Em Úlcera Vórtex (2017), o quadrinista Victor Bello apresentou ao mundo o entregador de gás Adriano Gás em seu embate contra os habitantes da violenta civilização de Gorgonotúbia – instalada em um buraco negro interdimensional no estômago de um cientista. Depois, em Incontinência Tripária (2018), ele narrou a busca do pedreiro Simão Garfunkel por soluções para seus problemas de saúde. Em seguida foi a vez de O Alpinista (2019), protagonizado por Ladoni, maior alpinista de todos os tempos e que se vê em meio a uma conspiração envolvendo políticos e alienígenas que coloca em risco a vida na Terra.
O mais novo quadrinho de Bello é ambientado no submundo das competições de sinuca. Em sua estreia solo no selo Pé-de-Cabra, ele conta em Sinuca Paranoide – As Tacadas do Bambino a história de Danete Ho, sinuqueiro renomado envolvido em uma trama de vinganças em seguida a uma tragédia familiar.
Já elogiei mais de uma vez os disparates de Bello, os ritmos frenéticos de suas histórias e as tramas aparentemente desencontradas que sempre culminam em dramas grandiosos com finais catárticos. Sinuca Paranoide mantém esse padrão, com o acréscimo de elementos e personagens característicos de filmes de ação dos anos 80 como Rambo, Vingador do Futuro, Robocop, O Sobrevivente e Mad Max.
“Mas se tratando puramente de ação, nenhum desses filmes supera a ação dos filmes dos anos 80 e 90 com Jackie Chan ou Sammo Hung, como Police Story, Projeto China e Eastern Condors”, me diz Bello sobre suas preferências cinematográficas. “Acho que o problema dos filmes americanos é que eles não sabem filmar lutas e as cenas de ação são entediantes quando não tem um Jackie Chan pendurado no carro”.
Victor Bello é um dos meus quadrinistas preferidos. Sinuca Paranoide mantém o padrão surtado de seus trabalhos prévios e me deixa ansioso para uma próxima HQ solo do autor. Torço muito pela manutenção de sua linha de produção anual. Na conversa a seguir, ele me falou sobre o ponto de partida dessa nova HQ, sobre a construção de seus personagens e sobre sua relação com sinuca, entre outros temas. Papo massa, saca só:
“A sinuca sempre me fascinou muito com aquelas bolas coloridas e pesadas”
Queria começar sabendo como estão as coisas por aí. Como você está lidando com a pandemia? A pandemia afetou de alguma forma a sua produção e a sua rotina diária?
Olá Ramon e todo mundo que lê o Vitralizado! Por enquanto tudo bem, seguindo os protocolos da OMS. Quanto a minha rotina e produção, eu comecei a fazer essa história antes do corona e quando começou a pandemia tive que parar um pouco a produção do quadrinho pra dar mais foco em encomendas de desenhos. Eu e Emilly Bonna tínhamos acabado de abrir nossa lojinha e com os correios fechados, fechamos a lojinha também. Aí, começamos a fazer retratos para ajudar na renda e passamos algumas semanas só fazendo retrato e enviando pras pessoas por email. Foram mais de 200 retratos… Ou 20… Não sei.
Tive que sair de casa várias vezes e não sei por que a máscara não foi recomendada pela OMS logo no começo. Uma das minhas obrigações era comprar todo dia seis pães para meus avós e cigarro pro meu tio. Eu tive receio que o meu vizinho Hoffman risse de mim porque eu usava máscara. Depois que todo mundo começou a usar, incluindo o Hoffman, me deu um sentimento bom de alívio. Já faz pelo menos um mês que não compro pão para meus avós.
Acho que eu nunca tinha lido uma HQ sobre sinuca. Como você chegou nesse tema? Você gosta de jogar sinuca? Você tem algum interesse em particular nesse universo?
Eu gosto sim de jogar sinuca, mas a ideia de uma HQ de sinuca surgiu quando eu estava viciado no jogo de sinuca do site Miniclip e pensei que seria legal uma história sobre esse esporte. Um dos meus quatro irmãos é uma lenda desse jogo, não falarei o nome dele para não revelar sua identidade, mas é um dos maiores jogadores de sinuca que já passou por aquele site. Pensei em fazer uma paródia do filme de bilhar do Martin Scorsese, com um personagem que joga sinuca online, mas minha histórinha acabou indo para outro lado. A sinuca sempre me fascinou muito com aquelas bolas coloridas e pesadas, eu tive chaveiros de mini bolas de sinuca quando era criança. E também gostava muito do jogo Side Pocket, de Super Nintendo, que tem uma trilha sonora linda e que me emociona.
Sinuca é um ESPORTE clássico, com ídolos brasileiros e presente na maior parte do Brasil. Eu queria jogar mais vezes sinuca de verdade no bar da esquina, mas com certeza o Hoffman vai me desafiar para uma partida e eu não estou disposto a isso.
O que você pode contar sobre o ponto de partida desse quadrinho novo? Ele surgiu a partir da trama ou dos personagens?
A história surgiu primeiro a partir de uma trama de sinuca, mas logo que pensei no personagem Danete Ho, a história passou a se desenvolver ao redor dele. Sinuca Paranoide é a história desse rapaz, descendente de vietnamitas, neto de uma heroína do Vietnã. Danete passa por uma tragédia muito pesada e parte para uma jornada cheia de humilhações e frustrações. Eu quis que Danete parecesse misterioso, perigoso e genial, mas no fundo ele é apenas um sujeito perdido e, as vezes, muito passivo. Espera-se que Danete seja fodão, que use seu taco como uma arma de artes marciais, mas talvez ele não tenha coragem pra isso.
“Gosto de personagens mudos, ou quase mudos, e como eles se relacionam com tagarelas”
Quais foram as suas técnicas e os materiais usados por você durante a produção dessa HQ? Foram muito diferentes dos seus trabalhos em O Alpinista e Úlcera Vórtex?
Quanto às técnicas e materiais, nada diferente dos meus trabalhos anteriores: caneta nanquim, pincel e lápis. Os tons de cinza e retícula eu faço no computador, com o programa GIMP.
Fiquei com a impressão que sua arte e algumas páginas nesse quadrinho novo estão de alguma forma mais elaboradas. Você se propôs a fazer algo diferente nessa HQ?
Valeu Ramon! Acho que as vezes meu desenho pode ser mais elaborado e as vezes bem pouco elaborado. Tem alguns quadros que meu desenho chega ao ápice da coisa mais mal feita e relaxada, mas tem algumas vezes que eu tento caprichar, depende muito do tempo, da minha rotina e nem sempre gosto de desenhar. Um problema pra mim, por exemplo, é repetir o desenho dos rostos dos personagens, pois geralmente eu começo com desenhos detalhados e ao longo da historinha os rostos vão se deformando. Isso também acontece em Sinuca Paranoide, mas o Danete Ho é fácil de desenhar, pois seu cabelo cobre a maior parte do rosto. Ele é cabeludo!!!
O que tem de diferente nesse gibi é que fiz umas duas páginas com desenho inteiro, teve página dupla, coisa que não costumo fazer, mas fiz após conversas com o Paulo Gerloff. Por exemplo, aquela página dos túneis do Vietnã era um desenho bem pequeno, mas, após um toque dele, refiz e transformei numa página inteira. Ficou bem melhor.
O que eu mais gosto nos seus trabalhos são os personagens, como você desenvolve a personalidade e as particularidades de cada um. O que você acha que faz um bom personagem? Tem algum personagem de quadrinho, livro ou filme que você acha particularmente interessante?
Obrigado! Eu não sei dizer bem o que faz um bom personagem, mas acredito que quanto mais substância o personagem tiver, melhor (mas ser vazio, ser um nada, também pode ser uma característica interessante). Depende também de como o personagem é colocado, como é a relação dele com os outros. Por exemplo, eu gosto de personagens mudos, ou quase mudos, e como eles se relacionam com tagarelas. E também sou viciado em personagens bem coadjuvantes, tipo a The Egg Lady do Pink Flamingos ou aquele mordomo interpretado pelo John Turturro em A Herança de Mr. Deeds, que tem um pé com micose. São tipos que pra mim ficam marcados por uma característica física, de personalidade ou por uma relação muito específica e cômica com os outros personagens (aliás, o Adam Sandler é um mestre em colocar esse tipo de personagem nos filmes dele). Também acho interessante quando os personagens não aparecem na cena, como o Malão, namorado do Jecagay na Praça é Nossa. O Malão é um cara abusivo, mas sempre é defendido pelo ingênuo Jecagay (ah, o Malinho, do Sinuca Paranoide, não tem nada a ver como o Malão, apesar do nome).
Gosto de vários tipos de figuras, sejam sérias ou esquisitas, mas acho que nunca conseguiria criar personagens sérios.
“Nada supera a ação dos filmes dos anos 80/90 com Jackie Chan ou Sammo Hung”
As suas histórias e seus personagens dialogam e fazem várias referências a filmes de ação dos anos 80. Quais são seus filmes preferidos dessa época e desse gênero? O que você mais gosta nessas produções dos anos 80 de explosões, guerra e outros elementos do gênero?
Gosto muito do primeiro Rambo, com aquele Stallone completamente perturbado e trazendo a guerra pra dentro dos Estados Unidos. Mas dos anos 80, prefiro filmes de ação com ficção científica, tipo Vingador do Futuro, Robocop, O Sobrevivente (esse eu vi na SBT quando tinha 9 anos na casa do carismático pescador Zica ), The Thing, Mad Max ou filmes de ação com artes marciais. Às vezes gosto mais dos atores do que do filme, então se tiver Schwarzenegger, Van Damme e Dolph Lundgren, não hesitarei em assistir. O que eu mais curto nesse tipo de filme é a diversão mesmo, alguns deles são estúpidos e ridículos e por isso são divertidos. Mas se tratando puramente da ação, nenhum desses filmes supera a ação dos filmes dos anos 80/90 com Jackie Chan ou Sammo Hung, como Police Story, Projeto China e Eastern Condors. Acho que o problema dos filmes americanos é que eles não sabem filmar lutas e as cenas de perseguição são entediantes quando não tem um Jackie Chan pendurado no carro (se bem que A Morte pede Carona e Viver e Morrer em Los Angeles têm cenas prazerosas de perseguição).
“Lobo Ramirez e Panhoca são os melhores editores do ramo”
Esse é o seu primeiro trabalho solo pela Pé-de-Cabra. Qual balanço você faz dessa experiência? Quais são as principais semelhanças e diferenças das suas dinâmicas com os editores Panhoca e Lobo Ramirez?
Foi uma experiência muito positiva, nota dez pro Carlos Panhoca. Assim como a Escória Comix, a Pé-de-Cabra é uma editora que me deixou muito livre, sem prazo, sem nada. Vou te dizer que não teve diferença nenhuma em fazer um quadrinho pra Escória Comix e pra Pé-de-Cabra, são duas editoras como uma ética de trabalho muito parecidas. Creio que Lobo e Panhoca são os dois melhores do ramo. São pessoas gentis, generosas, do tipo que se eu tiver precisando de um rim os caras vão me dar!! O Lobo talvez entregue o rim numa caixa de pizza e demore um pouco pra enviar. Já o Panhoca não sei se tem dois rins funcionando.
Também queria saber da sua dinâmica com Emilly Bonna nas cores da capa e na criação da contracapa. Como vocês trabalham? Como foi o desenvolvimento dessas artes em conjunto?
A Emilly Bonna me salvou com as cores, porque eu tinha feito a capa com cores digitais e até tinha gostado, mas soube que na impressão as cores iriam mudar, pois usei cores muito saturadas, são cores que só existem no computador.
A Emilly já tinha desenhado a contracapa do Sinuca Paranoide e pintado com cores de lápis de cor, então achei que seria uma boa pedir pra ela pintar a capa também. Muito gentil, ela aceitou a missão de bom coração.
Você pode recomendar algo que esteja lendo/assistindo/ouvindo no momento? O que você tem lido/assistido/ouvido para passar o tempo durante a pandemia? Aliás, você gosta de ouvir música enquanto está criando os seus quadrinhos? Se sim, o que você ouviu enquanto criava o Sinuca Paranoide?
Assisti mais filmes durante essa pandemia, mas queria destacar um filme novo, um lançamento de 2019 chamado Greener Grass, que tem um final assustador, e o The Killing of Satan (1983), filme filipino que o Rodrigo Okuyama me recomendou (estou fazendo um cartaz desse filme pra ele). Quanto a leitura, estou lendo no momento o livro Horror Noire, da autora Robin R. Means Coleman.
Quando eu vou criar uma página de quadrinho e preciso também escrever os diálogos não costumo escutar nada, mas quando eu só tenho que desenhar o quadrinho e não preciso pensar, prefiro ouvir algum podcast, vídeos de pessoas falando sobre algum filme, ver jogos da NBA, etc. Mas algumas músicas me inspiraram e coloquei elas no Sinuca Paranoide, como a canção Charuto de Rasta, que fala sobre um charuto que não faz fumaça, Pitch The Baby, do Cocteau Twins, que fala sobre alguma coisa que eu não sei o que é, e até um André Matos que o meu vizinho Hoffman ouve, o André Matos cantando Kate Bush, sabe? Ele ouve músicas de muitos estilos, mas principalmente funk carioca e essa música do André Matos/Kate Bush.