Já tinha entrevistado o quadrinista Tom Scioli lá em 2021, quando a editora Conrad lançou Jack Kirby – A Épica Biografia do Rei dos Quadrinhos. Voltei a falar com ele agora para escrever sobre Prazer, Stan – A Biografia em Quadrinhos do Lendário Stan Lee, publicada por aqui pela mesma Conrad (e traduzida por Érico Assis, assim como o título anterior). Transformei esse papo novo em reportagem para a Folha de S.Paulo (já leu?).
As 208 páginas de Prazer, Stan consistem em um panorama frenético da vida e da obra de Lee. É um trabalho documental propositalmente inconclusivo em relação às contribuições reais do autor na criação de heróis como Homem-Aranha, X-Men, Quarteto Fantástico e o grupo Vingadores.
Na minha conversa mais recente com Scioli ele me falou sobre os feitos e os legados de Stan Lee e refletiu sobre os muitos desafios de retratar a vida inteira do autor em pouco mais de 200 páginas. Ele também me contou quem poderia ser um de seus próximos biografados: “[Steve] Ditko seria interessante, uma sequência natural”. Compartilho agora a íntegra do meu papo com Scioli. Ó:
“É difícil discernir quais foram as suas verdadeiras criações”
Você poderia me contar um pouco sobre a origem de Prazer, Stan – A Biografia em Quadrinhos do Lendário Stan Lee? Você se lembra do ponto de partida do livro?
Enquanto eu trabalhava no livro sobre o Jack Kirby, um livro fantasma paralelo sobre o Stan Lee começou tomar forma. Há um breve interlúdio no livro sobre o Kirby, quando Stan assume como narrador, no qual temos um pequeno vislumbre da história dele. A pesquisa para o livro sobre o Kirby naturalmente levou a muitas pesquisas sobre o Stan Lee, então eu construí uma base bastante sólida. Aí tive a ideia do livro sobre o Stan Lee. A editora até me perguntou se eu já queria fazer um livro sobre Stan Lee [logo depois do livro sobre Jack Kirby], mas eu ainda não estava pronto. Eu precisava de um tempinho. Fui trabalhando em outros projetos junto enquanto fazia a história de Stan Lee, mas foi talvez só um ano depois que entendi como contar a história de Stan Lee de uma outra forma.
Qual é a lembrança mais antiga que você tem do nome Stan Lee?
Ouvi o nome dele pela primeira vez quando era criança, assistindo aos desenhos do Homem-Aranha na TV. Stan Lee era o narrador que começava cada episódio dizendo: ‘Saudações, true believers, aqui é o seu amigão, Stan Lee!’.
Seu livro começa com uma página muito impressionante de Stan Lee em seus últimos anos de vida, não tão lúcido, mas ainda indo a convenções. Estou curioso sobre esta página específica. Você se lembra de quando ouviu falar dessa vivência do Stan Lee teve? O que ela significou para você?
A comunidade de quadrinhos só falava sobre isso. Era devastador. Era algo muito sorturno e muito triste. O Stan era visto como o topo da montanha, aquele que chegou o mais longe possível nos quadrinhos, e era assim que ele passava seus últimos dias.
O que mais gosto nessa primeira página é que ela sintetiza Lee em toda a sua glória, como herói e vítima de uma indústria que ele tanto ajudou a criar. E eu gosto do seu livro porque… Ok, o Stan Lee foi o herói de um sistema, mas acabou virando um personagem, uma espécie de marca, e vítima de uma estrutura corporativa global, certo?
Ao mesmo tempo, a história dele não era tão incomum. Stan Lee teve uma visão de como poderia se reinventar. Não funcionou exatamente como ele imaginou, mas definitivamente o levou a algum lugar. Esse tipo de automitologização é, em última análise, uma forma de esvaziamento. A vida dele foi, em muitos aspectos, um alerta.
“Ele era a memória institucional da Marvel, o tecido conjuntivo”
Eu estava comparando o seu livro sobre o Jack Kirby com este sobre o Stan Lee… A vida de Kirby me pareceu muito mais clara, sua jornada, suas escolhas e quem ele era. A vida de Stan Lee foi muito mais caótica. Por causa disso, a produção deste livro foi de alguma forma mais difícil do que o livro sobre Kirby?
Eles eram pessoas muito diferentes e por isso exigiram abordagens muito diferentes. Eu queria que cada livro fosse independente, mas quando lidos em sequência algo mágico acontecesse.
E não há espaço no seu livro para experimentações de design. Ele é muito rígido e focado no objetivo de narrar a vida de uma pessoa. Esse rigor ajudou de alguma forma a retratar uma vida tão errática?
Havia muito coisa a ser retratada. O Stan viveu muito tempo e acumulou muitos feitos durante todos esses anos. Na meia-idade, ele estava apenas começando. Ele se movimentava com velocidade, então abordei o livro dessa forma, com tudo construído para parecer um fluxo ininterrupto.
Qual você considera ser a maior contribuição de Stan Lee para a indústria dos quadrinhos? E qual você acha que é seu pior legado?
Ele manteve o barco navegando. Ele era a memória institucional da Marvel, o tecido conjuntivo. Ele criou um estilo de diálogo e uma caracterização verbal cuja influência se faz sentir até hoje, em múltiplos gêneros. Suas preferências como editor e escritor se destacam até hoje na indústria de quadrinhos.
Seu pior legado? A apropriação de créditos, os testemunhos legais que impedem os seus co-criadores de receberem a suas partes por suas criações.
“Quando ele falava sobre a indústria, eram frases de efeito simplistas e brincadeiras”
Qual aspecto da imagem pública de Stan Lee mais te incomoda?
É frustrante porque ele teve muitos feitos, ele fez parte de quase toda a história dos quadrinhos, mas quando ele falava ou escrevia sobre o meio e a indústria, eram principalmente frases de efeito simplistas e brincadeiras. Houve pouca comunicação de substância quando ele tinha tanto que poderia ter compartilhado. Houve pouca comunicação sólida apesar de tudo o que ele poderia ter compartilhado.
Existe alguma criação de Lee, algo que você possa dizer com certeza absoluta que foi criação dele, pela qual você se sente alguma admiração em particular?
Tenho quase certeza de que o diálogo, a narrativa, o humor verbal e a caracterização; e as piadas do Homem-Aranha e do Quarteto Fantástico e outras brincadeiras, são feitos do Stan e sou um fã desses elementos – e acho que são ingredientes essenciais e influentes para o impacto desses quadrinhos. Graças às reivindicações de crédito exageradas de Stan, ironicamente, torna-se difícil discernir quais foram as suas verdadeiras criações. Eu posso apostar. Tenho a suspeita de que Jack Frost [Nevasca] e o Headline Hunter foram ideias que começaram com Stan, mas não há como ter certeza. Talvez o Homem-Fuleiro?
Você tem algum outro autor de quadrinhos ou personalidade da indústria que gostaria de retratar em uma biografia? E no que você está trabalhando agora?
[Steve] Ditko seria interessante, uma sequência natural. No momento estou terminando o trabalho em WITCHMAN, uma nova história em quadrinhos de super-heróis, e acabei de entregar o roteiro de uma história em quadrinhos do Godzilla.
Você poderia recomendar algo em particular que tenha visto, lido ou ouvido recentemente?
Falando em Godzilla, já vi Godzilla Minus One duas vezes. É ótimo em cores, mas ainda melhor em preto e branco.