A quadrinista inglesa Una está no Brasil. Autora do álbum Desconstruindo Una, vencedor do Prêmio Grampo de Bronze em 2017, ela estará a partir das 19h de hoje (23/10) na loja Ugra (Rua Augusta, 1371, loja 116), em São Paulo, participando de bate-papo seguido de sessão de autógrafos. Um dos focos da conversa será Una – Dedicado a Todas as Outras, espetáculo organizado pelo grupo de teatro Coletivo Rubra, da cidade de Mauá, que adapta para os palcos o álbum de Una publicado em português.
Você confere outras informações sobre o encontro com a presença da quadrinista inglesa na página do evento no Facebook.
Lançado originalmente em 2015, Desconstruindo Una é uma mistura de pensata com jornalismo e histórias em quadrinhos para tratar de violência contra mulheres, desigualdade de gênero, culpa e responsabilidade social. A autora britânica narra sua infância em uma Inglaterra extremamente conservadora e machista no fim dos anos 1970 e sua experiência como sobrevivente de violência sexual para refletir sobre algumas das questões mais importantes do mundo hoje.
A conversa a seguir com a autora reúne perguntas feitas em duas entrevistas com Una, uma realizada em 2016 e outra na semana passada, ambas conduzidas pela jornalista Carolina de Assis. A quadrinista fala sobre o desenvolvimento de Desconstruindo Una, trata da sua formação como feminista e leitora de histórias em quadrinhos, celebra a repercussão de seu trabalho no Brasil e lamenta a ascensão da extrema-direita no mundo. Papo massa, saca só:
“O clima em torno da violência sexual e do abuso histórico estava mudando enquanto eu escrevia o livro”
Como começou o processo de produção de Desconstruindo Una?
Foi um processo bastante longo, porque a princípio eu não estava de fato escrevendo um livro, eu estava fazendo alguns desenhos. Eu estava pensando em escrever algum tipo de graphic novel e já tinha começado a testar algumas ideias. Eu estava trabalhando em uma escola de artes e também trabalhava como artista já fazia um bom tempo, mas eu estava interessada em quadrinhos, em quadrinhos sérios. Eu estava pensando em produzir um quadrinho e estava apenas rabiscando esses desenhos no meu horário de almoço, às vezes em casa e apenas ver o que aconteceria. Então, quando eu comecei a escrever o livro, fazia parte desse processo. E foi só quando percebi que poderia ter algo importante a dizer que comecei a levar mais a sério o projeto. Quando pensei nisso como um projeto, o mostrei a uma eminente professora universitária feminista em Leeds com quem eu tinha estudado e pensei “vou mostrar para ela porque ela vai ser capaz de fazer um julgamento crítico sobre se isso é uma obra de arte, o que é que eu estou fazendo, devo continuar fazendo, ou se só tem alguma utilidade para mim pessoalmente”. Tivemos uma conversa muito interessante sobre isso, e sobre memórias, imagens, imagens inadvertidamente pornográficas, sobre evitar isso, todo tipo de coisa, e ela foi muito legal comigo. Comecei a me sentir muito melhor sobre o projeto e pensei sim, vou continuar fazendo isso.
E realmente demorou bastante tempo para se desenvolver, e durante esse tempo eu desenvolvi todas as ideias visuais e é por isso que acho que existem diferentes registros no livro, porque eu estava testando diferentes maneiras de desenhar e escrever e combinar as duas coisas. E também o clima em torno da violência sexual e do abuso histórico estava mudando enquanto eu escrevia o livro, especialmente no Reino Unido. Foi um período em que várias coisas aconteceram enquanto eu estava escrevendo o livro, e a maior coisa foi Jimmy Saville, uma celebridade muito conhecida, e aquilo [a revelação de que Saville havia abusado de dezenas de pessoas, inclusive crianças] aconteceu e o resultado foi que muitas e muitas pessoas começaram a denunciar abusos históricos e eu pensei: isso é muito interessante e agora tenho que tratar de duas coisas, na verdade. Tenho que ser capaz de incorporar a essa narrativa esse novo clima que, quando comecei a escrever, o livro era principalmente sobre as razões de as mulheres não denunciarem e ainda é sobre por que as mulheres não denunciam, isso ainda é um elemento da história, mas então eu tive que tentar incorporar esse novo tipo de movimento de mulheres que estão começando a falar muito mais abertamente sobre o que aconteceu com elas e os homens também estão começando a falar muito mais abertamente sobre os abusos que sofreram nas mãos de homens predadores na infância.
Acho que, especialmente entre mulheres e entre feministas, tornou-se um movimento bastante significativo, porque é claro que é uma experiência tão comum e, embora parte da minha experiência seja bastante extrema em um tipo de espectro de abuso, elas ainda são muito mais comuns do que as pessoas pensam que são, então é algo que eu acho realmente interessante e acho que é por isso que o livro como um todo tem sido muito bem-sucedido em diferentes países, porque, embora teoricamente não haja mais nada universal, essa parece ser uma experiência universal. Novamente, elas são extremas, mas a maioria das mulheres e meninas experimentou, em certa medida, algum tipo de assédio ou abuso com motivação sexual em sua vida, ou violência.
“A maioria das mulheres e meninas experimentou, em certa medida, algum tipo de assédio ou abuso com motivação sexual em sua vida”
Por que você optou por fazer Desconstruindo Una como uma história em quadrinhos?
O livro tem uma estrutura bastante complexa, mas talvez esteja definindo um novo gênero, que eu acho que só pode acontecer nos quadrinhos porque você tem esse tipo de interação entre imagem e texto e também os quadrinhos podem fazer algo sobre histórias realmente sérias que eu acho que é apenas diferente, é diferente do livro narrativo textual normal. Acho que, como você pode experimentar com o visual e com o design e como você pode ter muitas camadas de história, a história se desenrola de uma maneira completamente diferente… Se você está lendo uma linha de texto, a história se desenrola uma palavra de cada vez, em sequência, enquanto nos quadrinhos você pode ter vozes diferentes vindas de fora, quero dizer, no meu livro eu tenho uma pessoa que não tem voz, mas que se comunica por meios visuais, e então eu tenho uma pessoa, a mesma pessoa, falando em retrospectiva, que tem uma voz e meio que narra e explica a história. Então eu tenho uma espécie de terceira pessoa, que também sou eu, que descreve as informações estatísticas, e então eu tenho vozes de personagens, vozes sociais externas, na verdade existem muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo e a única maneira de você poder fazer isso é em quadrinhos. Talvez eu seja uma das pessoas que está trabalhando em quadrinhos dessa maneira experimental e acho realmente interessante, acho que a publicação mais interessante do momento é o que as pessoas chamariam de quadrinhos alternativos.
De várias maneiras, estou tentando enfrentar alguns dos problemas de gêneros específicos, como dos livros de memórias, por exemplo. Acho que “memórias tristes” são um gênero em si, e acho que digo em certo ponto do livro: “isso não é um livro de memórias tristes”, e eu realmente acredito nisso, porque é muito triste em algumas partes, mas não é primariamente uma história triste, para as pessoas sentirem pena… Não é para isso que ele existe. Acho que um dos problemas dos livros de memórias, das memórias tristes em particular, é o impulso de ter uma história descontextualizada, quase separada do panorama cultural em que ocorreu. E, em alguns casos, acho que pode ser bonito em última análise, existem alguns exemplos realmente bonitos disso, mas acho que eles são uma minoria. O que é mais útil para o público, para escritores e para a cultura é colocar o pessoal em um contexto, um contexto cultural, social e político, e tentar entender o contexto maior, suponho. Então, nesse sentido, não acho que seja um livro de memórias. É parcialmente um livro de memórias. Acho que talvez seja um livro de polêmica [no contexto filosófico]. E agora que penso sobre isso, li muito do trabalho de Andrea Dworkin [ativista feminista], que só pode ser descrito como polêmico, então talvez seja isso. Não faço ideia, para ser sincera. Eu penso no livro como uma obra de arte, na verdade. É arte.
“Eu não teria tentado escrever o livro se eu já não me sentisse liberada e não tivesse feito a catarse antes de começar”
Como a produção de Desconstruindo Una mudou ou impactou como você se sente em relação ao seu trauma?
De certa forma, foi libertador, mas acho que eu não teria tentado escrever o livro se eu já não me sentisse liberada e não tivesse feito a catarse antes de começar. Acho que teria sido um erro. Certamente há um elemento disso, mas acho que se existe um elemento de catarse, é mais porque é realmente ótimo, na verdade, poder conversar com as pessoas normalmente sobre isso, em vez de ficar meio encoberto pelo constrangimento, pois embora eu acredite que eu tinha resolvido o trauma, e já estava bastante livre dos sentimentos internalizados de vergonha, ainda assim eu tinha a sensação de não ser capaz de ser eu mesma. Quando conheci uma mulher com quem pensei que poderia me conectar em relação a esse assunto, não existe uma maneira imediata de dizer isso, existe? É uma coisa difícil de abordar, sabe, enquanto tomamos uma xícara de chá e comemos biscoitos em um evento: “Ah é, oi, você também foi estuprada?” Não pega muito bem (risos). No entanto, algo aconteceu na cultura, e isso se tornou mais possível, e não é por causa do que eu fiz — bem, é parte disso, e é sobre isso que eu estava falando antes, que há algum tipo de movimento nesse sentido, e embora ainda seja muito difícil falar a respeito, e difícil dizer, ouvi pessoas falarem sobre isso mil vezes mais frequentemente do que quando eu tinha 20 e poucos anos, por exemplo. Muitas pessoas entraram em contato comigo, as pessoas me contatam por email, Twitter, Facebook, esse tipo de coisa. De certa forma, é muito triste, obviamente, é muito triste ouvir isso, mas, em outro sentido, é realmente ótimo, porque acho que um sentimento de solidariedade e honestidade é realmente importante, é a solução para o problema, na verdade. Ser capaz de ser aberta e honesta sobre isso vai eventualmente resolver o problema em si. Porque é apenas porque isso é meio oculto em segredo, acho, as pessoas se safam quando fazem isso e continuam se safando. E o fato de as pessoas não poderem falar sobre isso adequadamente, acho que também não ajuda na situação. As pessoas, de um modo geral, ainda não conseguem falar sobre isso adequadamente. Acho que elas ainda não sabem o que dizer e acho que ainda há muita vergonha, mas eu diria que isso está mudando lentamente, houve uma mudança de pensamento nos últimos anos.
Por que você acha que essa mudança de pensamento aconteceu?
Acho que em parte por causa da internet, e isso soa bizarro porque a internet, de certa forma, é um lugar muito ruim para as mulheres. Mas de outras maneiras, possibilitou às mulheres mais velhas comparar e compartilhar experiências. Também tornou possível, mesmo que você não queira compartilhar suas experiências… Bem, dá para espreitar, meio que ficar espiando. Assim, mesmo pessoas tímidas ou com vergonha de falar sobre isso podem espiar as conversas de outras pessoas na internet e aprender dessa maneira, e meio que se conectar e sair dali se sentindo menos sozinhas. E acho que isso é muito importante.
“Acho que há muitos bons homens feministas por aí, não acho que seja algo exclusivo às mulheres”
Quando você começou a se identificar como feminista?
Eu realmente não lembro bem… Lembro que já no fim da minha adolescência eu zombava das feministas, de um jeito que muitas adolescentes fazem. Eu achava que elas eram hilárias, sabe, e bobas. Então, em que momento isso mudou… Suponho que apenas por me interessar por cultura, por ler coisas e conversar com pessoas, que é o que você faz quando se interessa por ideias, e lentamente essas ideias começam a… Por mais que tenha sido um processo gradual, eu diria que já nos meus vinte e poucos anos eu provavelmente me considerava feminista, mas eu provavelmente não tinha uma boa ideia do que isso realmente significava. Até que eu levei isso a sério e comecei a ler muitos livros – livros feministas, quero dizer, porque eu já lia muitos livros – mas talvez eu já estivesse nos meus 30 anos ou algo assim. E então eles começaram a fazer muito mais sentido e eu era capaz de comparar, e quando comecei a estudar esses textos eu percebi como eu já havia lido muitos textos feministas, mas eu não tinha percebido isso enquanto eu estava lendo, então isso foi bem engraçado. Tem um livro do qual eu gostei muito, da Fay Weldon, que se chama The Fat Woman’s Joke [A Piada da Mulher Gorda, em tradução livre] e eu o li quando era menina ainda, bem jovem, nem sei quantos anos eu tinha. E este foi um dos livros que li e não fazia ideia de que era uma obra feminista até muitos anos depois, e acho isso bem engraçado.
E acho que para mim a coisa mais importante a dizer na verdade é que acho que não sou o habitual entre sobreviventes… Sabe, não gosto dessa palavra, mas não tenho uma palavra melhor. Mas entre sobreviventes que são feministas não sou o habitual, no sentido de que sinto que, sem o feminismo, minhas experiências não faziam sentido. Porque essencialmente, sem o feminismo, eu seria responsável por tudo o que aconteceu comigo, não seria? Em uma visão sem uma análise feminista, eu sou o que as pessoas estavam dizendo sobre mim na época. E acho que não dá para sobreviver a isso. Eu realmente sinto pena, muita pena de mulheres antifeministas, e existem várias delas por aí. Acho que é uma posição terrível na qual se colocar. Alice Walker, eu acho, que disse “claro que sou feminista, é bom que eu esteja do meu próprio lado”, ou algo assim. Acho que é algo útil para os homens também, acho que há muitos bons homens feministas por aí, não acho que seja algo exclusivo às mulheres. Gosto de pensar assim, porque isso meio que recupera minha fé um pouco às vezes.
“O feminismo é sobre amar as mulheres e tentar entender como os papéis que as mulheres recebem devido a estereótipos culturais em torno da feminilidade restringem nossas vidas”
Qual você acha que pode ser o papel do feminismo para os homens?
Se o feminismo tem em seu cerne um exame sério do papel que a feminilidade desempenha em nossa sociedade e nossas culturas, então acho que o feminismo para os homens deve ser um exame sério do papel que a masculinidade desempenha, ou os estereótipos da masculinidade desempenham, na cultura, na sociedade. Mas devo acrescentar também que qualquer exame sério da masculinidade baseado em um simples ódio ao feminismo não vai funcionar, porque não pode ser um exame isolado, um exercício de autoconsciência, talvez. Porque as pessoas gostam de acusar as feministas de odiarem os homens e, claro, tenho certeza de que existem feministas por aí que odeiam homens, mas isso certamente não é a essência do feminismo. O feminismo é sobre amar as mulheres e tentar entender como os papéis que as mulheres recebem devido a estereótipos culturais em torno da feminilidade restringem nossas vidas.
Então acho que você pode aplicar isso em princípio, que eu ainda chamaria de feminismo, à masculinidade, e você poderia dizer “ok, quais são os papéis que são atribuídos em sua cultura aos homens por conta de ideias sociais e culturais, estereótipos sociais, em torno da masculinidade e como elas limitam você?” Acho que esse seria um exercício interessante na expansão da ideia do que um homem pode ser, da mesma maneira que o feminismo expandiu a ideia do que uma mulher pode ser.
Eu digo isso porque quero dizer que homens sempre foram gentis e bons. Penso em todos os homens que estão fazendo coisas boas no mundo. Há homens fazendo coisas fantásticas, corajosas, nobres. Eles sempre existiram. Mas de alguma forma, dentro da masculinidade, isso não está em primeiro plano, está? É um tipo de machismo estranhamente agressivo, suponho, que está em evidência. E eu me pergunto como chegou lá, mas aí só precisamos ver como Trump foi eleito nos Estados Unidos – mesmo que Hillary Clinton tenha recebido mais votos – para ver que, embora esse tipo de machismo estranho e agressivo esteja em evidência, essas pessoas não são necessariamente maioria. Temos que ter isso em mente, temos que lembrar que a maioria das pessoas é decente, a maioria das pessoas é boa. A maioria das pessoas está apenas tentando viver seu o dia e não causar mais danos ao mundo do que já existem, certo? Então, há esperança, eu sempre sou esperançosa e otimista.
“Sou uma leitora bastante eclética de histórias em quadrinhos. Posso até dar uma chance ao Batman, se estiver de bom humor”
Quais artistas e obras moldaram a sua formação como autora de histórias em quadrinhos?
Quando eu era criança, costumava ler muitos quadrinhos. Histórias em quadrinhos infantis eram muito comuns. Eu costumava ler todos eles, na verdade; aqueles mais focados nas ilustrações, aqueles bem de menininha, esse tipo de coisa. Mas eu também costumava ler a revista Mad quando conseguia botar as mãos em alguma edição, porque era algo bem para adultos e algumas partes eram um pouco rudes, então meus pais não queriam que eu lesse, era uma coisa bastante adulta. Mas sempre que eu via um exemplar na banca, eu pegava uma cópia e comprava correndo antes que alguém percebesse. Então eu sempre gostei muito desse tipo de história em quadrinhos, mas nunca os super-heróis, especialmente. E depois, quando adolescente, li muito humor bem sujo, de novo os quadrinhos mais engraçadinhos, e de novo não lia quadrinhos de super-heróis. Mas, dito isso, sou uma grande fã de ficção científica, e isso também me influencia. Mas você perguntou o que me formou como uma autora de quadrinhos, e eu acho que quando criança eu lia muitos livros bem sérios, muitos dos quais eu não entendi em nada e só mais tarde eu consegui entender o que li.
Eu li Watchmen, que é uma história em quadrinhos no estilo mais típico que critica o gênero de super-heróis e eu achei simplesmente brilhante. E depois li Persepolis, que é da Marjane Satrapi, e gostei muito da estética em preto e branco, e desde então também gosto muito de David B., um artista francês. Eu gosto muito dessa estética monocromática, meio simples, mas meio decorativa. E então eu li Maus, e daí pensei “ah, ok, se é possível escrever uma história em quadrinhos sobre o Holocausto, então sim, é definitivamente possível escrever uma história em quadrinhos sobre estupro e assassinatos e crimes com motivação sexual”. E pensei sim, vou tentar. Então foi isso que me formou. Quero dizer, isso já faz muito tempo, há quase uma década, e desde então, é claro, eu passei a me interessar muito por quadrinhos, na verdade, estou trabalhando em um doutorado em quadrinhos. Então eu li muitas coisas desde então e minhas ideias sobre o que os quadrinhos podem fazer e esse tipo de coisa mudaram bastante. Sou uma leitora bastante eclética de histórias em quadrinhos. Posso até dar uma chance ao Batman, se estiver de bom humor.
“Sou uma grande fã da arte de Chris Ware sobre vidas comuns / extraordinárias e suas adoráveis e minúsculas sequências incrementais”
Como autora e leitora, o que você vê de mais interessante sendo feito hoje nos quadrinhos?
Gosto de quadrinhos interessantes que são bem feitos e produzidos com intenção. Há muitas coisas superficiais e espetaculares por aí que não aproveitam ao máximo as qualidades especiais e específicas dos quadrinhos. Gosto de quadrinhos sobre a vida, mas eles precisam ser atenciosos, bem-feitos, comoventes e sem medo de experimentar um pouco. Minha vida em quadrinhos adultos começou com Fun Home, de Alison Bechdel, e Maus, de Art Spegelman, e acho que, para muitos criadores que trabalham com histórias de vida, esses são textos icônicos, mas agora são textos bastante antigos e formas de arte não devem ficar paradas no tempo, então os quadrinhos contemporâneos precisam construir sobre essas fundações.
Um trabalho de escrita sobre a vida que eu particularmente gosto é de Ros Chast, Can’t we talk about something more pleasant?, que apresenta fotos reais do apartamento desorganizado dos pais dela, que de alguma forma transmitem o vazio e a dor da perda no fim de um livro cheio de desenhos engraçados e uma escrita sincera de cortar o coração sobre como ela cuidou dos pais na velhice deles.
Outros livros que eu gosto tendem a ser esquisitices, o que é algo que os quadrinhos fazem bem. Adoro In Pieces (2013, Nobrow), de Marion Fayolle, e A Thousand Colored Castles, de Gareth Brookes (2017, Myriad Editions). Também sou uma grande fã da arte de Chris Ware sobre vidas comuns / extraordinárias e suas adoráveis e minúsculas sequências incrementais. Gostaria de ver muito mais profundidade nos quadrinhos. Sempre haverá espaço para coisas divertidas, mas acho que há muito potencial inexplorado.
“Nessas últimas semanas, enquanto me preparava para a viagem, aprendi mais e espero aprender o máximo possível sobre as mulheres no Brasil”
Você vem ao Brasil em parte porque um grupo de teatro brasileiro adaptou seu trabalho para uma peça de teatro. Como você recebeu a notícia dessa adaptação? O que você acha da repercussão do seu trabalho no Brasil?
Em dezembro de 2018, recebi um contato por meio do meu site de um membro de um grupo de teatro juvenil, dizendo que eles haviam desenvolvido uma peça baseada em Desconstruindo Una e perguntando se eu gostaria de ver a peça. Obviamente, a Inglaterra está muito longe de São Paulo, então eu disse que não tinha certeza de que poderia fazer isso acontecer! Também apontei que é habitual pedir permissão a uma artista para adaptar o trabalho original dela antes de fazê-lo, e não depois. Ok, mas como esse era claramente um grupo de jovens de bom coração, eu dei minha bênção e eles disseram que enviariam algumas fotos da produção. Bem, as fotos me fizeram chorar. Que maravilha ver todas essas jovens de vestidos vermelhos e os jovens atuando com elas e por elas. Eu pensei que aquilo era maravilhoso. Eles não estão produzindo a peça para ter lucro, mas para ajudar as pessoas no Brasil a debater e entender os problemas da violência sexual e da violência contra mulheres e meninas. Aquelas fotos me fizeram pensar que eu tinha que encontrar uma maneira de chegar a São Paulo para vê-las se apresentar, conhecê-las e talvez ajudá-las a promover seu trabalho e também a edição brasileira do meu livro, então quase um ano depois aqui estou no Brasil. Tem sido um esforço de equipe. Eu usei um financiamento público para as artes do Reino Unido para pagar pelo voo e o Coletivo Rubra fez um financiamento coletivo para outras despesas da viagem. Elas são ativas nas redes sociais e têm o cuidado de sempre me creditar como autora do trabalho que deu origem à peça. Espero que essa experiência seja boa para elas, porque elas realmente fizeram algo especial acontecer. A visita será uma semana de apresentações teatrais, um relançamento do meu livro com minha editora brasileira, a Nemo, entrevistas, debates e uma visita à Casa Helenira Preta, um centro de apoio e abrigo para mulheres.
Eu já estava ciente dos problemas de violência que são globais e específicos do Brasil a partir de minha pesquisa sobre violência contra mulheres e meninas, mas nessas últimas semanas, enquanto me preparava para a viagem, aprendi mais e espero aprender o máximo possível sobre as mulheres no Brasil enquanto eu estiver aqui.
“Os melhores livros acontecem quando o autor está tentando entender ou descobrir alguma coisa”
Quando conversamos em 2016, você disse que achava que estávamos “meio que caminhando como sonâmbulos para um período de totalitarismo” e contou que estava trabalhando em uma história em quadrinhos que abordava esse assunto. Você ainda está trabalhando nisso? Pode nos contar um pouco mais sobre esse livro? E como os acontecimentos políticos globais dos últimos anos afetaram seu trabalho?
Sim, ainda estou trabalhando nesse livro. Será publicado em 2020 pela Virago Press, uma editora icônica de Londres que já publicou grandes escritoras como Margaret Atwood e Maya Angelou. O livro chama-se Eve, que é um nome feminino, mas também significa [em inglês] a noite antes de algo acontecer. A história se passa daqui a 10 ou 20 anos no futuro e não é um livro pós-apocalíptico, porque está mais interessado no que vai acontecer se o fim do mundo não chegar, mas, em vez disso, nós, humanos, nos viremos como sempre, fodamos com tudo e não aprendamos com nossos erros.
De certa forma, tem sido um momento estranho para escrever um livro como esse, porque os acontecimentos globais têm sido tão rápidos e, às vezes, realmente bizarros. O livro foca em um futuro Reino Unido onde as coisas foram de mal a pior, de estranhas a ridículas a absolutamente perigosas. Às vezes, tive a estranha experiência de escrever ou desenhar uma ideia que parece extremada ou ridícula, depois ligar o rádio e ouvir a mesma coisa no noticiário. Isso me assustou algumas vezes. Cheguei a questionar se as coisas que estavam acontecendo eram minha culpa; como se eu estivesse escrevendo eventos no Reino Unido e fazendo-os acontecer. Não se preocupe, estou brincando, não sou tão paranóica, mas é um efeito estranho. O livro está quase finalizado, está no processo de edição agora.
“É fácil se assustar com pessoas como Bolsonaro e Trump, mas se permanecermos fortes e nos ajudarmos mutuamente, se fizermos o que for possível fazer como indivíduos e como coletivos, não estaremos desamparados”
Você está vindo ao Brasil em um momento em que o país tem como presidente um político de extrema-direita, um homem que repetidamente expressou seu apoio à tortura e suas opiniões racistas, sexistas, xenofóbicas e LGBTfóbicas — e, infelizmente, ele é um reflexo de parte da sociedade brasileira hoje. A situação no Reino Unido parece um pouco menos horrenda, mas ainda assim vocês estão no meio da confusão do Brexit e com Boris Johnson como primeiro-ministro. Como você vê o que está acontecendo no mundo? E como você se sente sobre o futuro do Reino Unido e do mundo?
Não sei ao certo o que pensar disso tudo, por isso tive que escrever um livro sobre isso. Os melhores livros acontecem quando o autor está tentando entender ou descobrir alguma coisa, e espero que Eve seja um desses livros. Líderes como Bolsonaro, Trump, Modi, entre outros, prejudicam a democracia, assim como movimentos populistas como o Brexit no Reino Unido e o movimento Cinco Estrelas na Itália. A esperança é que haja um limite para o que as pessoas comuns vão suportar, porque, por exemplo, recentemente, na Hungria, o clima político mudou e Orbán sofreu algumas sérias derrotas, mas na Polônia isso valeu para o outro lado, então não sei quão otimistas podemos ser. O desespero não vai nos ajudar, porém.
Acho que é uma boa ideia progressistas e liberais se perguntarem por que falhamos em convencer as pessoas a se afastarem dos ideais populistas com base em um grupo interno e em uma variedade de outsiders. Há anos que faço essa pergunta a pessoas que conheço no Partido Trabalhista do Reino Unido e nunca recebi uma resposta direta: como podemos convencer pessoas comuns que estão inclinadas a ver “forasteiros” como uma ameaça (e que admiram as pessoas ricas, temos que parar de fazer isso!) a votar em partidos que vão agir em seu interesse ao tornar as coisas mais justas para todos os trabalhadores, se eles não conseguirem ver que todos os trabalhadores têm um interesse compartilhado, independentemente de estarem no grupo “de dentro” ou no grupo “de fora”? Como podemos convencer os seguidores dos populistas de que eles deveriam direcionar sua raiva para os ricos parasitas que estão destruindo o mundo por meio da ganância, em vez de culpar e odiar as pessoas comuns que estão lutando para viver uma vida boa, exatamente como são, simplesmente porque têm uma cor de pele, nacionalidade ou sexualidade diferente? Eu me preocupo que pensadores de tendência socialista apenas confiem no bem autoevidente de suas ideias. Muitas pessoas não estão convencidas desse bem. É nosso trabalho convencê-las. É fácil se assustar com pessoas como Bolsonaro e Trump, mas se permanecermos fortes e nos ajudarmos mutuamente, se fizermos o que for possível fazer como indivíduos e como coletivos, não estaremos desamparados. Ainda.