Fiquei sabendo da produção de Quaisqualigundum em março do ano passado, quando entrevistei o Davi Calil para uma matéria sobre quadrinistas independentes de São Paulo pro Estadão. Na época ele não revelou muito, disse que era um projeto composto “por quatro histórias interligadas protagonizado por personagens tirados de músicas do Adoniran Barbosa”. Roteirista do gibi, o Roger Cruz é mais conhecido por suas ilustrações para editoras dos Estados Unidos, com personagens da Marvel e DC. Em 2010 ele havia feito uma primeira incursão misturando hqs e música, em Xampu – Lovely Losers, publicado pela Devir. Conversei com os dois sobre a obra, a venda a partir de hoje no site da Ugra Press. Minha matéria sobre Quaisqualigundum saiu semana passada no Globo e dá pra ser lida aqui. Segue a íntegra do nosso papo:
Como surgiu a ideia do quadrinho?
Roger: Conheço as músicas do Adoniran desde criança. Faziam parte da programação de emissoras de rádio que minha mãe ouvia. Por volta de 2009, ouvindo algumas músicas do Adoniran, comecei a pensar sobre os personagens citados, suas histórias e os locais onde viviam. As idéias começaram a surgir e escrevi a primeira história, baseada na música ‘Saudosa Maloca’. Nela, imaginei quem teriam sido “Eu”, Mato Grosso e Joca, como se conheceram, como foram parar naquela maloca e o que aconteceu depois. Esta primeira história puxou as outras e projeto foi ganhando forma. Convidei o Davi para ilustrar o álbum e ele sugeriu inscrever o projeto no ProAC. Fomos selecionados, produzimos e, agora, o álbum finalmente está pronto.
Como foi trabalhar duas linguagens, a princípio, tão antagônicas como quadrinhos e música?
Roger: O meu projeto anterior ao ‘Quaisqualigundum’ é o ‘Xampu-Lovely Losers’. No ‘Xampu’, a música é parte importante das histórias porque falo de lembranças da minha adolescência quando eu ouvia só Rock e Heavy Metal. Adoniran contava muitas histórias em suas músicas e é fácil começar a imaginar outras a partir daí. A idéia no ‘Quaisqualigundum’ era contar o que não foi contado nas músicas mas manter a relação com a história original. Penso que música e HQ são linguagens que podem ser combinadas muito bem.
Como foi o trabalho de reproduzir a São Paulo das décadas de 70 e 80?
Davi: O universo de São Paulo é retratado em vários aspectos ao longo das histórias, o clima geral passa uma idéia, um tom, dos anos 70 e 80 mas em nenhum momento especificamos datas, a idéia é que elas sejam atemporais. Pesquisamos muito na São Paulo dos dias de hoje os resquícios da cidade da época do Adoniran.
Por essa experiência de retratar uma São Paulo do passado, quais vocês acham que foram as principais transformações da cidade?
Davi: Tem uma frase do Adoniran que eu acho que retrata muito bem isso. Ele diz mais ou menos assim “Esses dias eu fui procurar São Paulo e não achei. Cadê o Bixiga, o Brás, a Mooca? Andei, andei e não vi São Paulo, só vi concreto, asfalto e carros”. Eu sou muito novo pra ter vivido a São Paulo do Adoniran, mas parece que mesmo em vida ele já tinha sentido os efeitos do “pogréssio” desenfreado e desorganizado da nossa querida capital.
Roger: Para mim, São Paulo é, principalmente, esse monte de gente vinda de todos os cantos do país. Gente vivendo pequenos ou grandes dramas cotidianos como os que o Adoniran retratava nas músicas. Enquanto escrevia, eu focalizei mais nisso, nos personagens, nas suas reações e nas situações em que eles estariam envolvidos. Coube ao Davi encontrar a “cara” da São Paulo da nossa HQ. Falando em transformações, o Adoniran resume bem quando diz “Que aqui onde agora está esse edifício alto, era uma casa velha, um palacete assombrado”. No bairro onde cresci, minha casa foi a terceira construída na rua e nem asfalto tinha. Hoje não existe um só espaço vazio e casas antigas começam a ceder lugar para edifícios altos.
Por que pintar a obra em aquarela?
Davi: Isso foi idéia minha, a escolha é pessoal mesmo, fiz pois adoro pintar com guache e aquarela. Seria mais simples e bem mais barato se fosse feito digitalmente, mas queria passar pelo desafio de produzir um álbum inteiro na tinta. As nuances de cor, texturas do papel, marcas de pinceladas, manchas e os acidentes que ocorrem no meio do percurso fazem o esforço valer a pena.
É uma tendência a colorização digital?
Davi: Sim, desde os anos 90 a cor digital dominou o processo de produção de HQ. Imagino que uma parte muito pequena da produção de HQ hoje em dia seja feita com tinta o que é bem compreensível, pois TUDO fica mais complicado quando vc decide finalizar uma página de quadrinho com tinta. Desde o custo do material, só uso material profissional (tudo tem que ser importado e sai uma nota) até o tempo de produção. Como havia dito antes, foi uma opção pessoal e fiz porque eu sei pintar (estudo pintura a anos) e queria ver como ficaria. Gostei do resultado final e aprendi muito ao longo do processo. Isso não quer dizer que eu só faça HQ pinta a mão, muito pelo contrario, já publiquei um álbum chamado Surubotron que foi todo feito digitalmente, inclusive o desenho. Adoro cor digital (chapada, sem muita firula, rsrs), a maioria dos meus futuros projetos serão feitos com cor digital.
Como foi o convite para o Emicida escrever a orelha do livro?
Roger: As músicas dele abordam temas muito semelhantes aos do Adoniran e da nossa HQ. Além disso, ele gosta de Adoniran e cita o nome dele na música ‘Gueto’. Vendo uma de suas entrevistas, ele comentou que antes de fazer música, ele queria produzir quadrinhos. Um músico paulistano que gosta de Adoniran e quadrinhos era perfeito! Aí entramos em contato, enviamos a obra, ele leu e topou na hora.
Vocês são professores na Quanta e estão lançando o livro pela Dead Hamster, um selo de quadrinistas independentes. Qual análise vocês fazem dos universo dos quadrinhos brasileiros hoje? Vocês veêm alguma tendência em termos de estilo? Há muitas produções independentes sendo publicadas no momento, certo?
Davi: Sim, é muito legal participar deste momento em que existe uma produção tão legal de quadrinhos autorais e independentes. Na minha opinião ainda existe um caminho muito grande pra trilharmos até ver alguma estrutura que possamos chamar de “mercado”, rsrs, mas acho que a direção é essa. Por exemplo, quase não vale a pena publicar com uma editora, com exceção de uma editora ou outra a maior parte delas vai pegar o seu material pronto, imprimir, colocar o selo deles, nos pagar 10%(isso quando eles levam a sério os relatórios de venda) e distribuir mal. Foi por isso inclusive que criamos o Dead Hamster, foi uma forma de assumirmos o controle de toda a produção e distribuição da HQ. Eu adoraria publicar por uma editora que tenha presença em livrarias, departamento de marketing, revisores de texto, designers, advogados pra resolver questões de direitos autorais, seria lindo ter toda essa estrutura do nosso lado e poder se concentrar somente na produção da arte, mas esse não é o cenários que vivemos, estamos na época do autor polivalente que faz tudo e nem acho isso ruim, é trabalhoso mas eu aprendo muito no processo.
Acho que a cara do quadrinho nacional é não ter cara, rsrs, como não temos um mainstream, não temos mercado e nem vendas muito altas nós podemos arriscar qualquer tipo de história, qualquer tipo de estilo e isso é ducaralho. Tenho amigos que trabalham com quadrinho pro mercado Americano e pro mercado Europeu, lá já existe pressão, expectativa quando a venda, estilos que são mais comerciais etc, talvez um dia o Brasil fique assim também, mas por enquanto a gente vive o momento em que podemos fazer o que quiser e isso é bem legal.
O título só estará a venda pela internet?
Davi: O nosso álbum vai estar a venda na internet, na loja online Ugra Press (https://ugrapress.webstorelw.com.br/products). E também será vendido na Quanta Academia de Artes, Galeria Ornitorrinco e lojas especializadas (Monkix e Gibiteria entre outras)