Papo com Raphael Salimena, o autor da coletânea Linha do Trem – The Best Of: “Geralmente quando eu me sinto muito confortável em um tipo de humor bate a necessidade de mudar”

Já recomendei por aqui a coletânea Linha do Trem – The Best Of, com alguns dos melhores trabalhos do Raphael Salimena. A verdade é que tava demorando pra alguma editora investir em uma publicação impressa com as tiras assinadas pelo Salimena e a Draco investiu muito bem nesse projeto. Os quadrinhos produzidos pelo artista de Juiz de Fora (MG) estão entre os mais engraçados, reflexivos e categóricos das HQs nacionais. É impressionante a quantidade de informações e referências que ele consegue incluir em um espaço tão delimitado como o formato quadrado de suas HQs para a série Linha do Trem.

Linha do Trem – The Best Of será lançada oficialmente no Ugra Fest 2017, sábado (8/7) e domingo (9/7) agora no SESC Belezinho aqui de São Paulo, com a presença do autor. Bati um papo por email com o Salimena sobre essa primeira empreitada impressa dele, sobre o futuro da sensacional Vagabundos no Espaço e também sobre alguns temas abordados por ele na primeira edição do podcast Linha Torta. Papo bem bão. Ó:

“Tento contribuir pro debate abordando mais o impacto que a política tem na sociedade do que as notícias em si”

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Eu já vi você comentando como se distanciou do papel e da tinta como ferramentas de produção dos seus quadrinhos, que hoje faz quase tudo no digital. Como é pra você ver o seu trabalho impresso, um formato distante da maneira como ele nasceu?

Eu adoro o descompromisso do digital, essa coisa de você ter uma ideia, produzir e alguns minutos depois aquilo já estar disponível na tela de milhares de pessoas. Acho que isso potencializa a marginalidade e a liberdade que me atraíram para os quadrinhos. Já o impresso tem a vantagem de não disputar a atenção do leitor como acontece com a leitura na tela, conseguindo dele um foco raro nos dias atuais. Vendo por esse lado é um pouco assustador pensar que pela primeira vez os leitores vão prestar mais atenção nas besteiras que eu faço, hahahah

Aliás, você pode falar um pouco da sua técnica pra criar as tiras desse livro? Foram todas feitas no computador? Eu gosto muito das suas cores e acho que dá pra falar numa paleta própria de cores suas. Como você chegou nelas?

As mais antigas foram feitas com papel e nanquim mas de um jeito muito esquisito, eu simplesmente desenhava os personagens e textos em lugares aleatórios de uma folha a4, escaneava, e só depois montava a tira no photoshop. Eu preciso muito do computador para diagramar e compor meu trabalho porque eu sou muito ansioso e gosto da possibilidade de mudar textos e enquadramentos na última hora. As vezes eu mudo até mesmo depois da hq já estar no ar, essa edição permanente é outra maravilha do mundo digital =D

Sobre as cores, no início eram basicamente para destacar personagens e ideias, eu não tinha muita preocupação com a paleta. Mas com o tempo, principalmente nas minhas histórias mais longas eu passei a me divertir bastante com a colorização. E eu não tenho muita teoria, é basicamente ficar experimentando até sair algo que me agrade, então acaba sendo a parte mais demorada do trabalho.

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Você parte de uma das gerações mais recentes da escola brasileira de quadrinhos de humor. O que eu mais gosto no seu trabalho é um atributo que também vejo na produção de quadrinistas como o Ricardo Coimbra e o Bruno Maron, que é a capacidade de expor as contradições e os absurdos da nossa realidade. O quanto você acha que a sua formação como jornalista e a sua experiência trabalhando em um jornal influenciaram nessa “linha editorial” do seu trabalho?

O que realmente me influenciava durante o período que eu fiz mais tiras era o meu cotidiano. Então esses momentos de faculdade e trabalho foram mais importantes pelas cenas que eu presenciava e pensava “isso dá tira” do que de uma maneira mais acadêmica. Estar em meio a pessoas diferentes que são “obrigadas” a conviver juntas é sempre um prato cheio para fazer humor. Ver e rever “Seinfeld” todos os dias naquela época pode ter influenciado bastante esse lado também =)

Por conta de toda a crise política e todo esse extremismo da realidade brasileira (que acaba ecoando de forma intensa nas redes sociais), a nossa sociedade é um prato muito cheio pra você. Mesmo que indiretamente, falar de política é algo inevitável no seu trabalho?

Acaba sendo, né? O que sempre me afastou do humor político é que fazê-lo com sutileza pode ser perigoso, ainda mais nessa época de gente que se informa por grupo de família no whatsapp. Eu tenho uma ideologia bem clara e ao mesmo tempo que não quero fazer um trabalho panfletário, se for algo muito aberto à interpretação pode ser usado em prol de discursos opostos ao meu. Mas eu sempre escrevi sobre o que está ao meu redor, e assim fica meio impossível não tocar no assunto porque isso também seria fugir da minha responsabilidade como formador de opinião (todos nós somos atualmente). No fim das contas eu tento contribuir para o debate abordando mais o impacto que a política tem na sociedade do que as notícias em si.

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Você tem um número expressivo de seguidores no Facebook e alguns dos seus trabalhos têm centenas de compartilhamentos. Você costuma acompanhar as discussões que eles geram? É importante pra você acompanhar a forma como seus quadrinhos estão sendo interpretados?

O feedback é sempre importante, em maior ou menor grau. Quando eu faço um humor que vale por si só, aquele que REALMENTE “é apenas uma piada”, eu gosto de ver se a punchline veio na hora certa, se os enquadramentos e expressões que eu usei foram os melhores, se eu realmente trabalhei aquela piada da melhor maneira possível. Agora, nos casos em que tem algum contexto político-social o feedback é muito importante para ver se eu não falei besteira. Porque esses assuntos são delicados e é muito fácil passar desinformação na ânsia de ser engraçado. Encontrar a sua voz artística dentro desse tipo de assunto é um processo complexo e demorado, e saber ouvir o público (e O QUE ouvir do público) é sempre importante pra mim.

Eu ouvi a primeira edição do seu podcast e lá você fala do momento que compreendeu a importância da funcionalidade de um desenho. Como você aplicou/tentar aplicar essa ideia nas suas tiras?

Desenhando o necessário para a melhor compreensão possível, e apenas isso. Isso quer dizer simplificar ao máximo em alguns momentos e carregar nos detalhes em outros. Desenhar “mal” propositalmente pode ajudar muito para conseguir humor, estranheza e até terror.

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No podcast você também fala que “fazia qualquer coisa” no começo dos seus trabalhos como quadrinista. Hoje, acho que suas tiras são muito identificáveis. Você se vê com um estilo? Consegue definir o que caracteriza o seu trabalho?

Infelizmente eu acho que acabei tendo um estilo, hahahah. Isso era tudo que eu não queria no início, porque gostava muito da experimentação que eu consegui em alguns momentos nos primeiros anos. Os lugares comuns que eu criei com o tempo foram mudando, geralmente quando eu me sinto muito confortável em um tipo de humor bate a necessidade de mudar. Atualmente isso está acontecendo até com o formato de tira em si, por isso estou me dedicando a hqs longas.

A versão impressa do Linha do Trem tá saindo praticamente ao mesmo tempo em que você encerrou seu trabalho pro UOL Tecnologia. A sincronicidade desses dois acontecimentos tem algum significado especial pra você?

Na verdade não, hahaha. Tive muita sorte por ter passado quase sete anos no UOL Tecnologia. Foi algo muito fora da curva para quem vive de HQ digital e eu realmente não esperava ficar esse tempo todo. Mas ao mesmo tempo eu me sentia repetitivo dentro do assunto às vezes e isso nunca é legal. Quando olho pro meu trabalho de tiras como um todo eu sempre vejo a busca por tentar algo diferente e não gosto de falhar nisso.

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Eu gostei muito do que você publicou até agora do Vagabundos no Espaço. Quais são os seus planos pra essa série? Você pretende dar uma periodicidade pra ela? Tem planos pra uma possível versão impressa?

Toda a minha energia criativa está voltada pro Vagabundos atualmente. Eu comecei com um humor bobo para partir de um lado do meu trabalho com o qual os leitores estão acostumados, mas pretendo levar a série para muitos outros lugares, em termos narrativos, artísticos e visuais. Por isso escolhi uma space opera, não para falar de especificidades de ficção científica, mas para poder levar aqueles personagens para onde eu quiser. Quero trazer pros meus quadrinhos aquela espera pelo “onde será que eles vão descer no próximo episódio?” que me faz amar Star Trek, Doctor Who e Futurama, não só em termos literais mas também narrativos. Nada me impede de botá-los num planeta em preto e branco para uma história de faroeste ou contracenando com uma espécie alienígena feita de traços infantis de giz de cera. Quanto à versão impressa, pretendo fazer sim porque sei que tem muito leitor que ainda não abraçou o digital e esses me interessam tanto quanto os outros. Só estou esperando ter um volume de páginas que apresente bem a proposta, imagino que com três capítulos fechados já seja o suficiente (estou na metade do segundo atualmente).

Pra finalizar! O que você tem lido, visto e ouvido nos últimos tempos? Tem alguma coisa que você recomenda que as pessoas leiam, vejam e escutem?

Eu tenho curtido muito mangá e anime. Os orientais têm um jeito muito diferente do nosso de ver e explicar o mundo, então eu recomendo pra todos que curtem somente obras ocidentais que conheçam o que eles tão fazendo por lá e vice-versa. A JBC lançou recentemente a primeira edição de Akira do Katsuhiro Otomo, que muita gente conhece pelo anime, e é fantástico ter finalmente em mãos o mangá. Nas primeiras páginas você já tem a certeza de estar diante de um clássico, o domínio de narrativa e desenho do autor ainda assusta mesmo tanto tempo depois do lançamento original. Também gosto muito de ver séries de tv e no momento estou revendo as temporadas antigas de twin peaks pra me preparar para a nova, e adorando cada minuto. Por falar do Lynch, só recentemente assisti Ereaserhead e já entrou pro meu top 10 de filmes favoritos. Mas a maior parte do meu tempo livre eu passo no videogame. Esses dias eu joguei Inside, que é uma narrativa super complexa, cheia de camadas, sem usar nenhuma palavra na construção. É o meu meio favorito de consumir ficção atualmente, se eu começar a falar sobre não paro mais!

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Ramon Vitral

Meu nome é Ramon Vitral, sou jornalista e nasci em Juiz de Fora (MG). Edito o Vitralizado desde 2012 e sou autor do livro Vitralizado - HQs e o Mundo, publicado pela editora MMarte.

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