O quadrinista Roger Cruz não tem certeza, mas acredita que o último trabalho dele para uma editora norte-americana de quadrinhos de super-heróis foi publicado em 2009 ou 2010. Desde então, o foco do autor tem estado em ideias que ficaram de lado durante a época em que desenhava comics. Durante esse período ele lançou três álbuns da série Xampu, sobre a rotina de um grupo de amigos roqueiros na São Paulo do início dos anos 90; Quaisqualigundum, homenagem a Adoniran Barbosa em parceria com Davi Calil; e A Irmandade Bege, protagonizado por um grupo de idosos conspiracionistas.
No entanto, antes dessa investida em quadrinhos independentes e autorais, houve os X-Men. Os X-Men Alpha. Os X-Men Omega. A Geração X, a X-Factor e a X-Patrol. O Magneto, o Homem-Aranha, o Doutor Estranho, o Hulk e o Motoqueiro Fantasma. Alguns dos principais super-heróis da Marvel foram desenhados por Roger Cruz entre os anos 90 e a primeira década dos anos 2000. E são exatamente eles os alvos de Os Fabulosos.
Com um lançamento marcado para sábado (13/07), na Quanta Academia de Artes, em São Paulo, e outro no sábado seguinte (21/07), na Loja Monstra, também em São Paulo, Os Fabulosos é uma sátira do universo dos X-Men da Marvel e de todo o gênero de super-heróis. A HQ de 120 páginas narra três aventuras protagonizadas por personagens como Caolho, Careca, Nanico, Toró e Metalovski, versões bizarras de Ciclope, Professor Xavier, Wolverine, Tempestade e Colossus. Os inimigos do grupo são o vilão Magnetic e sua Irmandade, com a missão de destruir os “tão lindos e atraentes” Fabulosos por meio do Igualizador Total, máquina capaz de transformar toda e qualquer pessoa em “bestas disformes”.
“Foi a vontade de brincar com os X-Men como o Keith Giffen fazia com a Liga da Justiça ou o Peter David com o Hulk e Aquaman que me inspirou a escrever a luta contra a Irmandade”, conta Cruz sobre o ponto de partida de seu mais recente trabalho, citando algumas publicações mais bem-humoradas de heróis da Marvel e DC e seus respectivos autores.
Os Fabulosos marca o encontro da fase mais recente e autoral de Cruz com seus anos trabalhando para as grandes editoras norte-americanas de super-heróis. Na conversa a seguir ele fala sobre suas inspirações para seu mais recente trabalho, lembra sua experiência como autor da Marvel, revela seu distanciamento do universo dos comics e comenta a experiência com financiamento coletivo que permitiu a impressão de Os Fabulosos. Saca só:
“Não acompanho praticamente nada do que é produzido hoje nas grandes editoras de HQs de super-heróis”
Eu faço parte de uma geração que começou a acompanhar as suas produções exatamente com seus trabalhos para editoras norte-americanas de super-heróis. O que representa para você retornar a esse universo?
A ideia dos Fabulosos surgiu por volta de 2002, logo depois do filme dos X-Men de 2000 quando eu trabalhava exclusivamente para a Marvel. Não lembro o que eu estava desenhando na época, mas já tinha trabalhado em títulos como Uncanny X-Men, X-Men Alpha e Omega, Generation X, X-Factor, X-Man e X-Patrol.
Quero dizer, quando comecei a produzir o primeiro capítulo da HQ dos Fabulosos, eu ainda estava nesse universo e desenhava super-heróis diarimente. Foi a vontade de brincar com os X-Men como o Keith Giffen fazia com a Liga da Justiça ou o Peter David com o Hulk e Aquaman, que me inspirou a escrever o capítulo onde eles lutam contra a Irmandade.
Os capítulos seguintes da HQ foram escritos anos depois e desenhados recentemente, já pensando em uma mini-série ou edição única como acabou acontecendo.
Por que retornar a esse universo de super-heróis? O que você vê de mais interessante nesse gênero? Aliás, você ainda lê HQs de super-heróis?
Não acompanho praticamente nada do que é produzido hoje nas grandes editoras de HQs de super-heróis. Releio algumas coisas velhas relançadas mas até isso é raro.
Tenho acompanhado um pouco mais a produção independente no Brasil.
Como desenhista, me divirto com a estética das HQs de super-heróis, com o ritmo característico da narrativa e com as possibildades gráficas. Apesar disso, no momento prefiro eu mesmo explorar esse universo, escrevendo e desenhando histórias como essa dos Fabulosos.
“Os personagens que eu mais gostava quando moleque, foram os que fui desenhar durante minha carreira com HQs de super-heróis”
Há vários personagens de super-heróis, mas você opta por parodiar especificamente os X-Men. Por que eles?
Quando moleque, as histórias que eu mais curtia eram as dos X-Men da dupla [Chris] Claremont e [John] Byrne. Me empolgava ver como eles trabalhavam com aquele monte de personagens, as relações entre eles, os eventos grandiosos, recordatórios gigantes de narração e balões de pensamento.
Talvez por gostar de desenhar grupos de heróis e do tipo de composição de cena que eles permitem, acabei indo parar na linha de revistas dos mutantes quando entrei na Marvel. Por coincidência, os personagens que eu mais gostava quando moleque, foram os que fui desenhar e com os quais trabalhei por mais tempo durante minha carreira com quadrinhos de super-heróis.
Você pode contar um pouco sobre a produção das histórias do livro? Você faz críticas e brincadeiras com temas, tópicos e personagens muito específicos. Você construiu a trama a partir das ideias que queria abordar ou essas ideias surgiram a partir da trama?
Uma coisa puxa a outra. Geralmente, crio uma trama pra seguir, mas enquanto escrevo, as conversas entre os personagens podem apontar pra direções diferentes da trama principal. Se os desdobramentos em uma dessas direções for mais interessante, vou por ali.
Geralmente escrevo já rabiscando um esboço da página com personagens e balões já posicionados. Prefiro trabalhar com número não definido de páginas. Se planejo uma história para 22 páginas mas, enquanto escrevo, percebo que pode ser contada em 15 páginas, paro por ali. E o mesmo acontece quando percebo que preciso de mais páginas.
E como você chegou no estilo de desenho que acabou utilizando em Os Fabulosos? Ele tá muito mais estilizado e caricato do que seus trabalhos mais recentes no terceiro volume da série Xampu e na A Irmandade Bege, não é?
Em cada projeto escolho o que considero mais interessante em termos de estilo para cada história que quero contar. No Xampu, o preto e branco remete aos gibis undergrounds que eu lia nos anos 80 e 90.
Na Irmandade Bege, a paleta de cores remete à trama e ao título. Nos Fabulosos eu queria exagerar mais ainda a anatomia, gestos e posturas e discursos dos personagens dos gibis de super-heróis.
O inimigo dos Fabulosos tem sérios problemas com o fato dos heróis serem “tão lindos e atraentes”. Uma crítica muito comum aos quadrinhos de super-heróis é o padrão estético preconizado por eles. Isso também é um incômodo para você?
Esse padrão estético é uma característica que não é exclusiva do gênero de super-heróis e não me incomoda.
Mas serem tão “lindos e atraentes” e dentro dos “padrõezinhos” nesse universo dos Fabulosos são vantagens que eles usam pra conseguir mais privilégios e patrocinadores, o que não é muito diferente do mundo real.
Por outro lado, os adversários, vistos aqui como vilões e fora dos padrões, são discriminados pela sociedade e é essa discriminação que move a Irmandade contra os Fabulosos.
“Eu não gosto dos traços hiper-realistas e uniformes funcionais e sem cor”
Você também faz referência à trama do primeiro filme dos X-Men, lançado no ano 2000 e um marco para essa leva recente de adaptações de HQs de super-heróis. O quanto você acha que essa onda de adaptações influenciou a forma como se pensa HQs de super-heróis e como o público interpreta esses trabalhos?
Sim, na primeira história, o plano do Mentor Magnetic (Magneto) é bem semelhante e faz referência ao plano do Magneto de construir um dispositivo para transformar os humanos em mutantes, mas nos Fabulosos o tal dispositivo tem outro objetivo. A relação entre Caolho (Ciclope) e Nanico (Wolverine) faz referência a relação deles no filme e também nos quadrinhos. Mas Fabulosos é uma paródia, então acho que é isso que o leitor espera encontrar na HQ.
Sobre os filmes, curto muito ver esses personagens na tela, mas penso que são produtos diferentes, cada um com suas qualidades e também limitações de linguagem. É inevitável a influência dos filmes nos quadrinhos mas, sei lá, são coisas muito diferentes.
Como público, eu não gosto dos traços hiper-realistas e uniformes funcionais e sem cor nas HQs, mas é porque cresci lendo gibi nos anos 80 com desenhos bem estilizados com paleta de cor limitada e abstrata mas que achava ótima e ainda acho.
O que você acha que o gênero de super-heróis oferece de melhor e mais acrescenta à linguagem dos quadrinhos?
Tem uns 10 ou 15 anos que não acompanho a produção de quadrinhos de super-heróis, então eu não saberia dizer o que eles representam hoje.
Mas, para mim, na minha época, era como acompanhar aventuras de deuses e heróis, tais como os gregos e romanos, mas ambientadas no presente.
Comecei a desenhar copiando desenhistas da Marvel e DC e foi com gibis de super-heróis que desenvolvi a paixão por histórias em quadrinhos.
O gênero de super-heróis foi para mim a porta de entrada para outros gêneros e produções de outros mercados.
Quais as melhores memórias que você têm do seu período trabalhando com quadrinhos de super-heróis? Quais são as piores?
Eu penso que aproveitei e celebrei pouco cada conquista daquela época.
O dia-a-dia para um desenhista lento e inexperiente como eu era no começo, era cansativo e estressante por causa dos prazos, e eu me cobrava demais em cada cena, em cada página. Mas era um trabalho muito bem pago e compensava financeiramente. E o mais importante, era um trabalho que eu gostava de fazer e sabia fazer. Conhecia bem aqueles personagens e era divertido poder dar vida e movimento pra eles com o meu traço.
Desde 2009 ou 2010 que não faço nenhum trabalho regular para editoras gringas. O último foi Uncanny X-Men: First Class. De lá pra cá, tenho me dedicado a ideias que ficaram de lado durante a época que desenhava comics.
Sempre que tinha um tempo livre, entre uma página e outra de super-heróis, escrevia e esboçava essas ideias mas não conseguia trabalhar em dois projetos ao mesmo tempo. Ainda não consigo. Uma das coisas melhores coisas daquela época foi conhecer e poder trabalhar com tantos artistas que hoje são amigos e inspirações.
“O que mais nos atraia na ideia do financiamento coletivo era conhecermos a demanda exata do livro”
Você já teve trabalhos publicados por editoras nacionais e internacionais, publicou de forma independente e por meio de editais e com Os Fabulosos teve sua primeira experiência com financiamento coletivo. Como foi/tem sido essa experiência com o Catarse para você?
Eu já sabia muito do que pode dar errado em um financiamento coletivo pelas experiências dos amigos e pelas dicas da própria plataforma, então fui bastante cauteloso e eu e minha esposa nos programamos bem pra minimizar os possíveis problemas.
Resolvemos só lançar a campanha com o livro pronto pra ir pra gráfica, estabelecemos metas modestas e com recompensas que não fossem complicadas de organizar e enviar.
O que mais nos atraia na ideia do financiamento coletivo era conhecermos a demanda exata do livro, já que o espaço que temos para guardar livros em casa está diminuindo. Depois dos lançamentos, começamos a enviar para os apoiadores.
Você pode recomendar algo que esteja lendo, assistindo ou ouvindo no momento?
Descobri por acaso na internet, os excelentes Wandering Island e Wandering Emanon, do Kenji Tsuruta. Curti Dark, do Netflix, e Cobra Kai, do YouTube, e no momento, estou ouvindo Synthwave em um canal chamado NewRetroWave, breguices antigas em playlists de Rock e Metal.