Papo com Marcelo D’Salete, o autor Angola Janga: “Temos uma subcidadania praticada e reafirmada cotidianamente. O poder permanece na mão de poucos”

Já comentei algumas vezes como considero Angola Janga – Uma História de Palmares o quadrinho brasileiro mais importante publicado em 2017. É um álbum histórico pelos 11 anos que Marcelo D’Salete passou produzindo, por causa dos temas que ele trata e pela qualidade da obra. Para escrever a minha matéria pro UOL sobre a HQ eu fiz duas entrevistas com o autor. Uma delas foi realizada antes que eu tivesse lido o livro, quando ele ainda estava sendo fechado. Nela eu pedi informações sobre o conteúdo do álbum, as pesquisas feitas pelo autor e as técnicas de produção do quadrinho.

A entrevista seguinte foi feita após a leitura do PDF da HQ, com o livro na gráfica, dias antes de sua chegada às livrarias e a publicação da minha matéria. Reúno a seguir as minhas duas conversas com D’Salete. Antes, no entanto, recomendo: leia Angola Janga, depois o meu texto no UOL e então volte pra cá e confira o nosso papo. Combinado?

– Parte 1 –

Eu queria começar sabendo sobre a origem do quadrinho. Você lembra do instante em que teve a ideia de criar Angola Janga?

Angola Janga foi um processo longo. É difícil pensar num começo. Em todo caso, um momento importante foi um curso sobre história do Brasil, focando a população negra, com o professor Petrônio Domingues. Isso cerca de 13 anos atrás. Conheci a história de Palmares com mais detalhes ali.

Você é pesquisador e sei que investiu muito tempo do desenvolvimento estudando o contexto sobre o qual iria tratar. Como foi esse trabalho de pesquisa pra produção do livro?

O trabalho de pesquisa foi muito longo. Engraçado, pois antes não tinha ideia de como isso seria extenso. É como se cada livro e tema levasse a novas pesquisas. Usei muito a biblioteca do Museu Afro Brasil no início. Foi importante para conhecer textos e imagens do período. Sobre Palmares, algumas das referências foram obras do Flávio Gomes, Décio Freitas, Clóvis Moura, Nei Lopes, Edison Carneiro, João Felício, etc. Mas fora isso, foi necessário muito mais para formar um quebra cabeça mais rico sobre o contexto e o tema.

Como disse, eu ainda não li a HQ. Você pode me falar um pouco sobre as tramas do álbum? Ele é semelhante ao Cumbe, misturando histórias fictícias, apesar de inspiradas em relatos reais?

Angola Janga é uma ficção. Me inspirei em fatos e personagens históricos, mas a narrativa é ficcional. E a ficção, em toda sua potência, pode fornecer instrumentos únicos para ver e imaginar nossa história. Um dos personagens principais é o mulato Antônio Soares. Ele é próximo de Zumbi. Há também o Ganga-Zumba, líder mais antigo de Palmares, Ganga-Zona, irmão de Zumba, Acotirene, Andala, os paulistas Domingos Jorge Velho, André Furtado. A história aborda o contexto de escravidão, as entradas contra os vários mocambos de Palmares, a tentativa de acordo de paz com Ganga-Zumba e o poder colonial, e a guerra final contra Palmares.

Este trabalho tem alguma similaridade com Cumbe. São 11 capítulos ao todo mais o posfácio. Gosto de imaginar que cada parte funciona bem isoladamente, mas eles formam uma grande narrativa no conjunto. Por outro lado, há personagens importantes que atravessam quase todos os capítulos e a narrativa tem mais a forma de um romance do que Cumbe.

Quais técnicas de ilustração você utilizou? Houve algum tipo de material específico que predominou enquanto você produzia o quadrinho?

Usei caneta nanquim e pincel com nanquim. Não usei tinta acrílica para as manchas, que era algo comum nos trabalhos anteriores. Nesses anos todos de processo, precisei rever muitas vezes o desenho, pois ele acabou mudando um bocado.

Você trabalhou com um roteiro? Houve alguma dinâmica específica de criação dos textos e da arte?

Em geral, elaboro um roteiro para começar a desenvolver a HQ. Contudo, a narrativa vai se desenvolvendo e procuro aproveitar as ideias que surgem no caminho. Muita coisa nova surge nesse processo. Em Angola Janga, aliás, muitos dos personagens foram surgindo de modo muito orgânico.

O seu trabalho é muito conhecido pela ambientação urbana e dessa vez, assim como em Cumbe, você sai desse contexto. É mais desafiador pra você trabalhar em uma HQ de época, fora dessa ambientação urbana?

Foi muito difícil, para mim, fazer essa transição. Em Cumbe, algumas páginas cheguei a fazer mais de 5 tratamentos até chegar em algo aceitável. Em Angola Janga, foram menos tratamentos, pois já havia desenvolvido mais familiaridade com o contexto. Por outro lado, foi um aprendizado imenso.

Vi definições do Cumbe como uma coletânea de histórias de resistência no Brasil colonial. O Angola Janga vai por esse mesmo caminho?

Palmares foi um evento incrível para o Brasil e para a América como um todo. Era um local onde milhares de negros e negras buscavam autonomia sobre suas vidas, fora do sistema colonial. Um conjunto de diversos mocambos, na Serra da Barriga, extremamente articulados e implicados entre si. Lá eles cultivavam seus alimentos, criavam aves e porcos, chegaram a ter até locais de forja de metais. Isso, por si só, já é uma forma de resistência enorme quanto ao poder colonial, escravocrata e genocida. Eu penso Angola Janga, do quimbundo “pequena Angola”, como uma extensão de Cumbe. Aliás, de certo modo, o contrário é o correto. Embora tenha sido publicado antes, Cumbe surgiu das pesquisas sobre Angola Janga. Os dois livros têm muito em comum.

Qual você considera ser a importância de tratar de resistência e luta em tempos tão nefastos de conservadorismo aflorado e repressão a minorias como estamos vivendo no Brasil – e no mundo?

Essa onda conservadora (e perda de direitos de muitos grupos) é contra o diálogo e qualquer interpretação diferente dos fatos e do modo de ver as coisas. Precisamos criar pontes e favorecer o diálogo. Há várias formas de tentar resistir a isso, mas não podemos esquecer de dialogar quando possível. E a resistência é imprescindível hoje.

– Parte 2 –

Você conta no fim do livro que um dos objetivos do quadrinho é “conduzir a narrativa a partir do olhar dos palmaristas”. Estamos muito viciados em ouvir e ler a nossa história sempre a partir da perspectiva dos dominantes. Qual você acredita ser a importância de ouvir e ler esse outro lado da história?

Nossa história conta com a presença e luta de grupos negros, populares e indígenas. De formas diferentes, eles se opuseram ou negociaram, quando possível, com um modelo colonial baseado em forte hierarquia social. Conhecemos a perspectiva das elites sobre isso, mas a história pela ótica dos oprimidos ainda é pouco evidente. Explorar esse universo pode ser significativo para a realidade atual. Não apenas para conhecer esses fatos, mas também para gerar novas formas de compreender a sociedade hoje. No Brasil, temos uma subcidadania praticada e reafirmada cotidianamente. O poder permanece na mão de poucos. Isso só é possível a partir de estruturas de poder e discriminação eficientes que permanecem desde o período colonial.

Você ressalta o papel significativo da ficção nesse empenho de narrar a perspectiva dos palmaristas. Ainda assim, mesmo sendo uma ficção, você vê potencial didático no trabalho que produziu?

Em Angola Janga a ficção tem um papel fundamental. Considero que ela é essencial para contar, com a força que espero, uma narrativa como a de Palmares. Os fatos históricos ainda são pouco acessíveis a grande parte da população. Neste sentido, a ficção e os quadrinhos podem tecer pontes interessantes para quem deseja conhecer mais. Se isso pode ser usado para fins didáticos, outras pessoas poderão dizer. Cumbe obteve uma boa aceitação nesse universo. Ele foi indicado para leitura em escolas de Portugal e distribuído em bibliotecas de São Paulo. Angola Janga pode ter uma trajetória semelhante.

No seu texto no final do livro você também fala da necessidade de administrar ficção e realidade e de suas decisões voltadas para tornar a narrativa mais concisa e interessante. Você poderia, por favor, falar mais sobre essa dinâmica de administrar essa relação entre fatos e ficção?

Angola Janga é uma ficção que dialoga com fatos históricos. Procurei usar a ficção e os quadrinhos da maneira mais eficaz para esse fim. A história dos mocambos de Palmares é enorme e eu precisava ser conciso ao contá-la. Tentei evitar dados desnecessários, repetitivos etc. Se pudesse e tivesse mais tempo, ainda acrescentaria mais capítulos, mas penso que o livro já tem uma boa extensão como está. O personagem Antônio Soares, por exemplo, surge na história conhecida de Palmares apenas como um dos últimos malungos ao lado de Zumbi na Serra dois Irmãos, em Viçosa, Alagoas. Ao fazer a trama, ele me pareceu o personagem ideal para acompanhar a maior parte da história.

Um tema que considerei muito constante no quadrinho tá sintetizado em uma fala que diz “o futuro é mais do que disputa entre nós”. Você considera uma constante história essa estratégia dos opressores de colocar os oprimidos uns contra os outros?

Não saberia dizer se é uma constante. Mas, certamente, isso ocorreu em nossa história. A estratégia portuguesa utilizou esse dispositivo contra indígenas e africanos. Não apenas os portugueses fizeram isso, mas holandeses, espanhóis, franceses etc. Principalmente no período colonial, além das divisões provocadas pelos colonizadores entre diferentes etnias e povos, os grupos negros armados contra outros exércitos foram os primeiros também a serem traídos. Como exemplo, basta lembrar dos lanceiros negros no sul.

Me chamou muita atenção no livro como você trabalha com elementos icônicos e simbolismos no livro. O capítulo 4, Cicatrizes, é repleto desses símbolos e no glossário do livro você explica o significado de alguns deles. Como foi o trabalho de chegar nesses ícones e incluí-los na trama?

Este foi um processo longo e demorado. Meu jeito de contar é com pouco texto. Não queria fazer Palmares de uma maneira muito diferente disso. A narrativa precisava ser contada de modo significativo em termos de imagem. Desconhecemos absurdamente as culturas de origem banto que formaram nosso país, seus conceitos, modo de ver as coisas e símbolos. Por esse motivo, além de autores nacionais, precisei recorrer a estudiosos africanos. Isso me ajudou a conhecer e compreender alguns símbolos. O povo tchokwe, do nordeste de Angola, por exemplo, tem um rico universo de desenhos chamados sona. São antigos desenhos feitos na areia, cheios de mensagens e significados. Além deles, tem os adinkra, de origem ashanti, do centro-oeste africano. Bem, tentei inseri-los na trama de maneira apropriada, condensando ideias, momentos e sentimentos.

Nesse quarto capítulo eu também acho muito interessante um trabalho de você faz que parece o zoom de uma câmera. Você foca em elementos muito específicos, depois vai abrindo o plano e em seguida dá o zoom outra vez. Você pode comentar, por favor, o uso dessa técnica?

Esse é um recurso usado por diversos autores. Talvez seja uma influência do cinema também. Tenho dificuldade em pensar a construção da página de quadrinhos de outro modo. Considero monótono trabalhar com o personagem em plano inteiro. Muitas vezes, num quadro, ideias podem ser sintetizadas a partir do foco em objetos ou pequenas ações. Por outro lado, é preciso abrir o plano para situar melhor a ação e fornecer mais elementos ao leitor. Gosto de usar esses recursos ao construir as páginas.

O sétimo capítulo, Selvagens, é focado principalmente nos bandeirantes. Há uma citação no livro que define os bandeirantes como “uma tropa de choque a serviço do colonialismo português” e essa interpretação tem se fortalecido ao longo dos últimos anos – os protestos constantes feitos no Monumento às Bandeiras em frente ao Parque do Ibirapuera são um bom exemplo disso. Qual você acredita ser a importância de revisitar, questionar e reinterpretar a história como é contada nas escolas?

Monumentos são utilizados para marcar o tempo, o espaço e configurar um modo de ver a história de um grupo. Hoje, os bandeirantes não sintetizam mais uma narrativa nacional significativa para grande parte da população. Eles foram parte responsável pela matança e extermínio de muitos povos indígenas. Precisamos construir uma leitura mais complexa desses monumentos hoje. Um monumento não precisa ser permanente. Ele pode ser retirado, alterado, como já aconteceu em muitos locais. Em todo caso, algo que precisamos muito, imagino, é ter espaço para outros monumentos, evidenciando outros lados da história. Em São Paulo, por exemplo, os monumentos que mostram a história da população negra são pouquíssimos. Com certeza, grande parte das pessoas não consegue nem ao menos citar um deles.

Qual a maior lição que você teve enquanto produzia esse livro? Houve alguma interpretação ou perspectiva sua em particular que mudou profundamente enquanto pesquisava e criava a HQ?

Muita coisa mudou nesses últimos 11 anos, desde quando fiz o primeiro roteiro para Angola Janga. Alterou o meu modo de compreender o passado e também o presente, em especial sobre os antigos e novos mocambos. Os remanescentes de quilombos atuais, com suas diferentes origens, ainda resistem e atestam a violência de nossa história. Ainda hoje, essas pessoas estão sistematicamente ameaçadas por fazendeiros, empreendimentos milionários etc. De certo modo, isso remete a ausência de reforma agrária desde o pós-abolição. Um elemento a mais que agrava brutalmente o desnível social em que vivemos. Neste ano, os conflitos envolvendo terras aumentaram e tendem a aumentar ainda mais devido aos interesses dos grupos mais poderosos e a falta de uma legislação contra essas ameaças.

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Ramon Vitral

Meu nome é Ramon Vitral, sou jornalista e nasci em Juiz de Fora (MG). Edito o Vitralizado desde 2012 e sou autor do livro Vitralizado - HQs e o Mundo, publicado pela editora MMarte.

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