Papo com Lobo Ramirez, editor do selo Escória Comix: “O que realmente importa é a essência de ir contra qualquer pensamento ignorante, falsos moralismos e fanatismos”



Escrevi na segunda edição da Sarjeta, minha coluna sobre quadrinhos no site do Instituto Itaú Cultural, sobre os trabalhos dos quadrinistas e editores Lobo Ramirez e Panhoca à frente dos selos Escória Comix e Pé-de-Cabra. Comentei algumas obras publicadas por eles e chamei atenção para a importância dos disparates lançados pelos dois em tempos de conservadorismo crescente como aqueles que estamos vivendo.

Compartilho aqui no blog as entrevistas que fiz com os dois autores antes de escrever a coluna, tratando da história de seus selos, de algumas das percepções deles em relação à cena de HQs na qual eles estão inseridos e sobre planos futuros de suas editoras.

No papo com Lobo Ramirez, ele ainda lembra de seu primeiro contato com alguns dos autores de obras que hoje compõem o catálogo da Escória Comix – como Arame Surtado (Ketacop – A Anticop), Emilly Bonna (Esgoto Carcerário) e Victor Bello (O Alpinista). Você lê a Sarjeta #2 clicando aqui, lê a entrevista com Panhoca clicando aqui e lê a seguir a minha conversa com Lobo Ramirez. Ó:

“Eu precisava de um nome que deixasse bem claro qual era a linha da editora…”

Quadro de Victor Bello presente em Úlcera Vórtex

Como surge a Escória Comix? Quando surge a Escória Comix?

Não lembro exatamente, mas acho que foi 2013 ou 2014 que comecei a lançar o zine ESCROTUM pelo selo Gordo Seboso. Era de forma despretensiosa, só pela diversão de fazer quadrinhos e por conta disso comecei a frequentar feiras de publicações independentes, como a Feira Plana e a Ugra Fest. Fui entendendo a maneira que as editoras funcionavam e como era publicar de forma independente. Depois de um tempo fui percebendo que a maioria das publicações eu não gostava, nenhum problema em ter uma esmagadora maioria de material que a gente não gosta sendo publicado, mas eu  sempre senti falta de ter o meu nicho também, então em 2016 decidi começar uma editora que agrupasse autores que seguissem uma linha editorial bem clara e específica, quadrinhos toscos, radicais, mal-educados, grosseiros, vulgares, despretensiosos e por último mas não menos importante com humor. 

Eu sabia que se mantivesse o foco todo dia, toda semana, todo mês, todo ano, uma hora ia dar certo, e se não desse, pelo menos eu tentei e poderia desistir sem peso na consciência.  Sigo focado na Escória Comix.

Por que o nome Escória Comix?

Eu precisava de um nome que deixasse bem claro qual era a linha da editora. Na época eu estava lendo Transmetropolitan, do Warren Ellis, e tinha um termo no quadrinho que era Nova Escória, achei interessante e tomei o ESCÓRIA como nome. A ideia é que tudo que é considerado marginal, desprezível, insignificante, tosco, estranho  pela sociedade é a escória. 

“Aos poucos a Escória Comix vem se tornando autossuficiente”

A capa de Esgoto Carcerário, HQ de Emilly Bonna publicada pelo selo Escória Comix

Qual é o público dos quadrinhos da Escória Comix?

Existe o público que eu gostaria de estar atingindo, ou que eu acho que poderia atingir, e o público de fato. Vou me basear em parte numas estatísticas do Instagram e  Facebook pra responder essa pergunta. A maior parte é de São Paulo, depois vem as cidades de Rio de Janeiro, Curitiba, Brasília, Porto Alegre e Fortaleza. 48% do público é de pessoas entre 25 e 34 anos, 24% tem entre 18 e 24 anos e 20% de pessoas entre 35 e 44 anos, sendo 79% de homens. A maior parte, eu percebo, é de pessoas que estão acostumadas a consumir material independente e alternativo. No geral o público da Escória Comix é bem variado mas não tanto como eu gostaria. Existe uma parte que compra os quadrinhos e gosta e uma parte menor de leitores fiéis que SÃO a escória e tem a mesma paixão que eu com essa tosqueira. Sou eternamente grato a essa gangue. Quem é sabe. 

A Escória Comix é um negócio rentável? Você administra a editora dentro de algum plano de negócios?

Não é, mas aos poucos a Escória Comix vem se tornando autossuficiente. Administro tudo sozinho e sou desorganizado e nem tenho formação ou conhecimento na área. A verdade é que eu me baseio na tentativa e erro, algo deu certo, tento replicar, se deu errado, tento não repetir. Total intuição. Sempre penso o que gostaria publicar e depois o que preciso fazer para realizar, nessa entram os outros produtos, tipo bonés, meias, jaquetas, etc. Cada muamba comprada ajuda no custo dos quadrinhos, que ainda não vendem tanto para se tornarem rentáveis. 

A capa do segundo volume de Úlcera Vórtex, de Victor Bello

Você vive exclusivamente da Escória Comix?

Não. Eu trabalho com ilustração e desenho para tudo que alguém precisar, como rótulos de cerveja, camisetas, capa de álbuns, logomarcas, etc…

Qual o maior sucesso de vendas da Escória Comix?

Sem sombra de dúvidas, eu diria que é o Úlcerta Vortex – Volume I do Victor Bello, mas  não tenho exatamente os números em mãos, pode ser que o NÓIA- Uma História de Vingança, do Diego Gerlach, tenha vendido mais, ou o Asteróides, já que se encontra praticamente esgotado.  

Como foi o seu primeiro contato com o trabalho do Victor Bello? O que você vê de mais especial no trabalho dele?

Foi quando me indicaram o zine dele, Feto em Conserva. Foi uma explosão de frescor e diversão ler aquele zine A5, preto e branco, em sulfite, grampeado, simples, mas potente. O Victor Bello tem um traço próprio bem desenvolvido e claramente possui um estilo de narrativa com abordagem 

“Acho que a única influência que eu sempre tive nas obras é sobre a capa, de resto é totalmente com o autor, eu sou meio chato com a capa”

A capa de O Alpinista, de Victor Bello

Como foi o seu primeiro contato com o trabalho da Emilly Bonna? O que você vê de mais especial no trabalho dela?

O Luiz Berger me enviou uns perfis de Instagram de ilustradores que poderiam ser a cara da Escória e o mais foda era um que usava o nome de NECROSE , era a Emilly Bonna. Curti demais os desenhos nojentos de criaturas deformadas, sempre amei monstrinhos. Ela tem um traço próprio e, desde que conheci o trabalho dela, só a vejo melhorando .

Como foi o seu primeiro contato com o trabalho da Arame Surtado? O que você vê de mais especial no trabalho dela?

Mais uma vez eu acho que foi o Luiz Berger que me mostrou pelo Instagram e de cara já curti os desenhos dela, ela claramente tinha as mesmas referências que eu, ou bem parecidas: filmes trash dos anos 80 e muito heavy metal. 

Como foi o seu primeiro contato com o trabalho do Fabio Vermelho? O que você vê de mais especial no trabalho dele?

Foi em alguma Revista Prego e depois na Revista Pé-de-cabra.  Sem sombra de dúvidas, é o desenho dele, o uso de hachuras é um tesão, sempre gostei desse tipo de traço e o Fábio Vermelho realmente sabe usar.  Não tem uma pessoa que, mesmo não gostando, não diga que ele desenha bem.

“Estou fechando uma parte das publicações de 2020 e por enquanto tem umas sete, sendo três delas de autores que nunca foram publicados pela Escória”

Quadro de O Alpinista, de Victor Bello

Como foi o seu primeiro contato com o trabalho do Diego Gerlach? O que você vê de mais especial no trabalho dele?

Acho que foi com algum gibi que ele publicou pela Prego, talvez o Ano do Bumerangue, ou em alguma outra antologia, mas só fui conhecer mesmo o trabalho dele depois que a gente se conheceu pessoalmente numa Desgráfica (não lembro qual ano). O Gerlach chegou num nível de consciência do próprio trabalho que só alguém que produziu bastante e por um longo tempo chega. O domínio da linguagem e o uso dos símbolos do próprio quadrinho são os brinquedos dessa criatura abissal que, por algum motivo sinistro, não ascende ao alto escalão.

Como é a dinâmica do seu trabalho como editor com os autores da Escória?

A primeira vez que me falaram algo do tipo “bom trabalho de editor” eu fiquei sem entender, porque pra mim eu não estava fazendo nada. Eu perguntava se a pessoa queria fazer um quadrinho e o autor entregava, eu só precisava decidir junto com o autor a capa que seria mais legal e mandar pra gráfica, qual era o trabalho? Mas depois, principalmente nas últimas publicações, eu influenciei em grande parte, pedindo pro autor manter um certo número de páginas, mas também não deu certo porque eles não mantiveram – eu sempre digo que a prioridade era a história, se fosse ficar melhor, tudo bem. Acho que a única influência que eu sempre tive na obra é sobre a capa, de resto é totalmente com o autor, eu sou meio chato com a capa e acredito que ela tem que ser impactante, porque isso ajuda a própria divulgação e venda do quadrinho. 

Depois fui descobrir que editor é o cara chato que pede pro autor mudar coisas no PRÓPRIO trabalho. Eu até entendo que em muitos casos a visão de um editor pode melhorar a história, mas pra ser sincero sempre li as histórias dos autores da Escória e nunca tive vontade de mudar nada, meus comentários sempre foram de apoio e o quanto eu estava achando boa a história, mas aos poucos estou começando a propor algumas ideia, porém para isso o autor tem que estar aberto.  No geral, acho que total liberdade é o melhor caminho.

A capa de NÓIA – Uma História de Vingança, de Diego Gerlach

Qual balanço você faz das publicações da Escória em 2019?

Comecei esse ano com altas expectativas, pela primeira vez comprei um calendário daqueles que dá pra ver todos os meses de uma vez e anotei todas as minhas pretensões de lançamentos do ano, eram mais ou menos uns 12 ou 13 títulos e até agora acho que consegui publicar seis. Então o balanço é: pense alto, faça metade que já é muito. Estou feliz principalmente com a qualidade do material publicado em 2019, pra mim foi o melhor ano da Escória.  

Você tem alguma meta para os quadrinhos da Escória para 2020? Você tem em mente algum número de publicações para o próximo ano?

Acho que a meta é tentar manter o ritmo de publicações, ter uma certa frequência de material novo e fresquinho para nossos mutantes do esgoto.  Vou tentar arriscar umas coisas diferentes também em 2020 mas por enquanto não posso falar nada. Estou fechando uma parte das publicações de 2020 e por enquanto tem umas sete, sendo três delas de autores que nunca foram publicados pela Escória. 

“Os três pilares para a Escória continuar existindo são: vendas no site + não levar calote das lojas + feiras de publicação”

A capa de O Deplorável Caso do Dr. Milton, de Fabio Vermelho

O que você vê de mais interessante acontecendo hoje nos quadrinhos brasileiros?

Sinceramente, eu não sei. Quase não leio mais quadrinhos. Acho que talvez o surgimento de várias obras que são consideradas ‘graphic novels’?  Minha percepção é que a 10 anos atrás tinha mais antologias e agora parece que tem mais autores publicando quadrinhos fechados. Mas eu falo muito da cena independente, específica que eu vivo. Acho que também que a quantidade de mulheres fazendo quadrinhos, às vezes parece que tem um monte agora porque a percepção é de um lugar que não tinha quase nenhuma, mas na real ainda tem muito pouca mina, a tendência é só crescer, logo logo vai aparecer a próxima novela gráfica dos quadrinhos brasileiros que vai ser de uma autora. 

Vivemos tempos muito conservadores, qual você considera o papel de uma editora de quadrinhos underground como Escória dentro desse contexto?

Os “quadrinhos underground” fazem parte de uma contracultura que é totalmente oposta ao conservadorismo, mas já que você citou esse termo específico quero dizer que  não gosto de usar o termo underground comix ou quadrinhos underground, porque pode acabar virando apenas um rótulo estético de certas influências, que eu não nego que a Escória Comix tenha com certeza, a gente bebe da fonte, mas o que realmente importa é a essência de ir contra qualquer pensamento ignorante, falsos moralismos e fanatismos. Uma editora que se propõe a ser um caminho fora disso tudo precisa buscar sempre estar de acordo com essa essência dentro do que se propõe que é publicar quadrinhos.

Quadro de O Deplorável Caso do Dr. Milton, de Fabio Vermelho

Qual a importância de feiras e eventos de quadrinhos e publicações independentes para a manutenção das atividades da Escória? 

Importância VITAL, os três pilares para a Escória continuar existindo são: vendas no site + não levar calote das lojas + feiras de publicação.  Nenhuma dessas coisas por si só segura a bronca no fim do mês, mas todas elas juntas já dão um respiro e aquela injeção na parada toda. As feiras são pontos cruciais é quando a gente pode fazer lançamentos e ter aquela resposta instantânea, divulgar o trabalho direto no olho no olho, conversar com várias pessoas que estão no mesmo rolê e ver uma parte do que está sendo produzido no momento.   

A capa de Asteróides – Estrelas em Fúria, de Lobo Ramirez
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Ramon Vitral

Meu nome é Ramon Vitral, sou jornalista e nasci em Juiz de Fora (MG). Edito o Vitralizado desde 2012 e sou autor do livro Vitralizado - HQs e o Mundo, publicado pela editora MMarte.

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