Lembro que uma das minhas primeiras compras na Gibiteria, logo quando conheci a loja, foi um pôster do LoveHurts do Murilo Martins. Tinha ficado sabendo sobre a série pela coluna do Érico Assis no blog da Companhia das Letras: “Murilo Martins resume em Love Hurts o boy-meets-girl-boy-loses-girl em gráficos indispensáveis à parede do quarto dos corações partidos. Ele adora(va) R.E.M., idolatra Chris Ware e revela nos cantos de página a ditadura da namorada-editora-hauptmann Alessandra”. Na minha busca por HQs nacionais que havia deixado passar pelo período em que morei em Londres, fui logo atrás de Eu Sou Um Pastor Alemão. Foi mais um dos grandes lançamentos brasileiros de 2014 que fui ler apenas em 2015. Com um texto refinado pra caramba, uma tremenda narrativa e um acabamento lindo, o gibi mostra a rotina de um orgulhoso pastor alemão com o rebanho de sua responsabilidade.
Além dos eventos de quadrinhos e feiras de publicações independentes de São Paulo em que o quadrinista está sempre presente, ele também bate cartão em convenções do tipo nos Estados Unidos e no Canadá. Já esteve nas Comic Cons de São Diego e Nova York e outros eventos ainda mais interessantes focados mesmo em quadrinhos. Fugindo até do padrão usual da coisa toda, ele até lançou primeiro lá fora seu trabalho mais famoso e só depois traduziu pro português. Fiz uma entrevista por email com o Murilo. Conversamos sobre o início da carreira dele com quadrinhos, a cena brasileira de HQs, as inspirações para Eu Sou Um Pastor Alemão e seus próximos projetos. Papo bem bão. Ó:
Como começou sua relação com quadrinhos? Quando você começou a trabalhar com HQs?
Eu tive sorte, minha mãe é professora e meu pai trabalhava com educação. Então a gente tinha muito livro em casa. E meu pai teve uma “fase quadrinhos” (de vez em quando ele ainda lê – outro dia me disse que tinha lido o “Les Ignorants”). Ele gostava de bastante coisa, tinha Ovelha Negra, uns franceses, coleções do Henfil, a Turma do Pererê do Ziraldo, mas principalmente Asterix e Mafalda. Agora que estou respondendo pensei que deve ser por isso que sou tão apegado ao formato “livro de quadrinhos”, tenho uma memória afetiva tão forte com Asterix… é uma das primeiras coisas que eu lembro de ler, acho que antes mesmo da Turma da Mônica. Como eu gostava de desenhar, comecei a copiar uns personagens. Lembro de ficar intrigadíssimo essa coisa dos exageros nos desenhos, aqueles centuriões “tronco + pernas finas” geniais do Uderzo, contrastando com as “crianças-toquinho” do Quino.
Trabalhar MESMO com HQ é uma coisa muito recente… eu só passei a me ligar que era trabalho uns dois anos atrás. Porque eu ainda vivo muito mais do meu trabalho de direção de arte e design do que de quadrinhos, mas me liguei quando o Guazelli me falou “ah, meu filho, vendeu, agora é trabalho!”.
Você pode falar um pouco de cada um dos seus trabalhos publicados até agora? Como surgiu o Love Hurts?
Há muitas eras eu fazia um zine chamado Luke Skywalker with Diamonds (com o Olavo Rocha e o Guilherme Caldas – que acabou de fazer o excelente Relatos da Greve em Curitiba). Era uma época, pré-histórica, pré-internet, a gente só distribuía zine na faculdade e pelo correio, naquelas redes de zineiros que rolavam. Quando comecei a trabalhar como diretor de arte o zine meio que morreu, meu trabalho mais autoral foi pra segundo plano. De vez em quando eu soltava um zine, fazia umas gravuras, escrevia uns roteiros que não iam pra frente, tudo muito esporádico.
E foi assim até 2010, quando eu fui pra Rio ComiCon ajudar um amigo num documentário sobre o Gabriel (Bá) e o Fábio (Moon), e me bateu um certo desespero de não estar produzindo. Falei com o Gabriel que queria ter uma HQ pro ano seguinte, e se eu podia dividir o stand com eles. Toparam, e eu juntei todas as histórias não-terminadas, as ideias perdidas nas gavetas, roubei o nome do zine da minha namorada e nasceu a LoveHurts.
(O Guilherme teve um surto saudosista uns meses atrás e decidiu fazer uma nova edição do Luke, o Nº 5, então mandei uma história pra ele. Ele lançou lá em Curitiba, ainda não vi como ficou)
E hoje você tem um traço muito bem definido e com bastante personalidade? Demorou pra você chegar nele?
Eu ainda acho que varia muito pro meu gosto. Isso vem desses anos trabalhando como diretor de arte, onde eu tinha que fazer justamente o contrário: não ter um estilo próprio, às vezes até mimetizar outros estilos dependendo do trabalho.
Eu gosto muito daquele painel que você fala um pouco de você e mostra algumas de suas influências. Como foi a produção daquela ilustração? Você chegou a fazer uma versão escrita antes de ilustrar?
Eu fiz um boneco da LoveHurts ainda sem essa ilustração e mostrei pra Ale (minha namorada, que está ali na HQ) já com esse plano maligno de pegar algumas das reações dela pra usar naquelas mini-intervenções que rolam ao longo do livro. E rolou essa conversa, eu disse algo do tipo ”Pronto, é isso…” e ela disse “nãão, tem que falar de ti, tem que ter uns agradecimentos…”. Daí eu tive essa ideia de fazer uma espécie de “biografia-infográfico”. Fui lembrando das coisas e desenhando direto, pra tentar fazer uma espécie de “mapa de memória”. E deu nessa história meio não-linear, em que o leitor poder seguir caminhos diferentes e gastar mais tempo com os detalhes se quiser.
Nesse mesmo painel estão várias de suas influências. Henfil, Angeli, Laerte, Quino, Alan Moore, Mike Mignola, Neil Gaiman,…enfim, um monte de gente, mas há um destaque pro Chris Ware. Aquele painel todo tem muito o estilo do Chris Ware e vejo ele no seu traço também. Ele é sua principal influência?
Na época era. Não só porque eu chapei quando via as coisas dele pela primeira vez, num dos ACME Novelty (“ué, pode isso? Misturar design, fluxo de pensamento, memória, ícones, textos?”), mas também porque, por tabela, ele me ajudou a conhecer um monte de outros artistas. Quando gosto de um autor eu tento pesquisar o que ELE gosta (tipo uma “árvore genealógica artística”). Comecei a ir atrás de mais coisas dele, e quando caiu na minha mão aquela coletânea da McSweeneys que ele editou, eu conheci a Lynda Barry, o Chester Brown, o Jim Woodring e outros tantos, e por conta deles eu conheci outros tantos… hoje já dava pra colocar um monte de outros artistas nesse meu desenho.
Ano passado você publicou o Eu Sou um Pastor Alemão. Até agora, é seu trabalho mais distante da linha que você vinha seguindo no Love Hurts né?
Estou aqui escrevendo e folheando a LoveHurts pra te responder… A maioria das ideias ali foram pensadas pra ser zines separados, feitos em épocas diferentes. Virou meio que esse zine-HQ. Por acaso ela deu certo, mas foi feita com um processo jeito meio difícil de reproduzir. Acho que por isso não fiz outra até hoje, talvez esteja esperando juntar mais coisas pra ficar na mesma vibe. O Pastor Alemão foi bem diferente, eu queria ver como eu funcionava num processo mais “linear”: argumento, roteiro, desenho.
E por que lançar o Eu Sou um Pastor Alemão primeiro em inglês?
Eu traduzi e levei a LoveHurts pra San Diego em 2012, e lá eu conheci um cara que cuidava de uma feira chamada TCAF – Toronto Comics Arts Festival. Fiquei com vontade de conhecer e queria levar um livro novo pra lá. A feira era em menos de um ano, eu já tinha o argumento do Pastor Alemão e pensei “tá, vou tentar fazer direto em inglês, vai que rola…”. Rolou.
Você costuma ir em convenções de quadrinhos fora do Brasil. Quando começou a ir? Em quais você já foi?
Minha primeira foi SanDiego em 2011 – eu estava sem quadrinho, fui ajudar um amigo nesse mesmo documentário que eu falei. A LoveHurts tava quase pronta, mas eu tinha sido atropelado (tem até isso num detalhe daquela história de agradecimento da LoveHurts) e não deu tempo de terminar, só fui lançar depois que eu voltei, na Rio Comicon. Então com quadrinho mesmo eu fui pra: San Diego e NYCC em 2012; Stumptown, TCAF e MeCAF em 2013; Emerald City, TCAF, MeCAF e SPX no ano passado; e TCAF e MeCAF de novo esse ano.
E como é a experiência de participar desses eventos lá fora? Qual a recepção dos públicos dos eventos em que você já foi ao seu trabalho?
No começo eu estava morrendo de medo de tudo. Primeiro com a LoveHurts traduzida, depois mais ainda com o Pastor Alemão escrito direto em inglês. Tinha medo de falar sobre o livro pras pessoas, de como meu inglês ia funcionar. Apesar de ter pesquisado um monte e pedido ajuda dos amigos gringos, só tranquilizei de verdade quando uma professora de literatura inglesa elogiou a linguagem do I’m a German Shepherd em Toronto.
Tá rolando uma leva interessante de eventos aqui no Brasil. Tanto feiras grandes como a Comic Con Experience quanto outras menores ou então mais focadas em quadrinhos. Como você interpreta essa agitação? Você vê reflexo dessa movimentação no consumo dos seu trabalhos?
Pro independente é essencial, principalmente pra gente que está começando como eu. Por vários motivos: a gente conversa com o público, encontra outros artistas, e ainda vende livros. No meu caso eu tenho sorte porque também vou pra feiras de zines e publicações independentes como a Feira Plana, a Miolos, então eu participo de quase uma feira por mês. Parece muito claro que as feiras tem relação direta com a existência desse “quase mercado” independente que apareceu. É só ver quanta coisa é lançada nas feiras.
E você vê alguma semelhança entre esse eventos que já foi no exterior com os que costuma ir aqui no Brasil? Seja em relação ao público ou às obras sendo vendidas…
Não são muito diferentes no geral, todos tem convidados, feira, palestras… mas cada um varia no conceito, no público, no tamanho, até a geografia influencia. É fácil de ver o quanto a CCXP tem de inspiração em SanDiego, por exemplo. Mas o FIQ eu acho muito singular, não consigo comparar. Acho que a grande diferença são os eventos mais indies, porque eles tem artistas que nunca vieram pra cá – e sei que não vão aparecer por aqui tão cedo. Muitos livros não são nem publicados… só agora Blue Pills tem uma tradução pra português… Jeffey Brown só tem tradução por conta dos livros do Darth Vader…
A economia brasileira não tá bem, o preço do papel é caro e acredito que a maior parte dos leitores de quadrinhos brasileiros ainda é focada em super-heróis. Ao mesmo tempo, fico ansioso por não dar conta da quantidade de HQs autorais, independentes e boas que estão sendo feitas por aqui. Como você lê isso tudo? Por que as pessoas continuam fazendo? Por que você continua fazendo quadrinhos?
Eu também mais ouço falar dessa cena do que efetivamente consigo dar conta. E não é só aqui, o mercado independente americano está bombando de coisas legais. Não sei de quem era esse tweet que eu li outro dia, mas vale perfeitamente pra mim… era algo tipo “the funny thing about working in comics is that you don’t have time to read comics anymore” – depois que eu comecei a fazer quadrinhos, eu leio bem menos quadrinhos! Tento ler nos aviões e ônibus entre viagens, ou então quando tenho um tempinho numa feira. Ou de um jeito bem profissional, quando preciso resolver uma cena ou preciso de uma referência. Mas realmente não estou dando conta de acompanhar.
Por que fazer quadrinhos? Só posso falar por mim, e mesmo assim não consigo explicar bem… é uma decisão meio irracional, uma mistura de amor, curiosidade, um tanto de teimosia. Porque não faz muito sentido, se você pensar bem. As HQs tem essa característica muito ingrata – você lê rápido. Acho que isso passa a impressão, pra algumas pessoas, de que é mais fácil de fazer do que realmente é, ainda mais pra quem tem estilos mais simples e “cartunescos” como o meu. A primeira vez que eu percebi isso foi numa feira gringa: a pessoa pegou o German Shepherd, me perguntou sobre o que era, eu contei e ela começou a ler enquanto eu continuava ali vendendo e conversando com outras pessoas. Eu gosto de ver as reações das pessoas, se elas riem das piadas ou se emocionam, então volta e meia eu dava uma espiada. Ela leu até o fim: em menos de 10 minutos ela já tinha lido o livro que eu demorei quase um ano pra fazer… é meio assustador.
E quais seus próximos trabalhos e projetos?
Com toda a complicação dessa crise econômico-social-política, meu principal projeto esse ano é sobreviver a ele 😉 Estou tendo que pegar mais trabalhos de direção de arte do que eu queria, me sobra pouco tempo pros quadrinhos. Minha saída pra continuar produzindo foi tocar essa série de minicomics sem fala que apareceram na LoveHurts, os Mimimis. Nesse formato eu consigo fazer histórias entre um trabalho e outro, lançar nas feiras depois lançar todos como um livro. A próxima feira que eu tenho é a FestComix. Seria legal ter mais um livro do Pastor Alemão até o final do ano, pra lançar no combo FIQ+CCXP. Dos projetos não-quadrinhos, em agosto vou lançar um zine na Feira Tijuana, e tenho uma exposição e um livro infantil pra terminar em outubro. Pensando bem, com crise e tudo, as coisas estão rolando bem.