O editor Rogério de Campos já chamou atenção para a pequena história secreta e pessoal do Brasil tecida por Marcello Quintanilha a cada obra. Os subúrbios, principalmente fluminenses, servem de pano de fundo para grande parte desse cenário maior construído pelo autor. E em torno de suas tramas ele coloca em prática sua aclamada oralidade e justapõe seus quadros sempre desalinhados. Escuta, Formosa Márcia é o mais recente capítulo dessa bibliografia pessoal de Quintanilha, epítome de sua produção e também seu título mais singular até aqui.
O álbum é ambientado em uma favela do Rio de Janeiro e tem como foco o impacto da corrupção dos poderes públicos na vida do cidadão comum. A enfermeira Márcia administra sua rotina em um hospital público com bicos como cuidadora de idosos num bairro rico. Em casa, ela concilia um relacionamento amoroso pouco inspirado com as tensões com a filha e a proximidade de traficantes e milicianos de sua moradia.
Assim como Tungstênio (2014), Talco de Vidro (2015) e Luzes de Niterói (2018), Escuta, Formosa Márcia também é influenciado pelo neorrealismo italiano e sua busca por um retrato social de uma época. Quintanilha, no entanto, também se distancia dos ares documentais de seus trabalhos prévios. A presença de cores, em uma paleta limitada e alheia à realidade, e o traço caricato enfatizam esse distanciamento. Segundo o próprio autor, ele se aproxima do teatro do absurdo e de Samuel Beckett (a “chave do páthos” da HQ, disse ele) ao criar um enredo em torno da solidão, do isolamento e das dúvidas existenciais de sua protagonista.
Quintanilha já falou mais de uma vez sobre sua rotina de trabalho “absolutamente anárquica”, com ele ocupado em vários projetos simultâneos, sem que seu título mais novo seja necessariamente sua produção mais recente. Por isso é difícil falar em “nova fase” do autor. Ainda assim, Escuta, Formosa Márcia apresenta novas perspectivas para sua produção.
Não faço ideia do que está por vir em um próximo trabalho de Quintanilha e não tenho interesse em saber antes de ter a obra em mãos. Que ele dê continuidade às inovações de Márcia, retome conceitos de obras prévias ou apresente conceitos e abordagens inéditos em seu trabalho, estarei sempre no aguardo da HQ seguinte do mais instigante quadrinista nacional.