O álbum Golias é o primeiro quadrinho do artista escocês Tom Gauld publicado no Brasil. Lançada por aqui pela editora Todavia, a HQ narra a história do confronto bíblico entre Davi e Golias, mas sob o ponto de vista do gigante filisteu. Eu entrevistei o quadrinista britânico sobre a criação de Golias e essa conversa virou matéria para o Segundo Caderno do jornal O Globo – que você lê clicando aqui.
Eu compartilho a seguir a íntegra desse papo com Gauld. Ele comentou o ponto de partida de Golias, o desenvolvimento de seu estilo e as inspirações por trás de Mooncop – próximo trabalho do autor a ser publicado no Brasil, também pela Todavia. Saca só:
“Eu realmente não me importo se algo é uma história em quadrinhos, um livro ilustrado, um romance ilustrado ou romance gráfico, contanto que seja interessante”
Qual a memória mais antiga que você tem da presença de quadrinhos na sua vida?
Eu cresci no interior e toda semana meus pais levavam eu e o meu irmão à livraria e nos deixavam escolher qualquer livro que quiséssemos. Os únicos quadrinhos eram os livros de Asterix e Tintin, então eles se tornaram minha introdução aos quadrinhos.
Eu gostaria de saber o que são quadrinhos para você. Você tem alguma definição pessoal?
Eu costumo pensar em quadrinhos como palavras e imagens trabalhando juntas na página para construir uma narrativa. A parte “trabalhando juntas” é provavelmente o mais importante. Por exemplo, um livro que tenha apenas uma foto e algum texto em cada página, provavelmente não é uma história em quadrinhos: os dois precisam interagir. Para mim, o que faz uma boa história em quadrinhos não são desenhos bonitos ou frases elegantes, mas sim como imagens e texto trabalham juntos na página para criar uma coisa nova que é muito maior do que suas partes.
É claro que essa definição não leva em conta histórias em quadrinhos sem palavras. O que serve para mostrar que não sou capaz de definir exatamente histórias quadrinhos de maneira satisfatória. No final das contas, eu realmente não me importo se algo é uma história em quadrinhos, um livro ilustrado, um romance ilustrado ou romance gráfico, contanto que seja interessante.
Como você se define profissionalmente? Você trabalha como ilustrador, cartunista e quadrinista. Vocês tem alguma palavra preferida para definir a sua atuação?
Eu fico feliz em ser chamado por qualquer um desses nomes. Eu geralmente digo que sou cartunista e ilustrador.
É muito fácil reconhecer um quadrinho feito pelo Tom Gauld. Você diria que tem um estilo pessoal? Se sim, como você poderia falar um pouco como chegou a ele?
Sim, eu reconheço que tenho um estilo de desenho identificável. Quando eu estava na escola e depois na faculdade de arte, trabalhei de muitas formas distintas, copiando artistas diferentes, tentando encontrar meu próprio estilo e me sentindo frustrado por não conseguir. Eu acho que quase todos os artistas passam por isso quando começam. Mas as coisas mudaram quando comecei a desenhar quadrinhos, no final do meu período na faculdade. Eu estava tão ocupado tentando aprender todas as novas habilidades que eu precisava para contar uma história (escrita, layouts de página, passagem de tempo, etc) que eu apenas desenhei no estilo simples que eu usava quando não estava tentando impressionar ninguém. Esse estilo simples funcionou bem para meus primeiros quadrinhos e, com algumas mudanças e evoluções, ainda é o estilo que uso agora. Então eu encontrei meu estilo quando parei de tentar encontrar um estilo.
“Eu geralmente vejo toda a idéia em pequenas versões no meu caderno de desenho antes de passar para desenhos a lápis no papel”
Além do estilo do seu traço também vejo alguns temas e sentimentos muito presentes no seu trabalho. Penso principalmente em solidão e melancolia. Você costuma pensar muito sobre solidão e melancolia? Você se considera solitário e melancólico?
Eu não me descreveria como um solitário, parece extremo demais, mas estou feliz em minha própria companhia, provavelmente por mais tempo que muitas outras pessoas. Da mesma forma, sinto melancolia às vezes, mas não de forma esmagadora. Eu acho que você está correto ao notar que esses temas estão presentes nos quadrinhos, mas eles estão mais presentes nos quadrinhos do que na minha vida. Eu acho que pode ser que os quadrinhos venham da parte de mim que está feliz por estar só e mais aberta à tristeza.
Você pode falar um pouco sobre os seus métodos de trabalhos e suas técnicas? Que tipo de material você geralmente utiliza? Você tem alguma rotina de trabalho?
Todos os meus trabalhos, desde ilustrações até curtas-metragens e graphic novels, começam nos meus cadernos de esboços. Eu estou sempre fazendo pequenas anotações e rabiscos e alguns deles ficam sentados por anos antes de se transformarem em uma obra de arte acabada. Eu geralmente vejo toda a idéia em pequenas versões no meu caderno de desenho antes de passar para desenhos a lápis no papel. Eu faço muitos desenhos e quando eu tenho um que funciona, eu uso uma mesa de luz para traçar os contornos básicos em um papel melhor com uma caneta Uni-Ball. Em seguida, adiciono todos os detalhes, textura e hachura na caneta e, quando termino, digitalizo no computador e adiciono a cor no photoshop.
Eu trabalho melhor no começo do dia. Algumas das minhas melhores ideias surgem na viagem de ônibus até o trabalho pela manhã e faço rabiscos em um pequeno caderno de bolso para não deixá-las escapar. Eu tento ir ao meu estúdio às 8h30 e fazer o máximo de desenho possível antes do almoço. Em um mundo perfeito, eu nem ligaria o computador até a tarde, porque é uma distração terrível. Eu normalmente fico sem energia criativa por volta das 16h, então eu resolvo alguma papelada ou emails por um tempo e volto para casa às 17:30. Às vezes, faço algumas anotações e rabiscos em meus cadernos de esboços à noite.
“Quanto mais eu pensava sobre a história, mais eu percebia que Golias é o verdadeiro azarão”
O que você pensa ao ver o seu trabalho sendo publicado em um país como o Brasil? Você fica curioso em relação à forma como seu quadrinho será lido e interpretado em uma realidade tão diferente daquela em que você vive?
Além de algumas poucas palavras de francês, eu só falo inglês, então tenho que confiar nos editores e tradutores para fazer os quadrinhos funcionarem em um novo idioma. Mas como você está sugerindo, é mais do que apenas a linguagem que muda. Estou realmente feliz por meu trabalho e o humor em particular terem encontrado uma audiência no exterior. Ambos Golias e Mooncop são inspirados por obras de arte existentes (os filmes bíblicos e de ficção científica) que são bastante universais.
Por que contar a história de Davi e Golias sob a perspectiva do Golias?
Eu gostava da ideia de pegar uma história bem conhecida e contar de outro ponto de vista. O mito de Davi e Golias me atraiu porque é dito completamente do ponto de vista de Davi. O Golias é apenas um personagem, ele é apenas um dispositivo de enredo ou uma representação do mal, de modo que deixou muitas perguntas para eu responder na minha história: Por que ele está ameaçando os israelitas? O que ele fez antes? Como ele se sente sobre isso?
Eu também achei que quanto mais eu pensava sobre a história, mais eu percebia que Golias é o verdadeiro azarão. A história não é gigante versus garoto, é gigante versus garoto e O-Todo-Poderoso-Criador-do-Universo.O Golias está condenado desde o começo, então eu não pude deixar de sentir simpatia por ele.
“Algumas coisas são ruins e outras são boas, mas são tantas, que me sinto mais confuso do que otimista ou pessimista”
E você poderia me falar um pouco sobre a origem de Moocop?
A idéia de um policial na lua veio de um brinquedo dos anos 1960 que encontrei, que era um carro com ‘Space Patrol’ escrito de um lado e um motorista em uma cúpula de vidro empunhando um canhão de laser. A embalagem mostrava o carro em uma lua deserta, com a terra no céu negro acima. O brinquedo sugeriu um futuro em que não apenas havíamos colonizado a lua, mas o empreendimento foi bem sucedido o suficiente para exigir uma força policial fortemente armada. A distância entre essa idéia otimista e datada do futuro e o fato de que ninguém pôs os pés na lua desde 1972 pareceu engraçada e meio trágica. Comecei a imaginar a vida de um policial solitário patrulhando a lua e a história cresceu a partir daí.
Mooncop me fez pensar bastante sobre a nossa realidade hoje e as nossas perspectivas. Você é otimista em relação ao nosso futuro?
Eu tento me manter positivo. Mas sinto que hoje as coisas estão acontecendo e mudando mais rápido do que nunca. Algumas coisas são ruins e outras são boas, mas são tantas, que me sinto mais confuso do que otimista ou pessimista.
Artes, literatura e ciência são temas muito presentes no seu trabalho. Estamos testemunhando um número cada vez maior de governos de extrema-direita nos quais artes e ciência acabam são costumeiramente atacados. Você vê algum motivo em particular para essas áreas serem vítimas habituais desses governos?
Parece que geralmente a direita política quer manter as coisas como estão ou voltar aos ‘bons e velhos tempos’. Enquanto a arte e a ciência estão frequentemente tentando coisas novas ou olhando para as coisas de uma nova maneira.
Eu acho que alguns políticos só estão interessados em coisas para as quais um valor monetário pode ser facilmente agregado, e ciência e arte são menos fáceis de serem valorizadas assim.
Você está produzido algum projeto novo no momento?
Eu estou trabalho em dois livros no momento. Um é uma coletânea de cartuns sobre ciência e o outro é um livro ilustrado para crianças.
A última! Você poderia recomendar algo que esteja lendo, assistindo ou ouvindo no momento?
Gostei muito da nova graphic novel do Jon McNaught, Kingdom, que fala sobre a vida comum e mundana de uma forma muito bonita e interessante.
Eu ouço muito rádio e podcasts enquanto desenho e particularmente gosto de In Our Time da BBC que analisa um tópico diferente da história, da ciência e das artes a cada semana. Três especialistas falam sobre o assunto, mas o anfitrião é brilhante em fazê-los explicar as coisas em termos que alguém como eu possa entender.