Considero o Liniers, esse cara na foto aqui em cima, um dos grandes artistas dos nossos tempos. Publiquei no Opera Mundi uma entrevista com ele, na qual tratamos de vários assuntos. Às vésperas do início da retrospectiva que rola em São Paulo dedicada à obra do quadrinista, o artista argentino bateu um papo comigo sobre carreira, política e futebol. Recomendo a minha matéria para que você saiba um pouco mais da história do Liniers e da mostra que será aberta dia 4 de julho. Reproduzo a seguir a íntegra da nossa conversa. Senhoras e senhores, Ricardo Siri Liniers:
Em 2015 completam-se 16 anos da sua primeira publicação no jornal Página 12. Olhando para o início da sua carreira, que balanço você faz hoje?
Sim, já são 16 anos desde que comecei a publicar no Página 12. Me choca, pois quando comecei a publicar nunca poderia imaginar a quantidade de livros que iria lançar e nem imaginar que iria publicar em tantos países. Então quando olho para trás e vejo o caminho percorrido, só posso ver como surpresa (risos). Há alguma felicidade, mas ainda mais surpresa. A questão é essa no final: você vai fazendo o trabalho dia a dia e quando junta tudo, soma tudo, de repente, é muito trabalho.
E você percebe alguma grande mudança no seu estilo ou no conteúdo que você aborda durante esse período?
Sim. A mudança no meu estilo, em Macanudo, em tudo o que faço, é constante. Para mim é uma tira que está viva, nunca sei pra onde vai o próximo desenho. Dentro dessa liberdade, a mudança é algo natural. Se eu tivesse continuado fazendo o mesmo que fazia quando comecei com quadrinhos, já teria me cansado tanto que não estaria fazendo mais isso. Fiz muitas experimentações, algumas delas funcionaram, e assim vou aprendendo e crescendo. Macanudo tem um pouco dos dois, de êxitos e fracassos.
E nesse período seu trabalho foi para muito além da Argentina. Você é publicado na Europa, na América do Norte e no Brasil. O que você acha que torna seus quadrinhos tão universais?
Me surpreendeu bastante quando comecei a publicar no exterior. Quando comecei a publicar Macanudo, pensava que era algo tão estranho e tão pessoal que com um pouquinho de sorte as pessoas iriam prestar atenção nos desenhos, mas só quem me conhecia e tinha alguma paciência comigo. Mas tive sorte de começar a publicar meus quadrinhos no boom da internet, pelo menos quando explodiu o Facebook e os blogs, e as pessoas passaram a compartilhar os desenhos e eles foram saltando fronteiras. Foi mais um golpe de sorte do que qualquer outra coisa (risos). Sorte tecnológica. Me surpreende e continua a me surpreender que em países tão diferentes, como na República Checa ou na Itália, na China ou nos Estados Unidos,…são países onde nunca imaginei ter essas histórias publicadas e onde pinguins poderiam causar tanto interesse. São dessas surpresas felizes.
Em 2014 você publicou duas capas na New Yorker. Como foi o convite para publicar na revista? A diretora de arte da revista é a Françoise Mouly, uma lenda do mundo dos quadrinhos e cartoons. Como foi trabalhar com ela?
A New Yorker eu continuo sem acreditar que tenha acontecido. Eu publiquei em um livro que chama Toon Books, editado pela Françoise Mouly, que também é esposa do Art Spielgeman (quadrinista autor da graphic novel Maus, única história em quadrinho a receber um Prêmio Pulitzer), são duas pessoas que eu sempre admirei muito. Eles são como o John e a Yoko para mim (risos). Aí a Françoise me perguntou se eu gostaria de mandar desenhos e propostas de capa, para a minha surpresa e cara de pânico (risos). Disse que sim, passei a mandar algumas tentativas e finalmente gostaram de um par de ideias e eles publicaram. É dessas coisas que não é possível você planejar ou sonhar que vai acontecer. É como escalar o Everest, não está nem nos planos. Então é lindo viver tudo isso. São surpresas que devem ser agradecidas.
Uma das capas da New Yorker foi uma piada com o Obama e outra com os hipsters de Nova York. Como é pra você tratar de temas relacionados à realidade de um outro país?
Sim, obviamente a New Yorker tem interesse na cultura na qual está inserida, principalmente Nova York e Estados Unidos. Mas os Estados Unidos são um país tão expansivo que estamos todos meio atentos à cultura americana, nos filmes, nos músicos, nos artistas, nos políticos – que se metem em vários países que não conhecem bem (risos). Então estamos atentos. Não é necessário para mim colocar um chipe para fazer um comentário sobre a cultura que eles exportam e nós consumimos. Seria mais difícil para mim fazer a capa de uma New Yorker da Mongólia ou do Paquistão (risos). Mas a cultura americana, seja para o bem ou para o mal, está muito presente para nós.
2015 vai ser lembrado pelos assassinatos cometidos na redação do Charlie Hebdo, em janeiro. Após quase seis meses, você vê alguma mudança no humor feito em quadrinhos em decorrência dessa tragédia em Paris?
Sim, o que aconteceu no Charlie Hebdo foi horrível e absurdo. É inacreditável que no século XXI exista alguém que pense ser preciso matar outras pessoas para defender suas crenças, apenas por elas terem feito humor, o que gostavam de fazer. Uma coisa que me chateou bastante: no princípio todos diziam “que barbaridade, que horror, como pode alguém fazer algo assim?”, mas depois começaram a dizer “mas talvez eles não deveriam ter feito humor com isso”. Para mim é a mesma coisa das pessoas que dizem: “sim estupraram aquela menina, mas ela não deveria ser vestir daquela forma, andar de biquíni”. É uma coisa horrível, colocar a culpa na vítima, isso é terrível. Defendo muito a liberdade de expressão e defender a liberdade de expressão é defender as pessoas com opiniões diferentes das suas. Havia piadas sem graça no Charlie Hebdo, claro que sim, mas todos tem o direito de fazer isso. Assim que encontramos as ideias importantes, deixando falar as pessoas que pensam diferente. Em algum momento, os que pensavam diferente foram contra a escravidão, a favor do voto feminino, a favor do casamento homossexual,…várias ideias, em algum momento, foram diferentes. Se tivermos medo do que for diferente, não veremos mais surgir novas ideias e elas farão falta no futuro. É algo assustador que me preocupa muito.
Você produziu uma série sobre a Copa do Mundo no Brasil. Em uma das tiras você tratou da corrupção na Fifa. Como você reagiu ao ficar sabendo das várias prisões feitas pelo FBI na Suíça na sede da entidade?
Por um lado, ir ao mundial no Brasil foi uma experiência maravilhosa. Os brasileiros me trataram com tanto carinho, foram tão generosos com todo mundo. Nos primeiros dias havia pessoas de todo o mundo, festejando e felizes. Há essa parte linda do futebol, quando ele une. Aos poucos vai todo mundo se separando por causa das rivalidades, o que é muito absurdo, é só um jogo! (risos) Isso me angustiava um pouco. Faço uma mea-culpa, pois não gostei daquela musiquinha chata que nós argentinos fizemos, “Brasil, decime qué se siente” (cantando), era bastante irritante, mas o futebol tem dessas coisas (risos). Mas foi muito divertido, foi muito lindo chegar à final e ver a partida no Maracanã, não vou esquecer nunca mais. Obviamente, nos cinco minutos finais, o gol do Götze (Mario Götze, jogador alemão que fez o gol da vitória da Alemanha sobre a Argentina na final) arruinou a nossa festa (risos). Acredito que se a Copa tivesse durado cinco minutos a menos todos os argentinos teriam ficado muito mais felizes.
E sobre a corrupção na Fifa: são dessas coisas tão óbvias, que achei engraçada a cara de surpresa que o Blatter fazia na renúncia (risos). O nível de cara de pau e de cinismo dessas pessoas, que dão um mundial ao Catar, que tem sujeira por todo o lado e não respeita os direitos humanos…a única lógica que vale pra eles é a do dinheiro. O dinheiro é a lógica que move o futebol em todos os países e a Fifa é o fiel representante disso. Quando há muita grana em jogo, sempre há pessoas com intenções ruins, isso nunca foi segredo para ninguém, mas agora está sendo noticiado. Fiquei muito feliz em vê-lo renunciar.
Você costuma passar férias no Brasil e muitos dos seus livros já foram publicados aqui. Você acompanha a produção de quadrinhos de humor brasileira?
Sim, tenho uma relação muito direta com o Brasil. A minha sogra era brasileira, o meu cunhado vive em Ubatuba, então é um lugar que visito constantemente. E alguns anos atrás passei a publicar Macanudo pela Zarabatana Books, do Cláudio Martini, acho que já vão lançar o número 8. Então eu aceito qualquer desculpa pra ir ao Brasil, porque me divirto muito. Agora vou a São Paulo para a exposição dos meus quadrinhos e sempre aproveito muito. Na América Latina há essa coisa meio absurda de estarmos meio separados. Todos prestando atenção na Europa e nos Estados Unidos e não prestamos atenção no que está sendo feito nos nossos vizinhos, isso sempre me pareceu muito absurdo. Sinto muita raiva que os argentinos não conheçam Angeli e Laerte, o Adão Iturrusgarai é um pouco mais conhecido por estar morando aqui. É muito absurdo. Eu gostaria de ter crescido lendo Rê Bordosa, li só adulto (risos), mas gosto muito. Já fiz apresentações aí com o Kevin Johansen, que aproveitamos muito. O Brasil é um país absolutamente generoso. Também já visitei outros vizinhos e também me diverti muito, como Chile, Uruguai, Paraguai, Peru, Colômbia, Venezuela,…É muita sorte que a minha carreira me permitiu conhecer todos esses vizinhos e também é uma sorte termos os vizinhos que temos.