Papo com Tony Bennett, editor de Alan Moore: “Ele usa a linguagem para abrir os olhos e a mente do leitor para novos conceitos”

Entrevistei o editor Tony Bennett, fundador da lendária Knockabout Press, editora britânica de gigantes como Gilbert Shelton, Hunt Emerson, Neil Gaiman, Robert e Aline Crumb, Melinda Gebbie, Eddie Campbell, Brian Bolland, Dave McKean, Martin Rowson, Paco Roca e muitos outros. O foco do nosso papo foi a relação dele com Alan Moore, principalmente o trabalho de edição de Jerusalém, originalmente publicado pela Knockabout Press em 2016. Transformei esse papo em coluna para a nona edição da minha coluna no blog da editora Veneta. Já leu? Compartilho agora a íntegra da nossa conversa. Saca só:

“O Alan tem uma habilidade incrível de criar livros inteiros em sua cabeça antes de colocar qualquer coisa no papel”

Eu queria saber sobre a curadoria e a linha editorial da Knockabout. Você consegue definir qual é o grande filtro por trás dos seus trabalhos? O quanto ele mudou ao longo desses quase 50 anos desde a fundação da editora?

Sátira e humor sempre foram grande parte do que produzimos, além de livros que tratam de pessoas e ideias marginalizadas. Há 50 anos, também publicávamos títulos sobre auto-subsistência, guias de cultivo de maconha e outras informações sobre drogas, bem como Fabulous Furry Freak Brothers (ainda impressos agora).

Você pode falar um pouco sobre a sua relação com o Alan Moore? Como vocês se conheceram? Como vocês começaram a sua parceria como autor-editor?

Conheço o Alan desde o final dos anos 1970. Ele trabalhava principalmente no gênero super-heróis/fantasia/ficção científica naquela época, embora tivesse grande interesse em outros tipos de literatura “underground”. Ele escreveu alguns contos para Knockabout na década de 1980, em nossas antologias, e em Outrageous Tales from the Old Testament e Seven Deady Sins. Quando Do Inferno estava sendo reunido em um volume, o Alan sugeriu que o publicássemos no Reino Unido (como uma coprodução com a Top Shelf nos EUA). Continuamos esse relacionamento com a Liga Extraordinária, Lost Girls e outros.

Como é editar uma obra do Alan Moore? Como foi editar Jerusalém? Houve alguma particularidade em relação à edição dessa obra?

Como o Alan tem uma habilidade incrível e impressionante de criar livros inteiros em sua cabeça antes de colocar qualquer coisa no papel ou no computador, ele não precisa de muita edição. Quando comecei a ler o primeiro capítulo de Jerusalém, disse para mim mesmo “essa frase tem muitos adjetivos” e quando terminei aquela frase fiquei encantado com sua riqueza. A mesma coisa aconteceria com a frase seguinte, o meu cérebro dizia “não, não, muitos adjetivos de novo” e então “ah, isso foi uma escrita muito, muito satisfatória”. O Alan teve a ajuda de algumas pessoas maravilhosas para ajudar com o contexto social/histórico e vários de nós ficamos por conta de todos os erros de digitação (bem, espero que tenhamos conseguido!).

O escritor e quadrinista Alan Moore (divulgação)

Qual você considera o maior mérito do Alan Moore como escritor?

A estrutura é um dos seus maiores trunfos. Em Watchmen, Do Inferno, Liga Extraordinária e seus romances Voz do Fogo e Jerusalém, você vê sua capacidade de cruzar referências da história ao mesmo tempo em que a história é contada em várias camadas – como bonecas Matryoshka de quatro ou cinco dimensões.

Qual você considera o maior mérito de Jersualem?

Novamente, está na inteligência do conceito, em que o escritor pode produzir alguns capítulos como um poema, uma peça ou uma linguagem Joyceana e escrever 35 capítulos, porque precisam ser 35 capítulos, pois correspondem aos 35 itens expostos na exposição de arte que está acontecendo no agora, enquanto lemos o livro – o livro que percorre séculos de tempo e muitos níveis de espaço e ideias, com tudo resolvido no último capítulo.

Os quadrinhos de Alan Moore são marcados pela relação deles com a linguagem, nunca diz respeito apenas à história. Você acha que o mesmo pode ser dito em relação aos livros dele?

Certamente. A Voz do Fogo, seu primeiro romance que se passa na área ao redor de sua cidade natal, Northampton, é contado em diversas línguas, desde a pré-história até os tempos modernos. Jerusalém, que foi escrito sobre uma área muito pequena de Northampton, usa a linguagem quase como uma arma ou um bisturi de cirurgião para abrir os olhos e a mente do leitor para novos conceitos.

“Continuaremos a publicar livros que talvez ajudem as pessoas a ver as coisas de forma diferente”

O que Jerusalém representa dentro da obra do Alan Moore? Qual o significado desse livro em meio a uma carreira de mais de 50 anos?

Acho que é a sua obra-prima, onde as suas ideias e pensamentos são compartilhados com o mundo.

O Alan diz [sobre Jerusalém]: “em um caleidoscópio de formas e estilos literários que vão do realismo social brutal à fantasia infantil extravagante e do drama moderno aos extremos da ficção científica, o elenco estonteantemente rico de personagens de Jerusalém inclui os vivos, os mortos, os celestiais e o infernal em uma tapeçaria intrincadamente tecida que se esforça para apresentar a visão de uma realidade humana absoluta e atemporal em todo o seu esplendor requintado, cômico e comovente”.

Jerusalém não é apenas longo, mas também um exercício de linguagem desafiador do Alan Moore. Traduzir e adaptar uma obra do tipo para outra língua é uma investida ousada. O que significa para vocês, editores originais do livro, verem essa obra sendo publicada em português?

Que trabalho ao mesmo tempo muito difícil e também gratificante para o tradutor. Estou muito feliz que esteja saindo em português. Sugeri aos tradutores para o francês e o espanhol que a maneira de entender o capítulo de Lucia Joyce era lê-lo em voz alta ou em voz alta na sua cabeça, se é que você me entende. Foi assim que consegui entender melhor a versão em inglês. Aí, uma espécie de poema sonoro se forma e o sentido fica claro. Não invejo o tradutor de forma alguma.

A Knockabout está extremamente associada a autores contraculturais e subversivos. Fico curioso: como é trabalhar com essa curadoria em um mundo de conservadorismo crescente? Aliás, qual você considera o papel da arte dentro desse contexto?

É a única coisa que sei fazer!! Sempre estive envolvido com a “contracultura” desde a década de 1960. O mundo está certamente mudando para uma forma de pensar mais repressiva em muitos países e suspeito acabaremos vendo mais censura e leis intolerantes. No entanto, continuaremos a publicar livros que entretêm, informam e talvez ajudem as pessoas a ver as coisas de forma diferente.

As capas das edições brasileiras de Jerusalém (divulgação)
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Ramon Vitral

Meu nome é Ramon Vitral, sou jornalista e nasci em Juiz de Fora (MG). Edito o Vitralizado desde 2012 e sou autor do livro Vitralizado - HQs e o Mundo, publicado pela editora MMarte.

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