Entrevistei o quadrinista australiano Simon Hanselmann, criador dos personagens Megg e Mogg e autor do álbum Mau Caminho, seu primeiro trabalho publicado publicado no Brasil. A edição nacional foi lançada pela editora Veneta, com tradução do quadrinista Diego Gerlach.
Escrevi sobre as origens dos trabalhos de Simon Hanselmann e apresentei as minhas impressões sobre Mau Caminho em crítica publicada no jornal O Globo. Chamo atenção no meu texto para a dinâmica interna dos personagens de Hanselmann, seus excessos e a indiferença deles em relação ao mundo.
Na minhas conversa com o autor ele falou sobre o desenvolvimento de Megg e Mogg e sobre a repercussão do trabalho dele, abordou a dinâmica de suas publicações no Instagram, contou sobre sua rotina de trabalho e lamentou sobre os rumos do mundo.
Repito: junto com Sabrina, de Nick Drnaso, Mau Caminho é um dos principais lançamentos de 2020. Deixo mais uma vez o link para a minha resenha da obra e reproduzo a seguir a íntegra da minha conversa com Simon Hanselmann, em tradução de Diego Gerlach:
“Meu trabalho é (aparentemente) engraçado e não é condescendente com as pessoas”
Queria começar sabendo como você está. São tempos muito estranhos, você mora nos Estados Unidos, que junto com o Brasil é o país mais afetado pela pandemia. Você está bem? Como isso tudo impactou a sua rotina? Como essa realidade que estamos vivendo está influenciando a sua produção?
Tenho meio que passado bem. Quadrinhos alternativos parecem ser um negócio à prova de COVID… Tenho trabalhado em casa nos últimos sete anos, então a pandemia não impactou de fato minha atividade diária. Odeio sair de casa, gosto de estar sempre trabalhando, então esse aspecto da quarentena não me desagrada. Também é bom ter minha esposa em casa e não o tempo todo no escritório.
Morro de medo do que está acontecendo do lado de fora, mas dentro de casa estou mais feliz e menos ansioso do que estive em anos. Um viva pra mim por ser um tremendo merda. Muita sorte.
Você nasceu nas Austrália, hoje vive nos Estados Unidos, seus livros já foram publicados em várias línguas e países e agora está saindo aqui no Brasil, em português. Por conta dos temas dos seus trabalhos e do seu estilo, fora de qualquer padrão industrializado, te surpreende a repercussão e o alcance das suas HQs?
Não me surpreende tanto. Meu trabalho é (aparentemente) engraçado e não é condescendente com as pessoas. Gente por toda parte está deprimida, entediada, chapada e precisa de entretenimento que não seja falso e que não tente apenas ser cordial e comportado por temer rejeição. Tem tanta bosta medíocre e cheia de si por aí, Megg e Mogg são justamente o oposto disso. É zoado e DIVERTIDO.
“Minha missão principal é apenas de frisar o absurdo. As contradições escrotas”
Aliás, o que você pensa ao ver o seu trabalho sendo publicado em um país como o Brasil? Você fica curioso em relação à forma como seu trabalho é lido e interpretado em uma realidade tão distinta da sua?
A série foi traduzida para 13 línguas ao redor do mundo e já visitei quase todos esses países. Achei as pessoas todas muito parecidas em todos esses lugares. Humanos são humanos. A gente come e caga e procura por distração. Amamos quadrinhos!
Li uma entrevista em que você fala sobre o impacto de ter nascido e crescido em uma cidade pequena e conservadora da Austrália. Como você acha que essa formação impactou seus interesses e o tipo de trabalho que você produz?
No geral, me fez querer me esconder da realidade e daquilo que é convencional. Consumi diversos tipos de arte e mídia, sempre em busca de perspectivas novas e interessantes e de outras maneiras de me comportar. Fugi assim que pude.
E falando em conservadorismo, estamos vivendo em um mundo cada vez mais conservador. Os seus quadrinhos para mim refletem um pouco a depressão de jovens vivendo nesse contexto e instigam certa subversão quase antagônica a esse reacionarismo. Você também vê a sua obra dessa maneira?
Sim, Megg e Mogg existem para as pessoas. São um espelho no qual quem vive por baixo se enxerga, os fodidos e excluídos. Mas também não é super de esquerda, é algo removido de questões políticas de certo modo, é sobre pessoas egoístas que odeiam política e estão às voltas com seu próprio tumulto emocional.
“É ótimo que alguém tenha algum interesse ainda que remoto por meu pequeno teatro de papel”
Qual você acredita ser o papel potencial de instigar e praticar subversão e questionar o establishment em tempos tão reacionários como esses que estamos vivendo?
Na maior parte do tempo, estou apenas tentando entreter as pessoas. Arte que não entretém não vai achar um grande público… Minha missão principal é apenas de frisar o absurdo. As contradições escrotas. Me nego a dar lições, quero que os leitores tenham condições de decidir… Provavelmente não deveria confiar tanto nas pessoas. Um monte de gente é estúpida e rápida demais ao reagir, sem a devida consideração de ideias complicadas.
Tenho curiosidade em relação à sua visão do mundo no momento. Vivemos numa realidade na qual Donald Trump é o presidente dos EUA e Jair Bolsonaro é o presidente do Brasil. O que você acha que está acontecendo com o mundo? Você é otimista em relação ao nosso futuro?
Estou cansado de todo esse circo. Todos uns bostas, completos filhos da puta. A essa altura só quero que me deixem em paz. Costumava ter esperança, mas agora só espero pelo fim. Estou aqui no estúdio, esperando as bombas caírem. A qualquer momento.
“Estou cagando para o que pensam, faço quadrinhos pra mim e pros meus amigos, estou tentando agradar apenas a mim mesmo”
Eu gostaria de saber sobre a sua relação com a crítica e com esse interesse crescente pelo seu trabalho. O que você sente ao ver o seu trabalho tão analisado e interpretado e tantas pessoas interessadas nos seus quadrinhos?
Gosto de ler as interpretações das pessoas, em especial resenhas negativas. Aprendo um bocado, coisas que eu mesmo não enxergava.
De modo geral estou cagando para o que pensam, faço quadrinhos pra mim e pros meus amigos, estou tentando agradar apenas a mim mesmo. É ótimo que alguém tenha algum interesse ainda que remoto por meu pequeno teatro de papel.
Você poderia me contar um pouco sobre a sua dinâmica de trabalho? Quanto tempo você leva criando um roteiro? E depois quanto tempo você leva no desenho esse roteiro?
Depende. Mau Caminho tomou dois meses para ser roteirizado em thumbnail, uns dois meses para desenhar, e quarenta dias para arte-finalizar as 156 páginas (meu recorde) e aí uns sete meses para colorir. A colorização foi de matar. No total foram 3764 horas.
No momento, estou fazendo apenas uma tira diária no Instagram, que escrevo conforme invento, e aí faço o esboço a lápis, passo tinta e coloro. Leva entre três e oito horas, dependendo do meu grau de ressaca da noite anterior… Quase nunca fico sem trabalhar. Não consigo nunca desligar o modo trabalho do meu cérebro. Estou sempre escrevendo.
Com quais técnicas você trabalhou em Mau Caminho? Você tem preferência por alguma técnica em particular? Quais materiais você utiliza?
É tudo no papel, odeio computadores. Tenho uma lapiseira barata, algumas canetas de ponta fina meia-boca e um pouco de aquarela, guache e corante alimentar. Gosto de usar itens facilmente acessíveis. Nada muito chique. Qualquer um pode fazer, não é nada muito técnico, é só mexer as mãos.
“Odeio webcomics, sou zineiro, tenho fetiche por livros, mas estou adorando colocar essas tiras no Instagram”
Qual é a sua abordagem em relação a cores?
Eu só sigo uma vibe naturalística e simples. Madeira é marrom, plantas são verdes, etc. Não viajo muito nisso.
Meu objetivo principal é deixar o trabalho legível para o público, que a informação seja facilmente digerível. Megg é verde, Mogg é cinza, Owl é amarelo. Quando desenho só em preto e branco não fica tão legível, você tem que se esforçar mais para decifrar os componentes individuais. Meu trabalho é todo calcado num ritmo rápido, realístico. Quero que pareça como se fosse uma animação.
Eu gosto da forma como você faz uso dos grids. Você tem alguma motivação em particular por trás desse padrão?
Manter as coisas simples! O leitor deve ser sugado pro mundo dos personagens. Layouts doidos e zoados e balões de fala muito cheios atrapalham a experiência do leitor. Tem que se mover sempre!
Aliás, esse padrão acabou se mostrando muito útil para você no Instagram, no qual a sua produção e seus posts têm sido muito ativos e constantes. Você gosta do Instagram como plataforma de distribuição dos seus quadrinhos?
Sim, desenho minhas páginas do mesmo modo de sempre e tiro fotos dos painéis pro Instagram. Odeio webcomics, sou zineiro, tenho fetiche por livros, mas estou adorando colocar essas tiras no Instagram.
No começo da pandemia, minha gráfica local teve de fechar e meio que fiquei sem escolha… Além disso, realmente queria tentar divertir e ajudar as pessoas a suportarem o isolamento. Entretenimento acessível para as massas. O telefone é o melhor modo de fazer isso. Eu meio que quero continuar essa tira do Instagram pra sempre, mas imagino que terei de parar em algum momento… Se bem que o mundo segue ficando cada vez mais e mais doido… Talvez eu nunca consiga parar? Preciso muito começar a continuação de Mau Caminho… Mas ainda não. Ainda parece estranho escrever sobre o ‘velho mundo’.
“Dan Clowes visitou meu estúdio no começo do ano e fiquei tão constrangido, já estive no estúdio dele e é muito mais classudo”
Ainda sobre plataformas e redes sociais. O seu trabalho ganhou repercussão por meio do seu Tumblr, iniciado em 2012. O quanto o Tumblr foi útil para você e sua carreira? O Instagram vem tomando lugar do Tumblr como plataforma para distribuição e difusão de HQs e imagens em geral?
Sim, o Tumblr foi como mostrei meu trabalho pro mundo. Por anos me recusei a colocar meu trampo online, mas finalmente cedi. Fico feliz de ter feito isso, abriu muitas portas. O Tumblr agora está oficialmente morto, faz anos já, virou uma bosta, excluir pornografia foi o último prego no caixão. Estou satisfeito com o Instagram por ora, já temo por sua eventual morte, pois gostam de censurar coisas… Na real fico bem chocado que meu conteúdo passa batido por lá… Se me derrubarem, tô fodido.
Você pode me falar como é seu ambiente de trabalho? Você poderia descrever o local no qual Mau Caminho foi criado?
Tem um quarto vazio na minha casa. Tem uma mesa de café da Ikea e um colchão. É basicamente isso (e alguns manequins e merdas aleatórias). Dan Clowes visitou meu estúdio no começo do ano e fiquei tão constrangido, já estive no estúdio dele e é muito mais classudo. Charles Burns também visitou meu estúdio (mais de uma vez) e senti vergonha. Preciso parar de sentar no chão feito uma criança…
“Quero voltar pra Tasmânia e me entocar nas montanhas, bem longe de todas as facções em guerra”
Você pode me falar um pouco sobre viver em Seattle? É uma cidade que me parece mais aberta outras culturas e a diversidade do que outras cidades dos Estados Unidos. É isso mesmo?
Se posso, evito sair de casa. Mesmo antes da quarentena, tentava ficar em casa tanto quanto possível. [Seattle] parece ok… Meio que um buraco deprimente, mas ok. Ainda não levei um tiro. Realmente parece a queda do Império Romano aqui nos States… Quero voltar pra Tasmânia e me entocar nas montanhas, bem longe de todas as facções em guerra. Não quero mais viver em cidades.
Você pode recomendar algo que esteja lendo/assistindo/ouvindo no momento?
Só tenho assistido DVDs de comédias antigas. Coisas britânicas. Jam, Brass Eye, Darkplace, de Garth Marenghi. Acabei de ler a nova graphic novel do meu camarada Natham Cowdry, Crash Site, que ganhou o prêmio Puchi na Espanha e está prestes a ser publicada, é muito foda.
Tenho escutado todo tipo de música, em geral durante as pausas para o cigarro ou quando tomo banho. Coisas velhas, coisas novas, coisas de quando era adolescente. Coisas tão embaraçosas que não contaria pra ninguém.