A sexta edição da revista A Zica tem como tema “escola, café e videogame”. Com capa de Suryara Bernardi, o mais recente número da publicação editada por Luiz Navarro, Marcos Batista e João Perdigão tem 168 páginas e conta com trabalhos de 73 artistas (brasileiros, argentinos, mexicanos, indianos e portugueses). Sua impressão foi bancada via recursos públicos da Lei Aldir Blanc.
Entrevistei os três editores e perguntei sobre a importância do lançamento dessa nova Zica em meio ao governo de Jair Bolsonaro. A resposta: “Quando ela for lida daqui a muitos anos, será entendida neste contexto neofascista, e os trabalhos produzidos vão ser uma nota histórica importante de que tinha muita gente horrorizada e insatisfeita com este anacronismo que é essa extrema-direita no poder”.
No nosso papo, Navarro, Batista e Perdigão também fizeram um balanço sobre esse sexto número da revista, comentaram suas principais surpresas com essa nova edição e refletiram sobre os mais de 10 anos de existência do título, entre outros temas. Aproveito para recomendar a leitura da minha entrevista com o trio na época do lançamento da Zica #5 e deixo, a seguir, a minha nova conversa com os três. Ó:
“Cada vez mais queremos abarcar diversidades de estilos e artistas”
Tenho perguntando para todo mundo que entrevisto desde o início do ano passado: como estão as coisas aí? Como vocês estão lidando com a pandemia? Ela afetou de alguma forma a produção e a rotina diária de vocês?
Absolutamente. Nós três somos escritores, pesquisadores, livreiros, produtores, comerciantes – em maior ou menor grau todos exercemos estas funções – e a pandemia acabou fechando algumas dessas portas para nós. João e Batista lançaram livros durante a pandemia e não puderam fazer uma rotina de lançamento viajando e divulgando seus trabalhos. A própria Zica não pode ter um lançamento com evento festivo e alegre, como a gente gosta. A Feira Canastra que tem entre seus produtores Luiz e João tem data incerta para a próxima edição, a grana ficou curta para todos nós. Mas a gente não adoeceu, e os nossos, em grande maioria, estão bem, então estamos gratos e atentos.
No editorial da revista vocês explicam a escolha de “escola, café e videogame”. Fiquei com a impressão de vocês irem num tema central/factual/urgente da nossa realidade (escola) a dois métodos escapistas muito convenientes para encarar (café) e fugir (videogame) dessa mesma realidade. Vocês podem fazer um balanço entre as expectativas de vocês quando optaram por esses temas e as obras que receberam?
Os temas em geral seguem a lógica de ter um sobre o Zeitgeist do momento da edição (apocalipse, Rússia, América Latina, propaganda), uma mais comportamental (maconha, bullying, vandalismo) e um mais zoeiro-tema livre (vermes, dinossauro, trevas). Mais ou menos assim que vemos a escolha dos temas. Então ficamos nesta edição com escola como o grande tema da temporada (o zeitgeist), o video-game como o comportamental e o café como tema livre. Mas sempre cremos que não há uma hierarquia entre eles, que todos importam da mesma forma, têm o mesmo peso.
Nesta edição a expectativa era que todos temas trariam boas reflexões e múltiplas abordagens, e foi exatamente o que aconteceu. Já teve edições que um dos temas quase não foi abordado, já teve outras que um dos temas era quase onipresente nos trabalhos. Nesta há um equilíbrio e uma diversidade muito satisfatória, que dão uma dimensão bem grande de leitura da revista.
E como vocês acham que essa nossa atual realidade sócio-econômica-pandêmica impactou o resultado final da revista? Eu tendo a ver coletâneas como A Zica como espaços muito ocupados por obras de humor e não sei se foi o caso dessa edição nova de vocês. Ela me parece mais séria, com algumas obras mais pessimistas e agressivas, do que encontrei em edições prévias. Vocês concordam?
Concordamos em parte. De fato a maior parte das antologias brasileiras desta natureza têm um foco em humor, creio que é um brilho e uma tradição do país. Mas cremos que A Zica está em constante mudança, nunca primamos por ser uma publicação de humor. Cada edição fica à mercê do que recebemos, e apesar de haver um processo de edição, não temos todo esse poder de direcionar a revista para um lado ou outro pois se recebermos somente quadrinhos, ou somente ilustrações, será uma edição que reflete o conteúdo recebido. Por exemplo, a primeira edição era basicamente com trabalhos de artistas de rua, só com ilustrações e textos (sem quadrinhos), a quinta edição é mais bem humorada, a sexta é mais sóbria, com menos peças de humor e mais reflexão.
Esta última achamos que ficou bem engraçada, muitos trabalhos bem humorados também, mesmo que em um humor que talvez reflita o desespero, o desolamento e o cinismo das pessoas ante este mundo e este Brasil de 2021. Não é uma revista sobre a pandemia, mas uma revista produzida durante a pandemia. Inevitavelmente esse contexto influiu nos trabalhos. E engraçado pensar sobre sua percepção, creio que nenhum de nós pensaria que A Zica seria mais ocupada por humor, talvez sempre vimos ela com mais ênfase no protesto. Mas é a visão de cada pessoa que lê que forma a revista, aliado ao material recebido a cada edição.
Repito duas perguntas da entrevista que fiz com vocês sobre a edição passada: o que houve de mais singular durante o desenvolvimento desse sexto número d’A Zica? E o que mais surpreendeu vocês em relação aos trabalhos que receberam?
Uma das coisas que mais nos surpreendeu foi receber e publicar tantos trabalhos do universo LGBTQI+. A Zica nunca recebeu tantos trabalhos que versam sobre o queer como nesta edição. É uma coisa que nos deixa feliz, a revista ser vista por artistas como um espaço para publicação de trabalhos que tocam nesta vivência. Foi muito espontânea essa abordagem, pois nós não incentivamos aos artistas que enviassem trabalhos queers, nem os temas desta edição são particularmente sugestivos para que esta vivência fosse abordada. E cremos que o que isso mostra, como já sabemos, é que o queer está embebido no nosso mundo e atravessa todos os assuntos, então falar de video-game, escola e café, ou qualquer outro assunto, permite este tipo de visão das pessoas que estão vivendo e trabalhando sob esta ótica.
Outra questão que marcou nessa edição foi o processo de desenvolvimento da capa. Nós estávamos pensando se escolhíamos entre algum dos trabalhos recebidos ou se convidávamos um artista para produzir a capa. Numa conversa entre o João e uma amiga, a Débora, surgiu a ideia de fazer uma referência às manifestações dos secundaristas que ocuparam as escolas do país entre 2015 e 2016. Essa ideia surgiu a partir da inspiração de um dos trabalhos que recebemos, da Suryara: uma ilustração de uma estudante negra em cima de uma cadeira com uma bandeira de protesto. Nós não conhecíamos a Suryara nem o trabalho dela e fomos pesquisar. Foi surpreendente. Ela tem um traço delicado e muito bonito. Daí, convidamos ela para a capa. A ideia, que foi uma sugestão também da Débora, foi fazer uma releitura de uma foto emblemática daqueles protestos de uma estudante negra chamada Marcela Nogueira disputando uma carteira com um policial militar. O resultado foi incrível e muito forte. Toda a potência da imagem traduzida em um traço muito delicado. Gostamos muito desta capa. E isso revela outro aspecto surpreendente desta Zica: recebemos muitos trabalhos com traços e estilos mais delicados, mais sensíveis. O que derruba um estigma da Zica ter uma identidade hardcore e só. Cada vez mais queremos abarcar diversidades de estilos e artistas e estamos conseguindo.
“A Zica nunca recebeu tantos trabalhos que versam sobre o queer”
E sobre a proposta da Zica de servir de vitrine para novos talentos: quais autores que nunca tinham saído na revista que mais chamaram atenção de vocês? Confesso ter ficado bastante impressionado com o trabalho de Manda Conti.
Manda Conti foi uma das alegrias que a descoberta traz. Outra é a Suryara, que já comentamos. Falar de nomes é sempre um dodói num tipo de publicação assim, ainda mais pra Zica que novidades e nomes conhecidos são sempre vistos na mesma régua de certa maneira. Mas o trabalho de Ismael Flores é uma surpresa maravilhosa, pois é um ilustrador mexicano de mão cheia que nunca havia publicado um quadrinho, e logo na Zica ele envia um trabalho tão complexo (em termos de execução) e sensível – Memórias de um Mirão, leiam. Temos também os textos, que nesta edição tivemos uma atenção maior em publicar, para que nas próximas edições possamos ter uma adesão maior de quem escreve sem pressão entre quem é jornalista, poeta ou contista, queremos que escritores e escritoras tenham A Zica como um lugar de publicação também. Tem uma participação supimpa do Cecil Silveira que fez nossa primeira duotone, que agora abre as portas para que na próxima edição possamos receber trabalhos em duas cores, e não apenas em escala de cinza. Tem o Diego Gomes que nos divertiu imensamente com sua junção de Hermes e Renato com Charles Darwin, a Bia Shiro com uma porradona riot zoando os macho game. Mas no geral esta é a revista com mais surpresas, o que nos mostra que já circulamos mais do que imaginamos, e mais artistas fora do nosso radar entram em contato conosco, o que nos alegra pois a revista está cumprindo sua missão.
Já são mais de 10 anos desde o lançamento da primeira Zica. Na nossa última conversa vocês já falaram sobre as muitas diferenças que notaram no cenário de quadrinhos/publicações independentes no qual A Zica está inserida. Queria saber agora: nesses mais de 10 anos, vocês notam muitas transformações nos interesses e nas investidas estéticas dos autores desse cenário? Se sim, vocês veem essas transformações presentes de alguma forma nessa sexta Zica?
Totalmente. Os interesses e investidas apresentados nos trabalhos estão bem mais diversos do que o cenário apresentava 10 anos atrás. Como falamos, muitos trabalhos queer, e também mais liberdade e maturidade para falar de sentimentos mais complexos como perdas, amadurecimento e sentimentos íntimos. Creio que de forma inconsciente o habitual de trabalhos passados eram impressionar, pelo visual do trabalho ou pelo choque do discurso. Falo isso não das edições passadas, mas do cenário brasileiro. E assim como a cena artística nacional, que A Zica é mero reflexo, esta edição apresenta trabalhos mais radicais, seja pela honestidade escancarada, sem que o choque seja o gancho que fisgue quem lê, seja pela diversidade de técnicas e estilos, que já não são mais tão espetaculares ou toscos radicais. Temos uma gama de artistas produzindo trabalhos de tudo que é forma, mas menos preocupados em atender uma estética publicitária ou das redes sociais, mas que sejam honestas com a verdade de quem produz, então nesta edição fica bem claro que o desenho mais (tecnicamente) incrível e o mais radicalmente desgraçado não querem agradar uma agenda social, mas sim agradar quem os cria. Ficamos felizes em ver que os artistas e as artistas conseguem veicular mais e melhor suas próprias vozes e verdades, o que talvez fosse ainda incipiente há 10 anos.
A Zica #5 saiu às vésperas das eleições de 2018. Na época perguntei qual vocês consideravam o papel de uma publicação independente, com ares subversivos como A Zica em um contexto de conservadorismo crescente. As coisas pioraram muito de lá para cá. Qual vocês consideram o papel de uma publicação como a Zica hoje, no Brasil de Jair Bolsonaro?
Fundamental, histórica. Nesta edição tivemos noção que ela é um documento histórico para daqui 20, 30, 100 anos. Quando ela for lida daqui a muitos anos, ela será entendida neste contexto neofascista, e os trabalhos produzidos vão ser uma nota histórica importante de que tinha muita gente horrorizada e insatisfeita com este anacronismo que é essa extrema-direita no poder. E para que isso ficasse mais pungente tomamos certas atitudes como inserir os créditos junto das próprias páginas, e não escolher temas correlatos ao momento como a própria pandemia ou o fascimo. Isso contribuiu para que os trabalhos enviados refletissem sobre essas questões de forma mais mundana, dando aos leitores futuros essa noção de que quem viveu e estava ativo durante esse período falava de assuntos da vida, da liberdade, do entretenimento, falando desta realidade atual de forma escancarada ou sutil, formando assim um mosaico mais complexo e completo deste nossos tempos.
Ter a marca deste governo na quarta capa é a cereja do bolo. Fazer esta revista com recursos públicos (via Lei Aldir Blanc) durante este governo é uma retomada de posse e marcação de território para produção cultural. E criar uma revista que se opõe a tudo que estas marcas impressas na nossa contracapa é uma das coisas mais gostosas que a revista nos permitiu criar.
Outro ponto importante: é um tesão produzir trabalhos editoriais impressos, gráficos, feitos de papel, em pleno 2021, em contraposição à onipresença das telas e dos conteúdos digitais, virtuais. É muito bom criar espaços para artistas produzirem sem os moldes e expectativas de uma mídia como o Instagram.
“É um tesão produzir trabalhos editoriais impressos em pleno 2021”
Última! Pediria para cada um dos três, por favor: você pode recomendar algo que esteja lendo, assistindo ou ouvindo no momento?
Batista: minha recomendação é o novo single da banda Isso, de Belo Horizonte, com a música A Estrada, belíssima composição e grande gravação; a biografia do João Perdigão para Guignard, chamada Balões, vida e tempo de Guignard que estou lendo; e o gibi DF Medieval, do Munha da 7 e do Gabriel Mombasca, ambos de Brasília, que contam a história da Idade Média do DF de forma absolutamente engraçada e original (no momento o livro está no Catarse e já atingiu a meta, mas conheço o projeto há anos, e já li boa parte do material publicado em zine, e é incrível).
Luiz: Durante a pandemia, não tem jeito, é surra de Netflix rs. Tenho visto muitos filmes e séries ótimas. Entre os mais recentes que vi, tem o Judas, o Messias Negro e A Voz Suprema do Blues, esse último com atuações muito boas do Chadwick Boseman e da Viola Davis. Nele, me chama a atenção a história da produção cultural independente americana, com suas pequenas gravadoras musicais, e me remete ao que vivemos hoje no universo das publicações, com muitos artistas e pequenas editoras se profissionalizando. O documentário do Elvis Presley também é muito legal pra observar esse universo. Já sobre o universo maluco das artes plásticas, tem o documentário Fake Art, que dá uma ideia de como é doida a forma como o capitalismo lida com a arte. Uma animação: Midnight Gospel, é bem pop mas vale a pena assistir. E tão rolando várias produções não americanas muito boas, como a série sueca Dinheiro Fácil (Snabba Cash), que tem um ritmo e um estilo muito legais. Entre os brasileiros, sugiro o Joaquim, filme biográfico sobre o Tiradentes, do mesmo diretor de Cinema Aspirinas e Urubus, e o Arábia, dos mineiros Affonso Uchoa e João Dumans. Videogame: tô viciado em Two Dots, um quebra cabeça para celular, muito inteligente e bem feito.
João: Trabalho como pesquisador e escritor, mas meu consumo cotidiano geralmente tá relacionado com trabalhos de pesquisa e documentário – amo! O último livro que li e gostei muito foi Enverga, mas não quebra: Cintura Fina em Belo Horizonte, do Luiz Morando, que é um pesquisador monstrão da memória LGBTQI+ de BH, que através de documentos, revela a vida de Cintura Fina, que até então era uma figura mitológica que só era conhecida nossa através de sua representação na mini-série Hilda Furacão – e a abordagem é bem diferente. Outro livro que chapei foi História da poesia visual brasileira, organizado pelo Paulo Bruscky, que fez uma compilação belíssima sobre a produção gráfica nacional dos últimos 100 anos de uma maneira muito bonita. O que conto quando conto como piada, do Batista virou um livro de cabeceira aqui em casa, é pra ler várias vezes e rachar de rir. Já de documentário, tenho pirado muito em festivais que me mostram coisas muito boas produzidas além da bolha Netflix/Amazon, como É Tudo Verdade (de docs), e mais recente, o In Edit Brasil (de docs musicais), além do bom e velho forum makingoff.org, que me aplica outros tantos -destes aí, vou citar três; Tio Tommy – O homem que fundou a News-Week (2021), sobre o empresário/espião norte-americano que viveu no Brasil, SpeedfreakS: Psicopata camarada (2021), sobre a trajetória do rapper morto misteriosamente em Niterói e Falso ou verdadeiro – Fabricando ignorância (2021), produção do canal de TV alemão DW sobre a invenção de revisionismo científico patrocinado pelas grandes corporações.E de música, vou citar três sons de diferentes gêneros; Matéria Prima, Divergência Socialista e Arca.