Papo com Marcelo D’Salete – Volume 2

Na primeira vez que conversei com o Marcelo D’Salete, ele me adiantou um pouco sobre o trabalho que estava produzindo. Na época ainda sem nome, o quadrinho seria ambientado no Brasil colonial. Pouco mais de um ano depois, Cumbe chegou às livrarias como candidato potencial a uma das melhores hqs lançadas no Brasil em 2014. Lançado pela Editora Veneta e custando R$29,90, o livro com 176 páginas apresenta quatro contos protagonizados por escravos e é mais um dos títulos produzidos graças a verbas oriunda do Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo (ProAC). A arte em preto e branco do autor sai da São Paulo urbana de álbuns anteriores como Noite Luz e Encruzilhada. O vasto trabalho de pesquisa para o livro resultou em três páginas de glossário que aprofundam ainda mais a experiência de leitura. No final do quadrinho, fica a ânsia por mais páginas e histórias. Conversei com o Marcelo sobre a produção do livro e ele promete para breve um projeto ainda mais ambicioso sobre o mesmo tema. Segue o nosso papo:

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Ano passado você me falou que as HQs sobre Palmares são poucas em relação “a grandiosidade e as possibilidades narrativas da história original”. Cumbe surge da vontade de suprir essa lacuna?

Sim. Cumbe é uma primeira tentativa de abordar parte da história colonial brasileira, escravista, a partir de um ponto de vista de negros e africanos escravizados. As histórias surgiram a partir de pesquisas sobre o período. Pequenos relatos de casos reais foram o início para criar narrativas maiores. Além disso, fiz estudos sobre culturas banto (da região do Congo e Angola) para construir os personagens. Grande parte dos africanos trazidos para o Brasil eram desse local. Existem poucas narrativas sobre o período da escravidão que apresentem papéis negros para além da situação de personagens secundários. O livro Cumbe é uma tentativa de rever e compreender esse passado. Em um comentário recente, usaram incorretamente a palavra servidão e sujeição para se referir ao livro. A forma de leitura de Cumbe é outra, procuro mostrar a violência intrínseca da escravidão e as diferentes formas de resistência negra contra esse sistema.

Se não me engano, Cumbe é a sua obra mais longa, certo? Quanto tempo você demorou pra encerrar o livro, entre ter a ideia e o lançamento?

As pesquisas sobre o Brasil colonial começaram em 2006. Elaborei os primeiros roteiros para essas histórias nos anos seguintes. Nos últimos três anos trabalhei nos esboços, pesquisa de imagens e finalização. Foi um trabalho longo, mas adequado para amadurecer as histórias e os desenhos. Cumbe por enquanto é o meu trabalho mais longo.

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O livro é composto por quatro contos. Como você chegou a essas histórias?

As histórias de Cumbe surgiram a partir de relatos sobre casos de pessoas escravizadas. Infelizmente não temos muitos registros escritos de negros e negras daquele período. No entanto, como muitos casos envolvendo escravos aparecem em registros policiais e judiciais, a partir disso foi possível vislumbrar algumas narrativas. O livro Trabalho Livre, Trabalho escravo, de Furtado e Libby, foi uma referência importante nesse sentido. No caso dos estudos sobre língua e cultura banto, os textos do José Redinha, Robert Slenes e Nei Lopes foram fundamentais.

Os seus trabalhos anteriores a Cumbe possuem uma forte ambientação urbana. Como foi fazer um quadrinho de época?

Não foi fácil desenvolver essas histórias. O meu traço estava voltado a representar grandes cidades e situações urbanas. Imagino que isso é visível no livro Noite Luz (2008) e Encruzilhada (2011). Só me senti seguro em representar graficamente o Brasil colonial depois de grande pesquisa de imagens da época. Mas, no fim, considero que foi um desafio e aprendizado incríveis.

E você também costuma tratar bastante de questões sociais. Cumbe não é ambientado nos dias de hoje, mas também aborda problemas sociais da nossa sociedade. Aliás, talvez trate da origem de alguns dos mais graves problemas do nosso presente – como racismo, violência e pobreza. Qual a diferença de tratar desses mesmos temas, mas em um trabalho de época?

Há uma linha narrativa que de fato costura nossa realidade social desde o Brasil colonial. A questão da exclusão de grande parcela da população negra e da manutenção do poder na mão de uma elite branca é um fato que une esses vários períodos da história. Hoje, imagino que o desafio é desconstruir essa estrutura a fim de construir um outro tipo de sociedade, não marcada apenas pela exclusão.

O glossário e a bibliografia de Cume são bem fartos. Como foi pra você produzir ficção e histórias em quadrinhos tendo uma base documental tão vasta?

Essa pesquisa foi a base para construir histórias sobre o período escravista no Brasil, mas o meu foco foi elaborar narrativas visual e dramaticamente interessantes. Não pretendia apenas uma narrativa de época, mas desenvolver uma forma de contar instigante e potente. No fim do livro, o texto do Allan da Rosa, o glossário e a bibliografia tem a intenção de trazer elementos importantes para a melhor compreensão de cada narrativa.

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Também no ano passado você ainda não tinha uma editora pra Cumbe. Você comentou que preferia acabar o quadrinho e depois procuraria onde publicar. Como você chegou à Veneta e como eles receberam o seu trabalho já finalizado?

O Rogério de Campos da Veneta recebeu o meu trabalho muito bem. Histórias em quadrinhos sobre esse tema são poucas e creio que temos poucos editores com visão para esse tipo de narrativa. O Rogério apoiou e se interessou em publicar o álbum desde o início.

Como foi a sua experiência com o Proac?

Boa. Essa forma de apoio aos quadrinhos é essencial para fomentar a produção de profissionais da área (antigos e novos). Desse modo eles podem se dedicar a criar quadrinhos e não migrarem para outras áreas mais interessantes financeiramente. Assim como em outras artes, os quadrinhos são um veículo relevante para desenvolver possibilidades de criação e de análise do nosso passado e presente .

E você já está trabalhando em algum próximo projeto? Vai tentar voltar a produzir algo via Proac?

Cumbe foi uma primeira forma de abordar a história dos povos africanos e negros escravizados no Brasil. Ainda tenho o projeto de elaborar uma narrativa sobre a história do Quilombo dos Palmares. Esse é com certeza o meu projeto mais ambicioso por enquanto. Pretendo ter tudo pronto nos próximos anos. Quando o projeto estiver mais próximo do fim devo começar a me preocupar com a forma de publicação. Além desse, ainda tenho muitas histórias sobre a nossa sociedade atual para contar. Ideias não faltam.

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Ramon Vitral

Meu nome é Ramon Vitral, sou jornalista e nasci em Juiz de Fora (MG). Edito o Vitralizado desde 2012 e sou autor do livro Vitralizado - HQs e o Mundo, publicado pela editora MMarte.

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