Uma criança foi assassinada em um mercado. Dez pessoas estavam no estabelecimento no instante do ocorrido, todas são suspeitas do crime. As 72 páginas em preto e branco de Supermercadinho Brasil, nova HQ Lobo Ramirez, são focadas na investigação da morte da criança e na interação entre os indivíduos presentes no local quando o corpo foi encontrado.
Entre os suspeitos constam um policial com impulsos assassinos, uma senhora extremamente religiosa, um segurança racista, um rapaz com trejeitos de incel e outros tipos representativos da sociedade brasileira.
Publicada pela Escória Comix, selo do próprio autor da obra, Supermercadinho Brasil é marcada pela arte limpa, ao contrário das muitas hachuras e retículas que caracterizam Asteroides – Estrelas em Fúria, trabalho prévio de Ramirez. Também chama atenção a alternância entre as longas cenas de diálogo e as sequências de perseguição e extrema violência.
“Tentei claramente uma experimentação com diálogos, criando tensão, clima e suspense apenas com os verbetes certos”, diz Ramirez. Na conversa com o blog ele também falou sobre seus métodos de trabalho, tratou do desenvolvimento dos personagens de sua nova obra e lamentou o impacto da pandemia nas operações de sua editora.
Além de grande editor, Ramirez mostra-se também um autor versátil, crítico e engraçado. Supermercadinho Brasil é dos lançamentos mais certeiros dos quadrinhos brasileiros nesse primeiro semestre de 2020. A seguir, minha conversa com o artista:
“A serena calma de um monge guerreiro…“
Queria começar sabendo como você tá lidando com a pandemia. Você tá conseguindo produzir durante esse período? Essa realidade de isolamento social afetou de alguma forma os seus trabalhos?
Putz, no começo disso tudo dei aquela travada, a cabeça despirocou e não consegui fazer nada, mas depois voltei ao normal, que já era o isolamento social mesmo, e agora estou produzindo normalmente. Se eu parar de desenhar aí que fico louco de vez. Foi o trabalho que me salvou.
E como seguem as operações da Escória Comix dentro desse mesmo contexto? Você já consegue dimensionar o impacto da pandemia para a editora?
Bom, justo esse ano, que eu tinha arranjado um calendário maneiro bem grandão e já tinha várias datas marcadas, com grandes estratégias de marketing, aconteceu essa pandemia. Eu quis rasgar tudo e jogar fora, mas mantive a serena calma de um monge guerreiro e tentei focar no que dava pra ser feito, assim sendo, as operações continuam enquanto os Correios funcionarem, mas vamos ir mais devagar nos lançamentos. O impacto por enquanto é de apenas uma martelada bem forte no joelho, mas daquelas bem dada mesmo, que tu até cai no chão, mas ainda pode rastejar.
“Se essa é a nova realidade, que assim seja”
Você chegou a fazer uma enquete nas redes sociais perguntando o que as pessoas achavam de lançar agora ou não o quadrinho novo. Por que você decidiu lançar apesar da pandemia, das lojas fechadas e dos eventos suspensos?
Normalmente eu não faria essa enquete, porém tempos desesperados exigem medidas desesperadas e, para o meu espanto, 99,9% das pessoas disseram para lançar o quadrinho novo apesar do fim do mundo. Sendo assim, me senti seguro para lançar, afinal a previsão é que vai demorar para ter qualquer evento ou loja aberta, então não tem motivo para ficar esperando o mundo melhorar, até porque a tendência é piorar. Se essa é a nova realidade, então que assim seja.
Agora sobre a Supermercadinho Brasil. Como e quando surgiu a ideia para essa HQ? Houve algum ponto de partida para esse trabalho?
Não estou conseguindo lembrar direito quando surgiu a ideia, mas eu basicamente queria fazer um HQ que tivesse mais coisa da nossa gloriosa nação brasileira, uns cenários bonitos que a gente vê por aí e algo que mais gente pudesse se identificar. Cheguei a desenhar 20 páginas em março de 2019, porém era outra história que eu percebi que ia acabar se alongando muito até chegar na CENA DO MERCADINHO. Então, depois de avaliar bem, minha vontade de fazer outra HQ “longa” (mais de 100 páginas) e perceber que eu não queria passar meses no mesmo projeto, decidi fazer uma HQ apenas com a cena do mercadinho. A ideia ficou entubada em meu crânio durante o ano todo de 2019 e eu já estava adquirindo experiências de laboratório cada vez que adentrava um mercado. Quando começou janeiro de 2020 eu já comecei a desenhar SUPERMERCADINHO BRASIL, que estava prevista para ser lançada no FIQ.
“É a técnica da bunda quadrada, lápis, borracha, caneta nanquim e Chamequinho”
Quanto tempo você levou produzindo esse quadrinho? Quais técnicas utilizou?
Só a parte de desenhar mesmo, quando decidi sentar e começar pra valer, foram três meses e meio. E basicamente é a técnica da bunda quadrada, lápis, borracha, caneta nanquim e papel sulfite Chamequinho. Houve uma grande experimentação artística com pincel véio em umas páginas também.
Um dos pontos altos desse livro para mim são os personagens. Como você elencou os indivíduos que estariam presentes no cenário do quadrinho? Como você estabeleceu quais seriam as personalidades que estariam envolvidas com o mistério relatado no quadrinho?
Eu fui pensando em vários estereótipos que poderiam estar ali e no começo tinha muito mais personagens mas fui juntando alguns e no fim foram esses aí que ficaram, as personalidades tentei misturar um pouco de amigos e conhecidos, cada personagem é umas três ou quatro pessoas que eu conheço.
Ainda sobre esses personagens, acho que tá bem explícito que você se propôs a trabalhar com estereótipos de figuras marcantes da sociedade brasileira dentro de um mesmo cenário, lidando com a resolução de um crime. De todas essas figuras caricatas que compõem a sociedade brasileira hoje, tem alguma em particular que é mais repulsiva para você?
Cara, de todas ali acho que a figura que eu mais odeio mesmo, de verdade verdadeira, aquele ódio odiento, é a figura da religiosa.
Grande parte desse quadrinho é centrado em cenas de diálogos. Você chegou a finalizar o roteiro todo da HQ antes de começar a desenhar? A produção desse trabalho foi muito diferente, por exemplo, do desenvolvimento de Asteroides?
Tentei me aventurar na dimensão das palavras nessa HQ, claramente uma experimentação com diálogos, tentando criar tensão, clima e suspense apenas com os verbetes certos. Creio que consegui uma grande profundidade com uma pequena gama de palavrões e ofensas gratuitas. Mais uma vez eu não tinha um roteiro finalizado, apenas uma ideia geral do que ia acontecer e uns rascunhos de páginas. O texto eu nem tinha noção do que ia escrever e por isso mesmo fui desenhando os balões sem texto, apenas sabendo a intenção do personagem ali, saca? Depois eu poderia escolher as palavras certas e seria mais fácil modificar qualquer texto. No Asteroides, por exemplo, fui desenhando e escrevendo na hora, essa foi a maior diferença.
“País horrível, deveria mudar o nome para Brasilquistão e usar logo um Rider como bandeira”
Aliás, comparando com o Asteroides, Supermercadinho apresenta uma arte muito mais limpa, sem as hachuras desse livro anterior, por exemplo. Você pensou em trabalhar algum estilo específico ou se propôs a fazer algo diferente em enquanto concebia esse quadrinho novo?
Sim, é bem mais limpinho o SUPERMERCADINHO BRASIL. A real é que eu curto muito as hachuras e as retículas que usei no ASTEROIDES, mas a ideia era que isso ia me poupar tempo e eu gastei o dobro do tempo para colocar tudo no computador depois, então dessa vez tentei resolver a arte sem as lindas e gostosas retículas e para isso busquei me inspirar nos trabalhos do Lawrence Hubbard, Elmano Silva e Benjamin Marra.
Qual é a sua leitura para o Brasil hoje, com Bolsonaro, coronavírus e tudo mais? Você tem algum otimismo em relação ao nosso futuro?
País horrível, deveria mudar o nome para Brasilquistão e usar logo um chinelo Rider como bandeira. Não tenho nenhum otimismo em relação ao futuro mas também nunca tive muito otimismo. Talvez a gente consiga restabelecer o feudalismo e dar sorte dos senhores feudais locais serem alfabetizados.