O quadrinista Pablito Aguiar conheceu o trabalho da jornalista Eliane Brum após vê-la sendo entrevistada pelo apresentador Antônio Abujamra (1932-2015), em uma edição de 2013 do programa Provocações. Ele diz ter ficado “impactado com a voz doce dela e ao mesmo tempo a fala tão forte sobre como ela enxerga o jornalismo e a vida”. As 80 páginas de Almoço: Uma Conversa com Eliane Brum (Arquipélago) apresentam, em quadrinhos, uma entrevista do autor com a jornalista na casa dela, em Altamira, no Pará.
Ao longo dos últimos anos, Pablito se tornou um especialista em grandes entrevistas com figuras anônimas. Em 2017 ele publicou Alvorada em Quadrinhos, reunindo histórias de 23 moradores de sua cidade natal, Alvorada, no Rio Grande do Sul. Durante a pandemia do novo coronavírus, ele produziu a série Fala que eu Desenho, sobre vivências de diferentes pessoas durante seus períodos de isolamento social. Ele é um dos expoentes de uma cena brasileira de jornalismo em quadrinhos que ainda conta com Carol Ito, Gabriela Güllich, Cecília Marins, Alexandre De Maio e outros.
Em Almoço, Pablito faz uso de seu traço cada vez mais minimalista para apresentar algumas das principais reflexões em curso na mente de uma das jornalistas brasileiras mais premiadas e reconhecidas de sua geração – e grande inspiração para o trabalho jornalístico desenvolvido por ele.
O álbum mostra Brum preparando um almoço para o quadrinista enquanto ela conta suas motivações por trás de sua mudança para o norte do país e o início de seus trabalhos na Sumaúma – Jornalismo do Centro do Mundo, plataforma de jornalismo baseada na Amazônia e voltada para a cobertura de “uma guerra contra a natureza”.
Mandei algumas perguntas por email para Pablito Aguiar sobre o desenvolvimento de Almoço, sua admiração por Eliane Brum e seus trabalhos com jornalismo em quadrinhos. Compartilho a seguir a íntegra dessa conversa. Saca só que massa:
“O que me tocou primeiro foi ver como ela ama ser jornalista”
Você se lembra do seu primeiro contato com o trabalho da Eliane Brum? Você se lembra de qual reportagem foi e quais foram suas impressões sobre ela?
Eu lembro sim, muito bem. Foi a [quadrinista] Grazi Fonseca que me apresentou pela primeira vez uma entrevista da Eliane Brum, na TV Cultura, no antigo programa Provocações com o Abujamra. A Grazi viu o meu interesse em entrevistar pessoas e disse que tinha uma jornalista que eu iria adorar. Eu não sabia quem era a Eliane. Eu fiquei impactado com a voz doce dela e ao mesmo tempo a fala tão forte sobre como ela enxerga o jornalismo e a vida. E, a partir daí, fui lendo todos os livros da Eliane e vendo todos os vídeos dela no YouTube e me transformando a cada uma dessas experiências.
E o que você vê de mais especial no trabalho da Eliane Brum?
Foi com a Eliane que aprendi sobre ser repórter, o cuidado com o entrevistado, a ética, a importância de checar os fatos… A Eliane tem um jeito delicado e ao mesmo tempo intenso de escrever os textos que deixam o leitor quase sem respiração, mas acho que o que me tocou primeiro foi ver como ela ama ser jornalista. No posfácio do livro A Vida que Ninguém vê ela diz:
“Ser repórter é um dos grandes caminhos para entrar na vida (principalmente a alheia) com os dois pés e com estilo. Desde pequena, o que mais me fascinava era passar pelas casas e prédios de apartamentos, adivinhar a luz lá dentro e imaginar o que acontecia, que vidas eram aquelas, com o que sonhavam, que dramas tinham, o que as fazia rir. Pronto. Arranjei uma maneira de entrar em qualquer casa iluminada por dentro, mesmo que seja com uma vela. Ser repórter não tem preço. Em todos os sentidos”.
Ela fala que quando percebeu que poderia entrar em qualquer lugar, conversar com qualquer pessoa, com um bloquinho e uma caneta na mão, se encantou pela profissão. Para mim também foi assim. Quando percebi que poderia conhecer qualquer pessoa com um gravador e a promessa de fazer um quadrinho, me apaixonei. Sabe, e ainda contar histórias que valorizem a vida das pessoas! Só vantagens. Me vi nesse amor que a Eliane tem pelo jornalismo e decidi que era isso que gostaria de ser.
“Sempre procuro que a entrevista pareça uma conversa”
O que significou para você essa oportunidade de conversar com a Eliane Brum?
Para ter uma ideia, eu já vinha planejando ir para a Altamira antes da pandemia. Planejava entrevistar pessoas da cidade e tentar encontrar a Eliane. Não seria fácil. Eu não tinha ninguém para me apresentá-la. Quando recebi uma mensagem da editora Arquipélago, que também edita os livros da Eliane, em abril de 2022, dizendo que gostariam de conversar comigo sobre um projeto que unisse o meu trabalho com o dela, fiquei sem acreditar. Era ainda mais do que eu estava me permitindo sonhar. Era um trabalho direto com a Eliane. Ainda não estava certo sobre como seria esse projeto, então fiz uma proposta para eles: e se eu fosse até Altamira, no Pará, conversar com a Eliane Brum na casa dela? E eles toparam!
Encontrar a Eliane significou a realização de um sonho e ouvir dela que o meu trabalho era importante e que ela gostou de conversar comigo me fizeram acreditar ainda mais nos quadrinhos que eu faço.
Eu fico curioso em relação aos seus métodos de trabalhos. Como são os seus preparativos antes de uma entrevista? Você grava as suas entrevistas? Você tira fotos?
No caso da Eliane, eu pensei bastante que perguntas fazer e no dia levei um roteiro escrito no bloco de desenho. Mas sempre procuro que a entrevista pareça uma conversa, para que ela flua naturalmente com perguntas que façam sentido na sequência. Me guio muito pela minha curiosidade, e as perguntas que anoto previamente eu uso só caso eu não consiga pensar em nenhuma questão. Paralelo às perguntas, eu tiro muitas e muitas fotos, e faço vídeos também durante a conversa. Sempre com um gravador ligado, claro, porque a minha memória é péssima.
Acho entrevistas ao vivo, sejam pessoalmente ou por telefone, mais interessantes, mas confesso que odeio transcrever. Me fala também, por favor, sobre suas rotinas pós-entrevistas? Você transcreve tudo? Você tem algum método pessoal para selecionar os “melhores momentos” de cada conversa?
É chato mesmo transcrever, mas eu transcrevo tudo ainda. Acho importante ouvir tudo de novo, sabe? Porque para mim, quando estou em casa transcrevendo, acabo ouvindo com mais atenção. Sem distrações. Vou transcrevendo, sentindo tudo de novo e já pensando no que foi importante na nossa conversa. Depois de transcrita a entrevista, eu imprimo (a transcrição da Eliane deu 14 páginas) e vou destacando com o lápis as partes que eu considero mais importantes. Depois imagino como vai ser a narrativa da história e começo a montar, como um mosaico, as falas da pessoa no quadrinho.
“O meu objetivo é que o leitor tenha a experiência mais próxima possível da que eu tive”
Como você e os seus editores chegaram no recorte desse livro com a Eliane Brum? Em qual momento você determinou que o foco na obra seria nesse seu almoço com ela?
Foi lendo o livro Banzeiro Òkòtó, da Eliane Brum, publicado pela Companhia das Letras, que eu tive essa ideia. Na página 371 ela fala: “Cozinhar feijão é como elaboro magicamente a minha vida. Em fogo lento, tirando o máximo de sabor daquilo que a terra me dá, usando temperos e ervas como bruxa.”
Quando li isso, pensei que seria muito bonito se eu tivesse a oportunidade de conhecer e desenhar esse lado caseiro da Eliane e ao mesmo tempo conversar sobre assuntos tão importantes para ela. Esse momento na cozinha, onde ela reflete sobre a vida, me pareceu ideal. E felizmente ela aceitou.
Mas o livro acabou indo além só do preparo do feijão, e virou um livro em que ela prepara todo o almoço. O feijão, o arroz, a salada, o suco de cupuaçu… Como foi no nosso encontro. E cada um desses elementos acabou virando um capítulo do livro.
São muito comuns obras de jornalismo em quadrinhos com jornalistas se colocando como personagens. Por que a sua opção por não se retratar na HQ?
Eu adoro livros e quadrinhos onde o repórter se coloca como personagem. A própria Eliane faz isso. Mas nos meus quadrinhos eu fiz uma escolha narrativa diferente. Procuro criar a impressão de que o entrevistado esteja conversando com o leitor, e não comigo. O meu objetivo é que o leitor tenha a experiência mais próxima possível da que eu tive, por isso desapareço e coloco ele no meu lugar.
“Cada palavra escolhida diz muito sobre a personalidade da pessoa”
Eu gosto de uma reflexão proposta pelo Joe Sacco no livro Reportagens que ele questiona “como conciliar a subjetividade inerente aos desenhos com a verdade objetiva que se aspira em uma matéria jornalística?”. Eu repasso a pergunta para você: como?
Pois é, acredito que o resultado dessa conciliação entre a subjetividade e a verdade objetiva deva ser um trabalho em que a pessoa entrevistada se reconheça na criação. O trabalho que eu faço tem que ser sobre quem eu escutei, não sobre mim. E algo que me ajuda nesse processo de produção é montar um quadrinho respeitando as falas da pessoa. Respeitando a sintaxe e a linguagem utilizada, sem sinônimos, porque cada palavra escolhida diz muito sobre a personalidade da pessoa, e se eu alterasse estaria ficando distante de quem ela é. É claro que o quadrinho dá espaço também para criações, no caso da Eliane, por exemplo, quando fui pela primeira vez na casa dela e fiz a entrevista não havia quatro gatinhos, e sim dois… mas durante a minha estadia em Altamira a Eliane adotou mais dois gatos e não quis excluí-los da obra. Queria que toda a família da Eliane estivesse nesse registro. Foi uma criação, que o quadrinho possibilita, que acredito que ajudou a entender mais quem a Eliane é, não o contrário.
Algo que gosto muito no seu trabalho é o contraste entre o minimalismo do seu traço e as muitas nuances das falas e dos gestos dos seus entrevistados. E eu fico com a impressão que você investe cada vez mais nesse contraste. Procede essa minha impressão?
Eu percebo que estou cada vez tentando olhar com mais atenção a pessoa que entrevisto. Os gestos, a forma como sorri, como fica triste, como é a casa onde ela mora, os sons… Acredito que quanto mais detalhes eu trouxer, mesmo com o meu traço minimalista, melhor a pessoa vai se enxergar no meu trabalho.