Descobri uma das melhores HQs lançadas em 2014 apenas no início de 2015. O quadrinista Thiago Souto lançou Mikrokosmos na Comic Con Experience, em dezembro do ano passado. A obra é sua segunda publicação, a primeira foi uma coletânea de contos experimentais de ficção científica chamada Supernova. Protagonizado por uma astronauta em uma viagem solitária pelo espaço, Mikrokosmos é repleto de idas e vindas temporais: enquanto cumpre suas missões, o protagonista relembra seu passado tendo como trilha sonora músicas que marcaram sua infância como pianista. Percorrendo todo o livro estão as partituras do conjunto de peças para piano Mikrokosmos, do compositor húngaro Béla Bartók (1881-1945).
Mesclando preto, branco, tons de cinza e rosa, em uma ótima trama sci-fi, Souto produziu um dos quadrinhos brasileiros mais impressionantes que li recentemente. Para 2015, ele trabalha em dois projetos. Com algumas artes já divulgadas, mas sem previsão de lançamento, um deles é Labirinto. Já o outro, ainda sem nome, mas também com uma temática musical, deverá estar disponível nos eventos de quadrinhos marcados para o segundo semestre do ano. Bati um papo com Thiago Souto sobre suas inspirações para Mikrokosmos, suas opiniões sobre o mercado brasileiro de quadrinho e seus próximos lançamentos. Saca só:
Quando acabei de ler o Mikrokosmos fiquei pensando em como ele dialogava com uma leva recente de produções de ficção científica que gosto muito. Filmes como Lunar, Sunshine, Another Planet e Interstellar. São produções que têm o pano de fundo sci-fi, mas o tema principal implícito na trama acaba sendo outro. Quais foram suas principais influências na produção do livro?
São filmes que curto muito. E você está certo, no caso de Mikrokosrmos o tema espacial acabou sendo uma ferramenta narrativa para colocar o personagem em um ambiente de extrema solidão. Gosto do contraste entre a imensidão do espaço e os dramas íntimos, pessoais. O mergulho no espaço – ou na solidão – é, na verdade, um mergulho para dentro.
Mas voltando à pergunta: sempre curti ficção, meu filme preferido é, provavelmente, Blade Runner. Amo 2001, Solaris, Star Wars, Alien etc… Certamente existe uma influência deles na história, mas acho que é algo subconsciente. Tirando a parte musical, fiz pouca pesquisa de referência para o roteiro e para a arte.
E na maioria desses filmes há um peso muito grande da trilha sonora – assim como em 2001, que é do mesmo gênero. Como você construiu a trama de Mikrokosmos? Primeiro veio a música ou foi esse pano de fundo de ficção científica?
Eu estava empenhado em produzir algo para 2014 e queria que desse tempo de levar na CCXP. Precisava de um ponto de partida e o ambiente espacial me veio na cabeça. Quando sentei para escrever, a primeira linha de texto que digitei foi: “O som não se propaga pelo espaço”. Quando escrevi “som” estava pensando em música. A partir disso fui fazendo várias associações e a história tomou forma.
Na primeira referencia que você fez a Mikrokosmos eu fui pro Youtube e pra Wikipedia procurar sobre o que era Mikrokosmos e quem era Béla Bartók. Você teve alguma formação musical? Por que essa obra e esse autor?
Tive uma formação musical básica, estudei um pouco de piano e aprendi outros instrumentos como autodidata, mas sou um músico medíocre.
Mikrokosmos, de Bartók, é um conjunto de 153 peças para piano, com um espectro que vai desde o muito fácil ao muito difícil. É bastante usado no ensino musical. Como acompanhamos o crescimento do garoto, achei interessante usar um elemento que permeasse toda história. Além disso, o título da obra oferece um gancho irresistível: apesar do cenário espacial, a história se passa no íntimo do personagem, com o universo visto do ponto de vista pessoal e isso é uma das definições para Microcosmo.
E apesar de não ser raro, é ousado misturar música e quadrinhos. Gosto como você distribuiu as partituras ao longo das páginas pois isso me colocou dentro da história mesmo sem conhecer aquelas músicas. Foi um desafio pra você encontrar esse formato?
Eu queria que as músicas tivessem uma relação com o momento da história. Até montei uma playlist da HQ com a sequência das músicas. Sobre as partituras, quis usá-las como um elemento narrativo, para indicar em que momento e com qual intensidade a música – o passado – está presente em determinada parte da história. Acho possível que algumas pessoas tenham executado uma música mental durante a história e, de repente, as partituras podem ter servido para controlar essa intensidade.
Não li o seu trabalho anterior, Supernova. Mas também é uma ficção científica, certo?
Supernova foi minha primeira publicação. São 4 histórias, sem relação entre elas, porém apenas uma tem um viés para a ficção. Publiquei a revista junto com um amigo, Rodrigo Venkli. Desenhei três, das quais escrevi duas. Como a revista está esgotada, devemos publicar online, aos poucos.
E pelo que pesquisei, o Supernova reúne histórias que buscam experimentar com a linguagem dos quadrinhos? Por que fazer uma revista com esse objetivo?
Como minha primeira publicação, eu estava explorando técnicas e materiais. Trabalhei para o mercado de design e publicidade, que muitas vezes exigem uma versatilidade grande de estilos. Isso te faz evoluir tecnicamente, porém a questão autoral foi ficando em segundo plano. Essa experimentação está, portanto, mais relacionada com uma busca pessoal do que com a intenção de realizar algo original dentro do universo dos quadrinhos.
O Supernova você lançou no FIQ e o Mikrokosmos na Comic Con Experience. Qual a importância que você vê desse tipo de evento para os autores de quadrinhos brasileiros?
Fundamental. Eles proporcionam uma aproximação diferente das redes sociais, por exemplo. É um contato que acaba criando um vínculo mais forte entre o leitor e a história/autor. No caso dos independentes, os eventos também dão um respiro financeiro, já que é possível recuperar parte do investimento em um período de tempo muito curto. No entanto, o mais importante é que eventos, grandes ou pequenos, são pilares fundamentais para o crescimento e manutenção do mercado de uma forma geral. Eles fomentam a discussão, o contato entre profissionais da área e criam uma exposição importante, também, na mídia não especializada.
E tendo a experiência de já ter participado desses dois eventos, talvez os dois maiores relacionados ao mercado brasileiro de quadrinhos, qual leitura você faz desse cenário de publicações independentes brasileiras? Você vê algum tema em comum ou algum padrões na postura dos artistas?
Não sou nenhum especialista em mercado e não vi números (existem?) que confirmem o que vou dizer, mas é evidente que nos últimos anos o mercado cresceu bastante para os independentes. Espero que a curva continue em ascensão por muito mais tempo, porque ainda é um mercado restrito. Os eventos tem papel fundamental nesse crescimento. Acho que o acesso que a Internet proporcionou nos últimos quinze anos também foi importante, assim como processos de impressão mais baratos para pequenas tiragens. Bom, tem muita coisa aí.
Vejo uma variedade muito grande nas publicações, alguns coletivos e editoras com linhas muito claras. Tem coisas espetaculares sendo produzidas e, de uma forma geral, não vejo os autores estagnados em temas específicos.
Sobre a postura, como temos um mercado em desenvolvimento, acredito que seja natural o artista precisar correr muito mais para publicar. Claro que não é o ideal, sobrecarrega demais precisar cuidar da captação do recurso, escrever, desenhar, pintar, imprimir, distribuir, divulgar, fazer relações públicas, assessoria de imprensa e, muitas vezes, ainda ter um emprego que pague as contas.
Tenho a impressão de que o crescimento do público depende, também, de um desenvolvimento cultural, que faça crescer e distribuir melhor os leitores (acho que isso se aplica à literatura de uma forma geral). Esse desenvolvimento também beneficiaria a qualidade das publicações, assim como a proporção de coisas legais na praça. É uma questão muito ampla e as soluções não viriam apenas de uma esfera. Me parece um processo orgânico que pode ser fortalecido por um debate civilizado, a mídia especializada tem um papel importante aí.
E o que você acha do público leitor de obras independentes, como a sua? Ele ainda está restrito a um grupo fechado já habituado a esses trabalhos? Se sim, é preciso um esforço pra ir além dessas pessoas?
O público que consome regularmente o independente certamente já está habituado com os trabalhos, mas é preciso ir além. Claro que esse movimento não seria transformar as histórias para agradar um público potencial, mas atrair essas pessoas para a diversidade do autoral. Para direcionar um esforço nesse sentido, acredito que é preciso entender a cabeça e o caminho do leitor até o independente/autoral. Isso não é claro para mim. Parte desse público aparece buscando uma “evolução” ao quadrinho mainstream. Outra parte nunca se identificou com o mainstream e já começa pelo autoral/independente. A escola talvez tenha um papel importante na introdução da linguagem dos quadrinhos. Não tenho ideia da proporção desses números e quais seriam as outras variáveis. Acho que esse esforço depende de uma profissionalização cada vez maior do mercado.
Você já tem algum próximo trabalho encaminhado? Esse ano também tem FIQ e Comic Con, você vai ter trabalhos publicados em ambos?
Estou produzindo uma história chamada Labirinto (dá para acompanhar um pouco da produção por aqui) . Minha primeira previsão era de lançar no FIQ, mas acho difícil, é um projeto mais ambicioso e o prazo apertado certamente comprometeria a qualidade. No entanto, estou trabalhando em outro roteiro, esse sim para lançar nos eventos. Ele também tem uma veia musical, porém o caminho é completamente diferente de Mikrokosmos.
E o que você está lendo hoje? Seja em relação a quadrinhos ou literatura…
Li recentemente Bom de Briga do Paul Pope, O Lobisomem & a Múmia do Eduardo Belga, Cumbe do Marcelo D’Salete, A Prisão da Fé do Lawrence Wright, Ubik do Philip K Dick, A Arte de Produzir Efeito sem Causa do Mutarelli. O que está na cabeceira é Culture Crash, the Killing of the Creative Class do Scott Timberg.