Conversei com o quadrinista Rafael Sica sobre A Última Enciclopédia, coleção de gravuras publicadas por ele em parceria com o ateliê e estúdio de impressão em serigrafia Caderno Listrado. Transformei o papo em texto exclusivo aqui do blog, falando sobre a origem e o desenvolvimento do projeto. Compartilho agora a íntegra da minha entrevista com o autor, na qual também perguntei sobre outros trabalhos recentes dele – como os infantis Ninguém Dormia (OZé) e Satã Amigo das Crianças Boas (Veneta), em parceria com Allan Sieber. Papo massa, saca só:
“Fiz muito trabalho de escola usando enciclopédias”
Você pode me contar um pouco das origens da Última Enciclopédia? Como esse projeto teve início?
A Última Enciclopédia vem de um lugar muito confortável para mim. O lugar da narrativa. Sempre que abro o exemplar de alguma enciclopédia eu passo primeiro os olhos pelas ilustrações que, geralmente, são riquíssimas. Depois, a forma como essa narrativa do todo é contada, dividida em compêndios e organizada através do tempo de maneira tão tramada que nenhum fato ou curiosidade podem escapar. E eu passo um tempo ali, confortável, folheando uma enciclopédia.
Claro, hoje temos todo o conhecimento disponível nas redes, só que tudo tá ali de forma mais dispersa, mais apressada. A minha intenção, como gesto artístico, é resgatar esse formato de organização e investigação do conhecimento. Esse códex. A Última Enciclopédia é então uma reverência ao formato das antigas enciclopédias. Hoje me debruço sobre esse projeto sem nenhuma intenção científica, rigor técnico ou histórico profundo. Ela é apenas um objeto de arte e sugere contemplação e provocação.
Qual é a sua relação com enciclopédias? Você usou muito enciclopédias quando era mais novo? Você ainda tem enciclopédias em casa? Você tem alguma enciclopédia preferida?
Sim, fiz muito trabalho de escola usando enciclopédias. As enciclopédias também habitam esse lugar da infância e da juventude. Muitas delas carregam isso no nome, como Primeira Enciclopédia ou A Grande Enciclopédia da Criança, por exemplo. Acho que essas são as minhas enciclopédias preferidas, as primeiras enciclopédias. Para criança tudo é novidade e essas edições compreendem bem essa descoberta do todo pela primeira vez. Tudo ricamente ilustrado e explicado, como, por exemplo, “por que temos que mastigar com cuidado?” ou “por que crianças pequenas possuem cabeças grandes?”.
Aqui em casa tem muita enciclopédia, de todo o tipo. Genéricas e específicas. E também muito livro científico e técnico. Livro de mecânica, de desenho técnico, de eletrônica, de zoologia, de botânica e por aí vai. Eles são uma fonte muito rica de estudos e referências.
Você pode contar um pouco sobre as dinâmicas de produção de cada volume? Você tem algum ponto de partida em comum? Como você hierarquiza a disposição de cada imagem e conteúdo na página?
Primeiro tem essa dinâmica das assinaturas, das pessoas receberem um volume a cada mês e isso tem sido um desafio pra gente. Aproveito aqui para citar a Giuliana Teles, que cuida da logística do projeto, e o Daniel Barbosa, que produz as gravuras. A gente tem descoberto juntos a dinâmica da enciclopédia.
Sobre o desenho dos volumes, imagine que é muito material, afinal de contas se trata da história do todo. Primeiro, eu defini a ordem e os assuntos dos volumes. Depois, pensei em um formato de página que favorecesse a disposição das imagens. Eu desenho muito mentalmente antes de sentar e fazer, então tudo está planejado e, ao mesmo tempo, na hora de desenhar tudo se transforma, muda de lugar, coisas ganham prioridade e outras dão mais sustentação ao volume. As pesquisas de imagens e assuntos também são muito importantes e acontecem antes e durante a execução de cada página.
Tô mandando essas perguntas no dia que recebi o quarto volume da Última Enciclopédia aqui em casa. Em que pé você está agora na produção da série? Aliás, quanto tempo você demora mais ou menos na produção de cada volume?
Agora, tô iniciando o desenho do volume oito, que desvenda o universo das máquinas. Geralmente levo cerca de duas ou três semanas para desenhar cada volume. É muita pesquisa, muita experimentação e muito erro até me dar por satisfeito. Considero que esse tempo seja importante para que cada volume vá amadurecendo aos poucos e traga o mínimo essencial de cada assunto. Como falei anteriormente, é muito material e infelizmente muita coisa fica de fora. Sem dúvidas, A Última Enciclopédia vai virar um livro de umas 200 páginas. É muita coisa legal que teve de ficar de fora por conta do espaço.
“É importantíssimo errar”
E quais materiais você usa?
Papel 220g, nanquim e bico de pena. E muito lápis e borracha.
Li uma entrevista sua para o Weaver Lima na qual você celebra o potencial dos erros e de restrições. Você se impôs alguma restrição na produção da Última Enciclopédia? Houve algum erro em particular durante a produção dessa série até agora que te levou para algum lugar que te agradou?
Acho que a maior restrição é o formato. Fazer caber ali o máximo de coisas, mas de forma harmoniosa. Outra limitação se deu pela escolha de figuras geométricas para diferenciar cada volume. Cada volume tem uma figura geométrica no centro e o desenho tem de caber ali. Erros foram muitos, muitos mesmo. Tudo começa planejado, tudo muito bem pensado para o erro poder agir. É importantíssimo errar porque só assim se abrem novos caminhos no desenho.
Nos últimos três anos você publicou Meu Mundo Versus Marta, Brasil, Ninguém Dormia, Satã Amigo das Crianças Boas e A Última Enciclopédia (esqueci algum?). São obras com propostas e linguagens muito diferentes. Tem trabalhos infantis, obras em parcerias com outros autores, títulos solo, quadrinhos, livros ilustrados,… Enfim, fico curioso: mudam muitas chaves na sua cabeça de obra para obra? Você tem dedicação exclusiva a cada uma ou se sente tranquilo produzindo mais de uma simultaneamente?
Não é questão de me sentir tranquilo produzindo simultaneamente, é questão de: é assim ou a coisa não acontece. Infelizmente não tenho tempo para fazer um projeto por vez. Então fica tudo ali gravitando sobre a minha cabeça, tenho vários caderninhos, um para cada projeto, vou anotando uma coisa aqui, outra a ali e assim vai. Apenas quando preciso sentar e desenhar pra dar forma à coisa é que me dedico exclusivamente. Quando vou desenhar preciso estar completamente sugado pelo assunto. Além desses projetos que você citou, entre outras coisas, tem mais um livro novo a caminho e também uma edição comemorativa do Ordinário, que deve sair em breve pela Cia. das Letras.
O que mais te interessa hoje em termos de histórias em quadrinhos? O que você mais gosta de ler em quadrinhos? O que você gosta mais de fazer com quadrinhos?
Há 20 anos, se você juntasse dez desenhistas ao redor de uma mesa de bar, dez desenhistas de renome, de respeito, profissionais mesmo, oito desses desenhistas seriam homens brancos. Hoje o quadrinho tem mais voz, é mais plural e, portanto, mais real. Gosto mais de quadrinhos hoje do que gostava há 20 anos.
A Última Enciclopédia, por exemplo, não é exatamente um quadrinho. Mas ao mesmo tempo poderia ser. Isso me agrada quando vou começar um novo projeto: essa dúvida sobre o que ele realmente é. O estranhamento é para mim algo fundamental.