Conversei com os quadrinistas Marcelo D’Salete e Rafael Coutinho sobre o lançamento do primeiro dos três volumes da editora Devir para a coleção brasileira de Sunny, obra do artista japonês Taiyo Matsumoto, também autor de Preto e Branco/Tekkon Kinkreet. Essas entrevistas viraram matéria na Sarjeta, minha coluna mensal sobre histórias em quadrinhos no site do Instituto Itaú Cultural.
Reproduzo a seguir a íntegra da minha entrevista com Rafael Coutinho sobre os principais méritos do trabalho de Taiyo Matsumoto e o impacto de obras como Sunny e Tekkon Kinkreet no trabalho do autor de Mensur e O Beijo Adolescente. Saca só:
“Ele reintroduziu o conceito de mangá de autor pro mundo”
Você lembra do seu primeiro contato com o trabalho do Taiyo Matsumoto? Quando foi?
Foi com a publicação do Preto e Branco pela Conrad, não me lembro o ano. Fiquei muito mexido, impressionado, era muito diferente de tudo que eu conhecia.
O que mais te chama atenção nos quadrinhos do Taiyo Matsumoto?
Além do fato de que ele representa um ponto muito fora da curva do tradicional estilo mangá, um raro caso de desenhista e narrador japonês que sofreu forte contaminação das escolas européias, ele tem uma capacidade muito impressionante de criar relações afetivas entre personagens. O estilo é solto e expressivo, sem perder naturalismo. Pequenos detalhes como mãos e bocas, cenários que quebram o eixo de perspectiva tradicional, quase como se estivéssemos lendo um livro um mangá sob o efeito de uma microdosagem de drogas alucinógenas. Mas depois que li quase tudo dele, entendi que o que tinha me impressionado no começo da carreira dele era um momento que ele se distanciaria muito e que pra mim mudou totalmente minha percepção não só dele autor, como do que eu esperava de quadrinhos em geral. O Sunny foi pra mim o marco dessa ruptura. A relação entre duas figuras crianças, sempre um personagem e seu duplo, ou doppelganger ou um irmão mais novo e um mais velho, representando duas forças positivas e negativas, mas nunca óbvias e dicotômicas, e sim complexas e ricas e sensíveis a sua forma, individualmente, evoluiu com o tempo pra uma mergulho muito bonito e pessoal na psique humana. As histórias pararam de falar de monstros e inimigos, perderam ação explícita e incorporaram situações brutais de intimidade e singularidade. Pra mim ele foi o autor que realmente me fez ver quadrinho como uma narrativa de romance, algo que eu só encontrava lendo literatura. E por ser o desenhista estupendo que ele é, a experiência se torna muito mais impactante do que se fosse só texto. Ele me ensinou também a importância dos silêncios, como apresentar o ambiente como fio condutor, o avião que passa, o cachorro que late, as repetições formando um cotidiano narrativo que apoia e multiplica o drama dos personagens. Sobre os personagens, eu poderia ficar falando aqui infinitamente, porque não há gente boa e má, ou clichês. Nenhum personagem entra de forma bidirecional. E acho importante também ressaltar a habilidade que ele tem de fazer uma cena muito simples se tornar instigante, moderna, um Zeitgeist interno ali que se espalha por todos os livros. Com um desenho muito econômico ele consegue apresentar uma visualidade de vanguarda pra tudo, muito viva e elegante. No desenho, ele propõe uma soltura muito bonita de traço. Um relaxamento e tremor que são característicos na obra dele que pra quem entende um pouco sobre a tradição de mangá, é evidente o tamanho da coragem e da quebra de paradigma. É um autor que reintroduziu o conceito de mangá de autor pro mundo, com um impacto muito grande no próprio estilo europeu.
“Como autor, devo muito ao trabalho do Taiyo”
Como o contato com a obra do Taiyo Matsumoto impactou o seu trabalho? Você consegue pensar em algum influência particular que tenha incorporado da leitura dos quadrinhos dele?
Fui muito influenciado. Quando li pela primeira vez, sinto que quase tudo que fiz naquela época era fruto do desejo de chegar perto do que ele fazia. Enquadramentos, personagens, preto e branco. Minha sorte é que não consegui tão bem, senão teria sido só um feliz copiador dele pelo resto da vida. Minha outra sorte é que naquela mesma época conheci outros autores que tiveram o mesmo impacto em mim, o que acabou diluindo esse desejo de mimetizar ao infinito um autor. Mas sigo muito impactado pelos livros dele, estão cada vez melhores, mais profundos. Acho que o Beijo Adolescente é o meu trabalho que foi mais influenciado por ele. Hoje em dia já mergulhei no meu universo imagético e sinto que essa época de ficar maluco por um autor, característico da juventude de um desenhista, passou. Mas como autor, devo muito ao trabalho do Taiyo.
“Foi a última obra que me fez chorar no banheiro”
Há uma vastidão de gêneros e estilos quando se fala em mangás, mas há algum aspecto ou elemento em particular, seja no uso da linguagem ou nos métodos de produção, que te chame atenção nas histórias em quadrinhos produzidas no Japão?
Leio pouco mangá se comparado aos meus alunos. Mas sou de uma geração profundamente impactada pelo Katsuhiro Otomo, pela geração 90 autoral japonesa, e posteriormente pelo Suehiro Maruo, Junji Ito, e por diretores de animação como Satoshi Kon e as produções do estúdio Gibli. Mas de uma forma geral, a cultura japonesa nos bombardeou de produções formadoras dos 90 pra cá, seria impossível catalogar. Confesso que acho que minha geração sentia certa vergonha de incorporar explicitamente trejeitos e maneirismos do mangá, embora estivessem ali nas nossas páginas. A geração posterior a minha é menos recalcada, assumiu abertamente. Mas somos todos filhos da cultura pop japonesa, ela esteve e estará presente no nosso cotidiano sempre com esse encantamento perturbador e maravilhoso. Os japoneses são um povo com uma produção artística sem igual, um amor pelo pop e um nível de produção dedicada a dar voz as emoções humanas muito intensa. A forma exagerada com que exprimem essas emoções, a tensão entre uma cultura que reprime extremamente o individuo na mesma medida que explora e se reapropria e avança rumo ao absurdo, à fantasia, aos desejos e tabus, é desigual se comparada ao resto do mundo. E há uma inocência estranha nesse processo que também é encantadora, uma nação em uma ilha, que de império a um povo destruído por duas bombas atômicas se mantém focado em respeitar as tradições, as hierarquias, o espiritual, as emoções humanas, produzir, criar intensamente, sem parar. E quando desconstroem isso ou questionam de forma criativa, fazem com uma força muito grande.
O que você vê de mais especial em Sunny?
Foi a última obra narrativa que me fez chorar no banheiro (porque não conseguia largar nem pra ir ao banheiro). É uma obra completa, os seis livros [três na edição brasileira] são fundamentais para o todo, cada um abre visões desse orfanato por cada criança que vive lá, visões que se complementam. Não há nada de óbvio no livro, é algo muito único. E também é uma história reta, sem experimentações narrativas. É de longe uma das obras mais honestas e inteiras que li. Pros fãs do Taiyo que leram Go Go Monster, ela é um segundo passo bem mais resolvido e rico, como se a anterior tivesse sido um preparo para essa. Não há como não se apaixonar por ele ao ler os seis livros. Descobri depois de ler que Sunny é inspirado nas memórias do próprio autor, que cresceu em um orfanato também. Mas não quero estragar a surpresa, espero que todos se sintam conectados com as histórias do orfanato Star Kids e das crianças como eu me senti.