sobre um maluco da Austrália que resolveu “vender a vida”. Fiquei fascinado com a história. Adoro quando a realidade tira um sarro da ficção, sabe? Tipo isso: um cara acha que a vida dele tá ruim e resolveu repassar pra outra pessoa tudo que tem e recomeçar. Esse é o ponto inicial de tudo. Aí fiquei pensando que isso dava uma puta duma história e tal. Um pouco antes de te enviar essas respostas, lembrei que eu já tinha trabalhado num roteiro de curta de ficção da relação das pessoas com os objetos usados entre 2008 e 2009. Esse curta nunca foi produzido, mas foi na pesquisa pra ele que cheguei à iconografia de Paulo na estrada para Damasco e lá já tinha a ideia do relâmpago, que tinha a ver com meu interesse pela noção budista de iluminação com a história – depois, foi a partir desse ponto que pensei graficamente as cenas, que ela começaria com páginas pretas e terminaria com uma série de páginas brancas e aquilo que é o começo da história, a sacada que o personagem tem, era o fecho. Foi ali que soube que era melhor fazer quadrinho. Toda essa sequência mudou com o passar do tempo, em nome da INTELIGIBILIDADE da história. Pela minha memória, quando entendi que essa trama seria um bom quadrinho que escrevi pro Alexandre e perguntei se ele teria interesse em desenhar o roteiro de alguém. Espertinho que só, ele já leu as entrelinhas e respondeu que se fosse um roteiro meu, ele topava. Depois de absorver a gentileza, a gente começou a empilhar referências. As primeiras trocas de email são de 2013, algum tempo depois do aceite do Alexandre. Acho que o livro da Brasa é, sei lá, a sétima versão desde que o Lobo começou a editar a gente, em 2017. Importante citar isso: o Lobo aceitou editar esse livro antes de ele abrir a Brasa. E o trabalho dele foi fundamental pra Damasco.
ALEXANDRE LOURENÇO: O meu primeiro contato com Damasco foi pelo Lielson. Ele disse que tinha essa ideia pra quadrinho. Que tinha lido uma notícia de um cara que botou a vida pra vender e achou que aquilo poderia virar uma narrativa. Acho que o primeiro email que a gente trocou sobre Damasco foi de 2013. Muita conversa rolou, muitas ideias. No início não sabíamos como iríamos publicar. A gente ofereceu pra algumas editoras, pensou em publicar de forma independente, com editais. Paralelo a isso, de forma bem lenta, continuamos sempre a conversar sobre o quadrinho. Ele foi se formando lentamente. Com intervalos muito grandes entre os momentos em que o livro era desenvolvido. Acho que ficamos nesse ritmo até 2018, 2019. Alguma coisa por aí. Onde chegamos num roteiro de fato. Onde o Lobo finalmente entrou na equipe de produção do livro. Inicialmente como editor até migrar pra editora. O livro ficou pronto no final de 2021. Ficamos fazendo vários ajustes de lá pra cá. Agora, depois de 10 anos bem espaçados, temos um livro.
E o que vocês podem falar sobre essas várias transformações pelas quais o livro passou desde 2013? Quais foram as principais mudanças ao longo dessas sete versões que o Lobo editou?
LZ: Eu falei sete versões, mas foi um chute, tá? Não são literalmente sete – talvez sejam, mas eu realmente não sei quantas são. O que acontecia era “putz, tá alusivo demais. Vamos fazer um capítulo com um pouco mais de concretude”. Daí a gente ia lá e fazia mais um capítulo, que nem sempre entregava o que a gente queria que ele entregasse.
O último capítulo do livro, por exemplo, junta dois capítulos que surgiram com essa ideia. Às vezes a gente tirava um capítulo, como aconteceu com aquele do violão que tá na Café Espacial 14; o capítulo do videogame tava fora até a etapa final, quando Lobo trouxe ele de volta – aliás, tenho esquecido de falar disso: tem um jogo que é fundamental pras primeiras ideias de Damasco, o Shadow of the Colossus; é um game que você caminha, caminha, passeia pelo cenário até chegar ao desafio, que é um monstro gigante, o tal colosso. Essa ideia de você ser menos objetivo e mais contemplativo me marcou demais (podia falar também do Jiro Taniguchi, mas acho que a referência a ele é muito discreta na forma de Damasco).
Damasco acabou virando um livro com diversas “montagens” diferentes e era bem impressionante como a ordem dos capítulos conduzia os entendimentos de formas tão diferentes.
A real é que eu tava um pouco perdido entre minhas pilhas de desejos e de referências. A única coisa fixa que eu tinha era a estrutura narrativa – que é maleável ainda por cima. Uma das coisas que a gente mais fez foi mudar os capítulos de lugar, como se a gente tivesse fazendo uma lista de canções e procurasse a ordem que mais faria sentido. O primeiro capítulo foi o último a ser feito. O “expira, inspira” foi uma sugestão do Lobo – porque eu falei que queria pedir pro leitor ler com calma, sem pressa, que o livro entregava algumas pistas boas demais pra perder porque tava lendo rápido demais. Enfim, acho que eu nunca quis que o livro fosse “consumido”, mas lido e, objetivo maior, vivido. Depois dessa sugestão, eu voltei aplicando isso no livro todo pra manter unidade. As mudanças todas eram desse modo: o livro foi organizado com as partes em contato: elas podem ser realocadas facilmente, mas qualquer mudança precisa ser replicada pelo livro todo. Resumindo: acho que a principal mudança foi puxar a narrativa pro primeiro plano, esconder menos, mostrar mais, ser mais generoso com quem vai ler o livro. Acho que a gente tava pedindo muito do leitor e até entregava, mas era tão empenhoso o processo. Aí foi fundamental o trabalho do Lobo. Ele é o melhor editor de quadrinhos do país e a gente teve a sorte de contar com o Lobo em Damasco. Posso dizer que até tô satisfeito com o livro agora.
“Quem não quer ser amigo do Dave Grohl?”
Aliás, pensando aqui, 10 anos investindo nesse projeto, em algum momento vocês não ficaram cansados? Em algum momento ao longo desse período de produção vocês chegaram a temer que a coisa não fosse acontecer?
LZ: Cara, sempre considerei legítimo se o Alexandre olhasse pro quadrinho um dia e dissesse “não aguento mais, vamos parar por aqui”. Por sorte, ele nunca fez isso. Na real, a gente começou a pensar efetivamente em publicar há uns quatro ou cinco anos. Não me entenda mal, a ideia sempre foi lançar, mas articular esse lançamento é coisa mais recente. Eu considerava catar umas economias e publicar por conta. Oferecemos pra algumas editoras – isso foi antes de a Brasa existir. Uma delas tinha aceitado, mas a gente ainda não tinha terminado Damasco. Quando terminamos, me pareceu que nosso quadrinho era meio alienígena no catálogo dessa editora. A coisa foi se enrolando na editora também e assim que surgiu a oportunidade de desfazer o acordo sem causar celeumas, a gente desfez. Foi tranquilo, não tinha contrato nem nada. Aí com o livro na mão, falamos com algumas editoras, mas era natural que fosse pela Brasa, porque o Lobo tava no livro há muito tempo. E o livro dito pronto, ficou mais um tempinho sendo ajustado. Então, acho que eu nunca pensei nesse livro não existindo, mas a emoção de ver ele pronto agora é boa demais.
AL: Eu acho que isso nunca foi uma preocupação, não acontecer. A gente ia dar um jeito de fazer, depois arrumar alguma forma pra publicar. Felizmente, isso aconteceu, de forma muito satisfatória, com a Brasa. De qualquer jeito, por um momento, perto do final do processo de edição, quando a gente tava colhendo as informações dos leitores beta, fazendo os últimos ajustes, senti umas vibrações Chinese Democracy. Pareceu por uma hora que nunca ia ficar bom o suficiente pra gente falar que era aquilo ali que queríamos. Mas foi só uma breve preocupação que se resolveu em dois, três anos!
E como tem início a parceria de vocês? Levando o papo para além de Damasco, desde quando vocês se conhecem?
LZ: O Alexandre era muito parecido com o Dave Grohl em seus anos universitários, e quem não quer ser amigo do Dave Grohl? Nós dois somos formados em Letras pela UFPR de Curitiba, mas de turmas diferentes (ele do italiano, eu do português). Lembro de fazer algumas disciplinas com ele, tipo a de produção de texto, com o Cristovão Tezza de professor. Nessa disciplina, precisava apresentar uma palestra sobre um livro, e lembro que o Alexandre falou de Deuses Americanos, aí flagrei que ele curtia quadrinhos, porque naquele tempo ninguém chegava no Gaiman sem ser por Sandman. Ele também é muito amigo de uma amiga minha, e a gente conversou algumas vezes nos corredores – afinal, também era um pouco intimidador tentar ser amigo do Dave Grohl. Estreitamos contato e nos tornamos amigos durante uma pós-graduação de quadrinhos em Curitiba. Imagine, eu dei aula de roteiro pra ele, pro Yoshi Itice, pra Bianca Pinheiro! Ali a gente sempre ia no horário de almoço e depois das aulas (que eram no sábado) na Itiban e a gente conversava muito. Minha primeira parceria com o Alexandre foi quando lancei uma versão impressa do meu livro, Lado B: Uma história de amor para walkmen, em 2013, e pedi pra ele desenhar algumas páginas finais dessa novela e ele aceitou (revi esses emails e foi nesse ponto que falei de fazer Damasco com Alexandre).
AL: Eu conheço o Lielson desde 2000 e poucos. Nos tempos de faculdade. Sempre me chamou a atenção o estilo do rapaz. Pensei que ele era meu veterano na faculdade de Letras mas descobri que foi meu calouro. A primeira vez que lembro de conversar com ele foi na formatura da minha turma. Ele tava de blazer e camiseta, calça social e tênis. Enquanto eu estava de gravata e paletó e sapato. Me senti insosso enquanto ele era o cara mais descolado do mundo.
Anos mais tarde, em 2010, ele me deu aula de roteiro na pós-graduação. Me senti mais fracassado ainda. O meu calouro me dando aula era uma certeza de como a minha vida não estava saindo da forma que eu gostaria. Ali, começamos a falar mais sobre quadrinhos e desenvolver uma amizade que chegaria a um livro. Não é com qualquer amigo que se consegue escrever um livro.
“Não queria uma história que servisse de storyboard prum filme”
Como foi o desenvolvimento do livro? Vocês trabalharam juntos no roteiro? Qual foi a dinâmica de vocês à medida que o Alexandre ia fazendo as páginas?
LZ: Meu método de roteiro é por empilhamento. Eu vou jogando um monte de coisa, uma em cima da outra, e, de repente, começo a tirar algumas coisas e colocar em outras pilhas. Eu trouxe a ideia e uma direção, mas o trabalho de roteiro foi mudando. Enquanto empilhava, fui entendendo o personagem, entendendo porque tava tão interessado nessa história. Todas essas variações de trama e de detalhes foram conversadas com o Alexandre. E boa parte do material que foi pra essa pilha, vieram dele. Esse livro foi feito com dois propósitos básicos: teria de ser muito quadrinho, no sentido de usar a materialidade quadrinística e gráfica. Não queria uma história que servisse de storyboard prum filme, por exemplo; o outro é que foi pensado pra ser feito pelo Alexandre Lourenço, o ideal é que Damasco não funcione com outro tipo de lógica quadrinística (porque pra mim bons autores são uma lógica quadrinística). E isso era algo que tava na base da pilha de coisas do roteiro.
Esse meu método, que de forma consciente foge dos manuais caga-regra de roteiro, traz dificuldades porque em vez de eu partir de coisas como “motivação do personagem”, parto de um personagem que não sabe qual é o problema dele, só sente que tem uma insatisfação. E isso é o mais comum: a gente não saber o que tá acontecendo, isso me interessa na ficção. Aí eu crio estruturas narrativas bem delimitadinhas e vou pendurando nelas as referências e os personagens e vou vendo o que acontece. É um método absolutamente estruturado (tenho folhas A2 com linhas do tempo e organização do livro, fora dezenas de arquivos) e aberto ao caos ao mesmo tempo. Dessa forma, eu consigo entregar uma história que me parece mais orgânica. Tá, mas falei disso tudo pra explicar que com esse modelo de construção narrativa, a própria produção das páginas ia mudando as coisas. Acho que foi difícil e angustiante pro pobre Alexandre. Ele merecia coisa melhor, sem dúvida.
AL: O roteiro é do Lielson. Eu acho que ajudei na formação da história. Sugerindo alguns caminhos, sugerindo algumas coisas, mas o roteiro é dele. Acho que o grosso do trabalho foi feito em partes. Ele terminou um documento de texto de um milhão de páginas, uma forma bem solta. Relatando coisas que aconteciam, que poderiam acontecer. Bem fluido. Foi montando essa história, criando esses personagens. Depois de terminado me passou pra ler. Comecei a desenhar tentando passar aquilo para o papel. Acho que fomos conversando nas entregas dos capítulos. Quando a gente tinha material suficiente pra olhar e pensar se aquilo fazia sentido ou não. Acho que fizemos um espécie de primeira leitura. Primeiro rascunho, sei lá. Depois de pronto, começamos a olhar e editar os detalhes, o que a gente achou que funcionou, o que não funcionou. O que a gente não sabia se estava dando certo, acho que foi assim. Um início de ideias dos dois, um momento de solidão do roteiro dele, depois eu desenhando sozinho e, no meio disso, um monte de conversa e ideia e ajustes e mexidas e cortes e adições até não entender mais onde a gente estava. Acho que foi meio assim.
Fiquei pensando aqui no uso que vocês fazem da “iconografia de Paulo na estrada para Damasco”, que o Lielson mencionou. O que essa história bíblica representa para vocês?
LZ: Essa história de da conversão de Saulo em Paulo, que se dá no caminho para a cidade de Damasco, surgiu quando eu pesquisava pra escrever o roteiro do curta, lá atrás. Como disse, é uma iconografia bastante usada na arte, e o termo “caminho de Damasco” é recuperado em vários títulos de episódios de séries, de livros, e tal. Acho que a mais conhecida é a trilogia teatral peça do Strindberg, Para Damasco. Eu não lembro bem como surge essa analogia da conversão de Saulo no quadrinho, mas acho a imagem do relâmpago interrompendo o caminho, mudando o entendimento que se tinha até ali e alterando uma vida, uma imagem poderosa. A história, pra mim, é um mito sobre mudar tudo. E se você analisar isso sob o pano da história, Saulo/Paulo é o cara que define o cristianismo como a gente entende ele hoje. E o cristianismo é uma das religiões mais influentes do mundo. Então aquela mudança naquele homem foi uma mudança em todos nós. A gente aqui, brasileiros, nascidos num país mormente cristão, independente de onde nossa fé (ou não fé) esteja, somos moldados por valores cristãos. E principalmente pela culpa cristã.
AL: Os meus pais se converteram quando eu era adolescente. Eu fui me converter mais tarde, já adulto. A história de Paulo, pra mim, representa um pouco esse caminho na vida de cada um. Essa caminhada que a gente segue para encontrarmos nós mesmos. Acho que acabei falando disso nos agradecimentos do livro. Esse meu caminho pra Damasco, que destrói tudo que eu não sou pra me construir de novo. De qualquer jeito, a vontade de usar tudo que é bíblico, paulino e de Damasco foi ideia do Lielson, que constrói essa relação de uma forma diferente.
“Me sinto um chimpanzé de smoking em uma festa de gala”
Apesar da menção a essa história bíblica nas primeiras páginas, li Damasco sem ter essa referência imediata, ela só ficou explícita para mim com o posfácio do Eduardo Nasi. Fiquei pensando aqui nas muitas camadas possíveis de leitura de uma obra, em como a HQ funcionou para mim sem saber da grande referência que dá título à HQ. Enfim, tô meio perdido nessa pergunta… Talvez, o que eu queira saber é: vocês imaginam a percepção e a leitura do quadrinho variando muito entre aqueles que têm essa referência bíblica e quem não tem?
LZ: Acho que as referências ao cristianismo e ao budismo que estão na história, bem como as citações literárias, podem ou não ser pescadas por quem lê, mas quero acreditar que, mesmo para quem não acessar elas, existe um quadrinho interessante de ser lido.
Tudo que a gente encontra de nós mesmos em um quadrinho, um livro ou um filme, cria uma amarra de empatia e sentido, então, acredito que pescar uma referência como essa, a que dá nome ao livro, possa direcionar a leitura, sim. Além disso, a interpretação é até conduzida pela obra, mas ela é de cada pessoa que conviver com a obra, que se sintonizar com Damasco, que aceitar ou repudiar seus termos de funcionamento. De qualquer forma, tá lá o texto incrível do Nasi, explicitando alguns pilares do livro, inclusive esse.
AL: Quem tem Lielson não precisa responder. Fico com a resposta dele.
Lielson, o que mais te atrai no trabalho do Alexandre? Qual você considera a maior contribuição dele para Damasco?
LZ: Sem dúvida nenhuma, como ele achou métodos narrativos que fortalecem os temas que ele quer tratar: solidão, decepção, cansaço, melancolia, dúvida, trabalho. Isso, observado a partir dos desenhos miúdos, das repetições, das elipses, me faz pensar que o Alexandre é brilhante de verdade. Acho que você consegue olhar pra alguns quadrinhos e dizer “isso é meio Alexandre Lourenço”. Ele depura as referências dele de um jeito muito antropofágico. É um privilégio poder ver o trabalho dele acontecendo. É um orgulho saber que ele achou que valia a pena por energia numa ideia que eu tive.
Alexandre, qual é para você o maior mérito do roteiro do Lielson? Qual você considera a maior contribuição dele para a sua arte em Damasco?
AL: Uma vez eu vi o Lielson falando que, como roteirista, ele procura escrever o roteiro pensando em quem vai desenhar. Parece que funcionou. Pelo menos pra mim. Eu estava esperando um roteiro parecido com aqueles exemplos de roteiro do Alan Moore, que frequentemente alguma edição de quadrinhos publicava como extra. De que modo a página estava dividida, o que tinha em cada quadro. O texto de cada balão, essas coisas. O roteiro do Lielson é super fluído. Quase um fluxo de consciência. Ele tem essa habilidade de deixar a narrativa dentro da sua cabeça. De fazer aquela ideia parecer ser sua. Parece que ele tem um super poder de fazer com que você pense que a ideia genial é sua e não dele. Outra coisa é que o rapaz já leu bastante. Então parece que sempre tenho que tentar acompanhar as referências elegantes e sofisticadas. Me sinto um chimpanzé de smoking em uma festa de gala.
Alexandre, os seus trabalhos mais conhecidos são com roteiros próprios. Como é para você desenhar a partir do roteiro de outra pessoa?
AL: É bom e é estranho. Eu sempre tive muita dificuldade com o desenho. Nunca é fácil pra mim. Desenhar é sempre um esforço. Quando eu fico na posição de quadrinista (em comparação a roteirista ou desenhista, apenas) eu sempre penso no quadrinho como um todo. Trabalhando quadrinhos como um coisa inteiriça, sem fissuras. Quando se divide o trabalho com alguém, ainda mais, quando essa divisão é tão demarcada entre texto e desenho, o quadrinho acaba surgindo de forma diferente. É uma forma nova. Nunca fiz um trabalho tão longo com o roteiro de outra pessoa. É uma experiência que chama atenção pela falta de clareza sobre as minhas habilidades com o lápis. Tendo o controle de tudo, eu sei exatamente quais são as minhas limitações do que eu consigo botar no papel. E quando vou pensando nas coisas, em como vai ficar de fato no papel, faço pensando nisso. Com isso em mente. Quando o Lielson escreve, ele não pensa que eu tenho dificuldades pra desenhar gatos e que um cachorro como animal de estimação do protagonista seria mais fácil. Não. Ele pensa na história. De como isso funcionaria melhor pro livro terminado. Isso é bom, porque essa falta de habilidade, essa limitação técnica me força a procurar soluções pra coisas que eu não sei fazer e, por isso, não me daria ao trabalho de tentar. O lado negativo disso é que, como um bom preguiçoso, tenho que trabalhar dobrado pra não arrastar o processo todo.
“O melancólico é quase meu porto seguro”
A minha primeira leitura do livro disse muito respeito a solidão e isolamento. Os últimos anos de pandemia, com interações sociais limitadas, pesaram de alguma forma no desenvolvimento de Damasco?
LZ: Pesaram, mas não tanto. Acho que pesou mais, pra mim, a forma como eu fiquei mais e mais interessado em questões de trabalho e de reunião de pessoas em prol de mudanças. Meu interesse por personagens que são comuns é algo que sempre teve nas minhas diretrizes iniciais (achei isso num email de 2013), mas só foi executado no quadrinho lá por 2017. Levei todo esse tempo pra entender que o Saulo (personagem de Damasco) é o oposto do que acredito. Quando entendi que ele é um antialter ego meu, tudo andou. Quando explodiu a pandemia, a gente já tava bem adiantado no gibi, mudando ordem e capítulo, remontando o livro, reescrevendo textos, essas coisas. Obviamente ver o escárnio do governo federal da época com a questão, e sentir o desespero no ar, com milhares de mortes rolando, não deve ter passado impune. Mas não consigo apontar em qual parte de Damasco isso se mostra.
AL: O livro foi produzido em um espaço de 10 anos. Então, ele viu o governo Dilma, o do Temer, o do Bolsonaro e agora o de Lula. É um livro que transitou muito em várias esferas sociais e pessoais. Quando a gente começou Damasco ninguém era casado e ninguém tinha filhos. Muita coisa mudou. A solidão, o isolamento, o estar distante de si são sentimento que sempre acompanharam os autores, os personagens e tiveram esse triste encontro durante a pandemia. Onde um sentimento muito pessoal foi forçado a um planeta inteiro. Acho que a pandemia, a Covid, o isolamento forçado tiveram influência no que Damasco é hoje. Não como ponto de partida, ou um elemento principal, mas, com certeza somou a todas as coisas que acontecem com a gente, com as pessoas próximas e com tudo que entra e acaba impresso no papel quando se está produzindo um livro.
Tô pensando nisso que o Alexandre falou, sobre as transformações pessoais que vocês vivenciaram ao longo dos 10 anos de produção de Damasco. Hoje, por, exemplo, vocês são casados e têm filhos. O quanto essas mudanças todas pesaram nas avaliações e nos julgamentos de vocês em relação ao protagonista do livro? Aliás, tem isso? Vocês julgam de alguma forma as escolhas dele?
LZ: Quando comecei Damasco eu morava em São Paulo e estava num outro relacionamento longo. Passei pelo fim desse relacionamento, pelo desemprego, por mudança de cidade, um novo relacionamento longo, começo do doutorado. Acho que essas coisas me fizeram olhar pro Saulo de forma menos amigável. Na protoversão dessa história, o roteiro de um curta, Saulo é uma pessoa que questiona o apego das pessoas aos bens materiais; em Damasco, ele um ingênuo metido a esperto, meio lesado, que desiste das coisas. Eu quero acreditar que ele é o contrário do que eu sou, que teimo mais do que devia pra conseguir alguma coisa. Então, sim, julgo muito o Saulo.
Já das mudanças, posso dizer que tenho muito mais consciência sobre algumas questões de trabalho e obtenção de renda, e de materialidade das relações. E fui puxando o livro mais pra esse lugar conforme a gente ia ajustando ele.
Ainda sobre essas mudanças, principalmente depois do nascimento dos filhos de vocês, elas impactaram de alguma forma o livro? Vocês mexeram em alguma coisa no livro por causa dessas vivências pessoais?
LZ: O Lélio nasceu este ano, depois de a gente fechar o livro. Com ele no meu colo, só foram feitos ajustes. Chegou com ele um sentimento de urgência, de terminar logo as coisas pra poder ficar mais com ele, pra resolver as coisas que ele precisa. Fora isso, eu diria que a paternidade, no meu caso, afetou pouco o livro. Talvez o Alexandre tenha mais a dizer, já que o piá dele é maior.
AL: Acho que não no livro em si. O processo já estava muito adiantado, acho eu. O que alterou foi a forma de abordar as coisas, a forma de trabalhar, a forma de fazer tudo isso enquanto se pode exercer a função de pai. Trabalhar em casa, durante a pandemia, com criança, em um apartamento, exige uma organização que nunca foi necessária quando éramos só eu e a minha esposa. Antonio trouxe, além de um universo de outras coisas, isso. Essa necessidade de organização onde tudo possa ser comportado.
Aliás, Damasco ecoa muito de sentimentos de solidão e melancolia de alguns dos trabalhos prévios do Alexandre. Era importante para vocês que esses sentimentos se fizessem presentes durante a leitura de Damasco?
LZ: Não sei dizer se era importante, mas sem dúvida são sentimentos que carregam a leitura pra um lugar parecido com aquele que a gente imaginou ao criar. Não respondo pelo Alexandre (embora concorde que são dois pilares do trabalho dele em quadrinhos), mas o melancólico é quase meu porto seguro na ficção e algo que tenho certa dificuldade de afastar do que escrevo. A solidão é algo que eu sempre soube VALORIZAR (sou filho único etc.), mas tenho tentado – e quero acreditar que tenho conseguido – valorizar o conjunto e o trabalho em equipe. Durante a pandemia foram as relações, as chamadas de vídeo, as conversas, as trocas, que fizeram a diferença. Acho que Damasco tem um pouco sobre os problemas não da solidão, mas do afastamento.
AL: Acho que sim. O protagonista é um solitário. Parece distante de si. Essa jornada pra encontrar um lar, em si mesmo, parece importante mostrar esse vazio. Mas acho que tentamos fazer isso sem ser óbvios. Sem tentar mostrar isso. Acho que se lê essa solidão sem falar dela. Mas fico na dúvida se foi intencional ou se a solidão apenas transbordou de forma involuntária.
“Gosto de quando um quadrinho sabe que é um quadrinho”
O que mais interessa para vocês, hoje, em relação ao uso da linguagem dos quadrinhos? O que vocês mais anseiam quando param para ler uma HQ? E o que mais interessa a vocês quando vocês sentam para trabalhar em uma HQ?
LZ: O que mais gosto de ver é os limites da linguagem sendo esticados. Aí entra esse papo todo de quadrinhos infranarrativos, abstração em quadrinhos, formatos narrativos que fogem do clássico ocidental — modelos clássicos que funcionam superbem pra muita gente (tipo pro Lobo, meu editor. Ele trabalha assim de maneira invejável), só PREGO que não são a única forma de fazer a coisa.
Quando paro pra ler um quadrinho, quero ser tomado e ficar louco, sabe como? Tipo aquilo de olhar pra um recurso numa página e falar: ah, pode fazer isso também? Espero ter minha vida mudada por aquilo (eu sei que não é possível toda vez e que por outro lado, no limite, tudo muda nossa vida). E, o que me desmonta e remonta, é o uso da matéria do quadrinho. Eu lembro que li Sem dó, da Luli Penna e sonhei com o quadrinho; isso aconteceu com o Incal também. Então, quando sento pra fazer um quadrinho, eu sento com a missão fracassada de reconfigurar tudo e de fazer uma história que invada a cabeça das pessoas e viva com elas um tempinho. Fazer um quadrinho que muda o jogo todo; mas sei que ainda não tô nesse lugar como roteirista, mas nada me impede de desejar isso. Acho que a gente sempre vai entregar menos do que espera, sabe? Entre a imaginação e a execução existe uma peneira de realidade que muda tudo. Acho que se eu quiser entregar pouco, vou entregar ainda menos. Aí não vejo porque fazer. Não sei porque alguém resolve se meter a fazer quadrinhos, que é difícil pra burro e muito mal remunerado, pra não fazer a coisa mais intensa do mundo. Na minha cabeça, ninguém me pediu pra fazer, tô fazendo por amor à linguagem. Tenho que mostrar que amo os quadrinhos com meu trabalho.
AL: Eu acho que tô me percebendo cada vez menos interessado em história. Isso tanto como leitor ou quadrinista. Eu gosto de quadrinhos na forma que ele é. Que só ele pode ser. Gosto de quando um quadrinho sabe que é um quadrinho. Quando se apresenta como quadrinho. Quando usa o espaço na página funcionar como em nenhum outro lugar possa funcionar. Acho que tenho isso quando estou lendo ou quando estou fazendo. Esse tempo transformado em espaço. Essas ações entrecortadas com um ritmo próprio que começam a fazer sentido quando são colocadas em contato com outras ações entrecortadas. Gosto quando o quadrinho sai do papel e acontece na cabeça de quem lê. Não gosto quando o quadrinho funciona como um filme, como uma série, uma poesia. Parece que fica duro. Sem graça, oco. Procurando ser o que não é. Isso é o que eu procuro quando leio. O movimento estático em toda sua suntuosidade.
Vocês poderiam, cada um, escolher três músicas que poderiam compor uma trilha sonora potencial de Damasco?
LZ: De longe, a pergunta mais difícil. Só três? Damasco tem todo uma base na música, mas o capítulo específico sobre canções, acabou fora da edição final. Ela foi publicada na Café Espacial 14. Tem uma história derivada da pesquisa do curta que seria a semente de Damasco (lembra do método de empilhamento que eu comentei), que trata de um disco específico dos Beatles (também saiu na Café Espacial, na edição 11).
– How to Desappear Completly, Radiohead;
– It’s a Long Way, Caetano Veloso;
– Valsa dos Desertores, ruido/mm.
AL: Teve um capítulo que acabou não entrando no livro mas que escapuliu e foi publicado na Café Espacial que falava sobre música e poderia responder melhor a essa pergunta. Mas, mesmo assim, lá vai:
-Natalia lafourcade, Soledad y el mar;
-Kevin Johansen, Fantasmas de carnaval;
-Pale Blue Eyes, Velvet Underground.